«Bem-vindos a 2020. Parecendo que não, já passaram quase 900 anos desde que Afonso Henriques - o conquistador - expulsou daqui os mouros para, quatro anos depois, conseguir o reconhecimento do reino de Portugal, dando assim início à primeira dinastia.
De 1139 até 1974 não foi propriamente "um tirinho", mas a história, de alguma forma, repetiu-se. Em vez de mouros, expulsámos os ditadores que nos oprimiram durante 41 anos e reconquistámos a nossa liberdade. O que fizemos depois com ela pode ser alvo de muitas discussões, de muita divergência, mas não deve colocar em causa o essencial: Portugal, com todos os problemas mais ou menos estruturais que ainda tem por resolver, é hoje um país melhor. E tem uma democracia mais madura.
Se isto não é apenas um lugar comum, o que segue também não o é: as democracias são sempre projetos inacabados, que se constroem passo a passo, com avanços e recuos, mas que só sobrevivem se soubermos preservar os seus alicerces. Aqui chegados, a 2020, é importante termos todos a noção de que alguns dos pilares mais importantes da nossa democracia estão a ser seriamente ameaçados. E que, se não se fizermos nada, podemos mesmo vir a perdê-la.
O populismo, que é, para muitos, a ameaça mais latente, é, na verdade, a consequência natural de um desgaste lento em zonas onde o Estado não pode - não deve - falhar aos seus cidadãos. Dos erros com que não aprendemos e que vamos repetindo, dos problemas estruturais que fomos empurrando com a barriga, das respostas que continuam por dar.
O discurso de ano novo do Presidente da República, mas, sobretudo, o de Natal do primeiro-ministro - dedicado exclusivamente ao Serviço Nacional de Saúde -, são a prova disso mesmo. Em 2020 ainda há urgências hospitalares a fechar por falta de médicos, centros de saúde e hospitais públicos indignos de um país de primeiro mundo, ainda não há médico de família para todos e continuamos a ter famílias desesperadas porque não têm onde colocar os familiares que precisam de cuidados continuados. No Portugal de 2020, em que agora entramos, ainda há uma saúde que é diferente para pobres, para remediados e para ricos. Ainda há médicos e enfermeiros a fugir para o privado ou para o estrangeiro porque se sentem maltratados, mal pagos e pouco reconhecidos pelo Estado.
No Portugal de 2020 ainda há quem receba menos de 300 euros de pensão. Ou quem trabalhe todos os dias, sem conseguir fugir da pobreza. Crianças que, não podendo trabalhar, ficam condenadas a essa pobreza. Ou quem trabalhou a vida toda para agora viver pobre até à morte.
No Portugal de 2020 ainda há jovens altamente qualificados pagos como se tivessem a quarta classe, que não encontram casa que possam pagar e que adiam os seus projetos familiares porque desconfiam do futuro que o país lhes tem reservado.
No Portugal de 2020 a educação ainda depende da conta bancária e do estrato social. Ainda há escolas que são autênticos guetos, onde a violência e o insucesso escolar andam de mão dadas. E, apesar disso, nessas escolas ainda há professores que resistem e não desistem de educar, mesmo quando são maltratados por alunos, pais e pelo próprio "patrão", o Estado.
No Portugal de 2020 ainda há quem pague os seus impostos e os dos outros, que fogem, só porque sim, porque podem. São os mesmos - os que pagam impostos - que assistem incrédulos à lentidão de uma justiça que, paradoxalmente, se torna injusta e que tantos, justa ou injustamente, classificam de impunidade.
No Portugal de 2020 ainda há dois países: o do litoral e do interior. O país sobrelotado e o país cada vez mais vazio, onde quem resiste devia ser elevado à qualidade de herói nacional. Porque paga ao Estado o mesmo que os do litoral - mais portagens - e recebe infinitamente menos.
Se tudo isto - e o mais que aqui não cabe - são ameaças reais aos pilares da nossa democracia, nada disto é uma inevitabilidade. E a próxima década pode muito bem ser a última oportunidade para não deitarmos tudo a perder. Para construirmos uma economia que cresça e apareça, em vez da roda de hamster onde temos andado nos últimos largos anos e de onde já caímos três vezes. Para reformarmos a justiça, a saúde, a educação, as forças de segurança e militares. Para olharmos de uma vez para a vida das pessoas, em vez de andarmos a contar os meses para o próximo ato eleitoral.
Porque, por cada ponta solta que deixarmos, haverá sempre um oportunista à espreita. Alguém que se alimenta do sofrimento dos outros e que está sempre pronto a cavalgá-lo, em nome da sua própria sobrevivência. Por cada ameaça que o Estado - e nós também somos o Estado - deixar escapar, ignorar, empurrar com a barriga, é mais um passo que está a dar para acabar com um regime democrático que, até prova em contrário, é o melhor dos sistemas políticos.
Em democracia há sempre soluções. Foi isto que me ensinaram e é nisto que acredito. Mas a democracia não é um fim em si mesmo e 2020 pode bem ser o início de um combate há muito adiado ou o princípio do fim.»
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