28.6.25

Perfume

 


Frasco de perfume em vidro soprado, rolha de vidro prensado. Museu Lalique. Cerca de 1914.
René Lalique.

Daqui.

Sócrates e Google

 


Mr. Bezos, I presume

 


A Esquerda vale mais

 


«O somatório dos votos que o conjunto de forças políticas da Esquerda obteve nas últimas eleições legislativas não espelha toda a sua influência na sociedade. O sentimento de deceção, que levou centenas de milhares de cidadãos, até há pouco tempo seus eleitores, a abster-se ou a apoiarem forças da extrema-direita e da Direita com programas neoliberais, ainda poderá ser revertido.

É possível estancar a perda de influência social e encetar recuperação. A Esquerda é bem plural, mas dialoga pouco, e pesa bastante a parte que opta pela cedência à Direita, fazendo de conta que existiria democracia sem uma Esquerda forte. Acrescem os engulhos do contexto europeu e internacional onde imperam compromissos belicistas que subjugam a economia e matam o social.

As dificuldades não podem pear-nos. É necessário que a Esquerda interprete a nova era em que estamos. Ela não emergiu agora. Na última década do século passado era claro que as instituições e poderes que nos trouxeram até aqui estavam esgotados (o velho equilíbrio geopolítico e geoestratégico tinha-se estilhaçado) e que os novos poderes fátuos impunham as suas regras sem serem responsabilizáveis: desde o plano político ao económico/financeiro e ao tecnológico e científico.

As análises aos resultados das eleições legislativas partem de leituras económicas do mainstream centradas em indicadores quantitativos, quando os problemas que levam as pessoas a sentirem-se desprotegidas têm um somatório de causas e impactos. Os problemas com a habitação, a imigração, o SNS, a Escola Pública, carecem de interpretações sociológicas e políticas. Estes bloqueios têm conexões intrincadas e configuram um país novo: não terão resposta num quadro em que mais de 90% do investimento público vem de fundos comunitários.

Grande parte das pessoas zangaram-se porque tiveram expectativas justas defraudadas no ciclo político 2015/2024. O Governo da “geringonça” teve grande apoio nos planos social e económico, desde a sua formação até 2019, e mesmo depois. O problema foi que o “programa comum” era minimalista e António Costa e o PS foram possuídos pela soberba política. As forças à sua esquerda ficaram presas na armadilha.

Agora, vai o PS continuar a olhar à esquerda como quem olha para processionárias? E vão estas forças tratar a experiência positiva como erro? Só a ação convergente para uma política social transformadora e boas relações evitarão o desastre. São precisas lideranças que aprendam a lidar com a mudança de expectativas e tirem à extrema-direita a bandeira do combate ao status quo.

Neste quadro, as próximas eleições autárquicas são de grande relevância. É em torno delas que os grandes coletivos mais se mobilizam. É nelas que se podem mais facilmente identificar oportunistas e forjar aproximações sem perda de identidades específicas. Em Lisboa, em 1989, viveu-se uma experiência boa, porque trabalhada com rigor e responsabilidade.»


27.6.25

Vírgulas?

 


Spinumviva, ainda

 


«Primeiro-ministro recorreu para o Tribunal Constitucional contra o pedido da Entidade da Transparência. Recurso tem "natureza confidencial" e não deverá ser julgado antes das férias judiciais.»

Expresso, 27.06.2025

António Vitorino

 


«Desperto, ainda trémulo de café por fazer, e deparo-me com a notícia de sempre: António Vitorino não será candidato à Presidência da República. Uma vez mais, o país é brindado com este ato de não-intenção, este ritual sibilino de recusa que se repete, com zelo quase litúrgico, em todos os atos eleitorais, quaisquer que eles sejam. Presidenciais, autárquicas, europeias, legislativas ou eleição da mesa do condomínio: lá está Vitorino, recusando com gravidade o que ninguém ousou sugerir com entusiasmo.

Já não é uma notícia, é um género literário. Há sonetos, haikus e “António Vitorino recusa ser candidato”. Publicações sazonais, previsíveis como o equinócio, reconfortantes como um pudim flan, e ligeiramente mais cómicas. Há quem colecione selos, o nosso jornalismo coleciona negativas vitorinianas. Brevemente, nas bancas: “As 100 melhores vezes em que António Vitorino disse que não”.

E atenção: considero-o um homem sério, inteligente e competente. É precisamente isso que torna tudo ainda mais delicioso. Um estratega da recusa. Um mestre da abdicação antecipada. Um atleta do “não, obrigado”.

É comovente. Uma espécie de Dom Quixote da abstenção, que investe com brio contraintenções vagas e convites implícitos. Um Cincinnatus que abandona o arado sem nunca ter estado nas imediações de um campo. Um cavalheiro do renascimento que, ao entrar num salão, saía logo de seguida, por puro pudor republicano.

Eu, por mim, fico expectante pela próxima renúncia pública. Talvez anuncie que não será campeão olímpico dos 100 metros. Ou que, ponderadas todas as circunstâncias, não aceitará ser Patriarca de Lisboa. Ou que, em consciência, prefere não assumir o comando da Frota Estelar. Seja como for, manter-se-á firme. O homem que, com nobreza clássica e precisão suíça, insiste em não ser aquilo que, com total dignidade, não tenciona vir a ser.»

Luís Galego no Facebook.

A nova Guernica

 



Um despedimento na RTP que nos deve preocupar a todos

 


«Há dias, um estudo da Reuters revelou que a RTP era o órgão de comunicação em que os portugueses mais confiam, à frente de todos os outros canais, rádios e jornais. Este reconhecimento não é por acaso.

Foi um longo caminho desde que, no final do cavaquismo, a informação da RTP era percecionada como pouco isenta e bastante governamentalizada. Com a emergência dos canais privados, o país passou a conhecer televisões libertas de tutelas políticas. Entretanto, as dinâmicas comunicacionais transformaram-se e os serviços públicos de media assumiram uma relevância que era impensável. Portugal acompanhou essa tendência e hoje a RTP é vista como um espaço de informação sóbrio e rigoroso.

Depois de sucessivos programas eleitorais do PSD advogarem a privatização da estação pública, na fase final do Governo Passos, já com Poiares Maduro como ministro e perante um impasse que se arrastava, decidiu-se manter a RTP pública e criar um Conselho Geral Independente, capaz de desgovernamentalizar a empresa e protegê-la da captura política. O Governo deixou de nomear a administração, a mudança veio para ficar e, atualmente, a tutela da RTP é distante em matérias sensíveis (sei do que falo, pois tutelei a comunicação social quando fui ministro).

Hoje, a RTP pode ter problemas de audiências, dificuldades de financiamento e padece de algum anacronismo organizativo, mas é uma empresa fulcral, pelo papel regulador que desempenha, garantindo uma oferta informativa contrastante e na qual os portugueses confiam. Uma RTP independente e que pratica um jornalismo rigoroso não é, por isso, uma empresa que agrade ao poder político, que muitas vezes alimenta uma nostalgia do tempo em que os ministros da tutela articulavam alinhamentos do telejornal.

Ao longo do último ano, Montenegro não se inibiu de criticar a comunicação social, e a RTP em particular. Começou por se mostrar muito impressionado com os jornalistas que faziam perguntas “sopradas para um auricular”. Perante as primeiras notícias que levaram à exoneração do secretário de Estado que criara uma empresa imobiliária, o Observador noticiou que “no núcleo duro do Governo se suspeitava de uma estratégia concertada de alguns órgãos de comunicação social, em especial a RTP”, que revelava uma “atitude hostil”.

Em campanha, recordamos a indignação de Montenegro ao reagir a uma questão sobre a Spinumviva, acusando a RTP “de estar empenhadíssima” no caso. A pergunta fora feita por um repórter da SIC. Depois, ao contrário dos outros líderes partidários, recusou-se a dar uma entrevista ao canal público. Entretanto, no novo Governo, a comunicação social passou a estar sob tutela do ministro da Presidência – ou seja, o centro político do executivo, responsável pela comunicação do Governo, passa também a tutelar a RTP.

Esta semana, a administração da RTP decidiu demitir o diretor de Informação, António José Teixeira, entretanto substituído por Vítor Gonçalves. Declaro que sou amigo de António José Teixeira, considero Vítor Gonçalves um ótimo profissional e trabalhei com ambos. Acontece que, após a sucessão de ataques de que a RTP foi alvo, vindos diretamente do centro do poder, é um sinal errado exonerar o seu diretor de Informação.

As coisas são como são, perante este historial e na ressaca da tomada de posse de um novo Governo, esta substituição deve preocupar todos aqueles que defendem um jornalismo independente e incómodo. Afinal, vislumbra-se na decisão a concretização do desejo de Montenegro de “termos uma comunicação social mais tranquila e não tão ofegante”.»


26.6.25

Muito original

 


Vaso de vidro Arte Nova, esmaltado. Cerca de 1900.
Ernest Baptiste Léveillé.


Daqui.

Salvador Allende nasceu num 26 de Junho



... há 117 anos, em Valparaíso, no Chile. Afirmou, bem antes de 11 de Setembro de 1973, que estava a cumprir um mandato dado pelo povo e que só sairia do palácio depois de o cumprir. Ou que o faria «com os pés para diante, num pijama de madeira». Assim aconteceu. 

O seu último discurso:



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26.06.1963 – «Ich bin ein Berliner»

 


Frase proferida por John F. Kennedy em Berlim Ocidental, há 61 anos, quase dois depois de o Muro ter dividido a cidade, num discurso que foi considerado um dos momentos mais importantes da Guerra Fria. 




Poucos meses depois, Kennedy foi assassinado em Dallas.
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Maria Velho da Costa

 


Seriam 87, hoje.

O engenheiro do caos deixou tudo mais perigoso

 


«Já nem falo da violação do direito internacional como referencial mínimo de comportamento. É dele que dependem nações mais frágeis, como o Taiwan ou a Ucrânia, pelo menos na sua defesa política contra o regresso da lei do mais forte, ao gosto de Putin, Trump e Netanyahu, primos políticos e morais. Fico-me pelos resultados práticos da intervenção de Israel contra o Irão. Na sua rápida aventura iraniana, Israel teve vitórias simbólicas e práticas relevantes.

Conseguiu levar a guerra para dentro do Irão, depois de este passar décadas a combatê-lo através do apoio a guerras por procuração fora de casa.

Terá deixado em mau estado o sistema de mísseis balísticos iraniano, mas, em troca, o seu território foi bombardeado por mais do que rockets, uma experiência rara para as populações de Telavive e Jerusalém, o que mostrou a diferença entre o Irão e os outros alvos que Israel escolheu no passado recente. Imagino que, para a decisão de não continuar a guerra, terá pesado o impacto psicológico dos bombardeamentos.

Terá conseguido decapitar parte da liderança militar iraniana.

E mostrou que a aliança do Irão com a Rússia, demasiado enterrada na Ucrânia, e com a China, pouco dada a intervencionismos militares, é menos sólida do que parecia. Não sabemos, é verdade, o que aconteceria se a guerra fosse mais longe e estivesse em causa a circulação no estreito de Ormuz ou a sobrevivência do regime. Mas, depois de neutralizar o Hamas e o Hezbollah (quem acha que foram destruídos conhece mal aquela realidade), de ver cair o regime de Assad e de só restarem os hutis, no Iémen, esta prova de fogo, no momento em que o Irão está económica e politicamente mais fragilizado, foi importante.

O NARCISO E O ENGENHEIRO DO CAOS

Benjamin Netanyahu conseguiu, por fim, arrastar os Estados Unidos para uma guerra com o Irão. Era o sonho de uma vida. Mas, aí, a vitória foi pífia. As divisões dentro da base de apoio de Trump, o risco de ver o preço do petróleo disparar (e se o regime de Teerão tivesse sido encostado à parede, cometeria o suicídio económico de encerrar o estreito de Ormuz, por onde passa 20% do petróleo do mundo, afetando a China, que é o seu principal destino) e a forte possibilidade de, com uma baixa americana, o envolvimento do homem que sonha com o Nobel da Paz se tornar incontrolável na escalada dos eventos levaram Trump a picar o ponto, fazendo os mínimos para cumprir o papel de aliado de Israel, apenas no que os Estados Unidos eram indispensáveis.

Como o Irão não desejava a escalada, as suas respostas foram sempre proporcionais e, no caso dos EUA, totalmente coreografadas. Para Trump, chegou para mudar o alinhamento da Fox News, que tinham Israel como estrela, alimentando o seu narcisismo. O problema de Netanyahu é ter pouco para dar e demasiado para pedir a Trump, que pensa em tudo como pensa nos negócios.

Havia um objetivo secundário, um extra desejado, que felizmente ficou pelo caminho: fazer o regime iraniano (ou o país) colapsar através de uma intervenção externa. Até se apresentaram soluções delirantes, como a do filho de Reza Pahlavi. Não é que eu não deseje o fim de uma ditadura teocrática e brutal. Mas talvez os engenheiros do caos devessem ter aprendido com os erros passados. Iraque, Líbia e Afeganistão foram as suas extraordinárias obras. No caso do Iraque, ela levou a centenas de milhares de mortes, ao nascimento do Estado Islâmico, à guerra civil na Síria, a uma crise migratória para a Europa, ao crescimento da extrema-direita.

Para Netanyahu, é indiferente. É do caos à sua volta que se tem alimentado. Para o resto do mundo, seria uma tragédia. O regime iraniano terá de mudar por dentro. Não sendo, ao contrário do que eram o Iraque ou a Líbia, uma ditadura unipessoal; tendo uma classe média relativamente forte e instituições mais sólidas, há condições para isso acontecer. Até havia bons sinais, com a crise económica e algumas cedências do moderado Masoud Pezeshkian. Veremos se, depois desta intervenção, não foi a linha dura dos Guardas da Revolução a reforçar o seu poder. Esperemos que não.

ADIADO POR MESES

Onde o ataque conseguiu pouco foi onde dizia que tinha de conseguir tudo. Segundo a Defense Intelligence Agency (DIA), a agência de informações do Pentágono, os ataques terão apenas atrasado o programa nuclear iraniano por alguns meses – as reservas de urânio do Irão não terão sido destruídas e uma das fontes até diz que as centrifugadoras estão praticamente intactas. Num país que é autossuficiente na capacidade de o refazer.

O ataque não aconteceu porque a bomba nuclear estivesse iminente. Netanyahu diz que está iminente desde 1995. O diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atómica e os serviços de inteligência norte-americanos nunca confirmaram evidências de que tal fosse verdade. O ataque foi decidido há um ano, aliás. Aconteceu agora por causa do enfraquecimento dos aliados iranianos e das condições operacionais. O sentido de urgência foi fabricado.

Este ataque pode ter conseguido outra coisa: uma machadada na participação do Irão no Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) e na sua participação séria em negociações, depois de Trump ter posto fim ao Joint Comprehensive Plan of Action, acordo que realmente susteve o plano nuclear iraniano (depois desta decisão, em 2018, o programa acelerou), e de ter bombardeado o país a meio de conversações.

A desnuclearização total do Irão, exigida por Israel, nunca acontecerá. Não é uma questão de regime, mas de Estado. O programa nuclear começou em 1954, com o Xá Reza Pahlavi e apoio de França e dos Estados Unidos. Por outro lado, o Irão está próximo de potências nucleares, como o Paquistão, a Índia, Israel e a China, sendo, com a Turquia (debaixo do guarda-chuva nuclear da NATO) e a Arábia Saudita (aliado preferencial dos EUA), a única grande potência sem instrumentos de dissuasão. Que lição tirou deste ataque? Que se tivesse a arma, não teria sido atacado.

A grande lição que o Irão pode tirar de tudo isto é que precisa de ter capacidade nuclear. Não obrigatoriamente a bomba, mas, como explicou Daniel Pinéu na entrevista que lhe fiz no Perguntar Não Ofende, uma capacidade de dissuasão latente. Na realidade, o TPN só funcionou contra eles. O caminho pode ser o de abandonar o TPN e a fátua que não lhes permite usar armamento nuclear. E fazer o mesmo que fez Israel: construir a arma em segredo, fora dos limites de qualquer tratado ou supervisão. O que leva à pergunta óbvia: ficámos mais ou menos seguros depois desta intervenção?»


Chega amigo, a AD está contigo

 


Público,25.06.2025.


25.6.25

Imigração e nacionalidade

 


Antoni Gaudí nasceu num 25 de Junho

 


Antoni Gaudí nasceu em 25 de Junho de 1852 e teve uma morte insólita, a poucos dias de fazer 74 anos: ao sair da sua catedral Sagrada Família, foi atropelado por um carro eléctrico numa rua de Barcelona. Sem documentos nem dinheiro na algibeira, acabou por ser levado para um hospital e depositado numa ala comum reservada aos pobres.

Estranhando a ausência, os seus colaboradores localizaram-no no dia seguinte, quiseram levá-lo para um hospital com melhores condições, mas viram a proposta recusada pelo próprio e assistiram à sua morte em 10 de Junho de 1926. Dois dias depois, uma multidão prestou-lhe uma última homenagem, num longo cortejo que acompanhou a urna até à cripta da catedral.

Polémico como poucos, odiado por alguns, idolatrado por outros, único para todos. Em jeito de homenagem, fotos de algumas das suas obras mais emblemáticas. 



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Moçambique – Há 50 anos, a independência!

 


Nasci numa rua com acácias vermelhas que nunca esqueci.

Sem qualquer consciência do que significava ser filha de colonos, achando perfeitamente normal que o mainato Fabião estivesse sempre por perto, 24 horas por dia. Excepto durante algumas, poucas, nas tardes de Domingo, em que desaparecia vestido de branco, através do canavial que separava os quintais das moradias nem sei exactamente de quê.

Sem estranhar que só houvesse meninos brancos na escola, a decorar nomes de estações e apeadeiros da linha do Norte de um Portugal desconhecido, também os afluentes do Dão, e com a árvore de Natal posta numa varanda mas enfeitada com flocos de neve. Com a Polana como praia civilizada e o Palmar ainda totalmente deserto.

Fui «retornada» bem antes do tempo de outros, odiei Lisboa – cinzenta, tacanha e suja – mas por cá fiquei, nem sei se para o bem ou se para o mal.

Hoje, a terra que vi quando cheguei a este mundo comemora 50 anos de independência. Carrega um passado e um presente duros. Espero que venha a ter pela frente um futuro bem melhor.


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25.06.1903 – George Orwell

 


George Orwell (pseudónimo de Eric Arthur Blair) faria hoje 122 anos. Nasceu em Motihari, nas Índias Orientais, onde ninguém deixa de reivindicar o facto, quando a voz corrente o considera oriundo de Myanmar. Mas, de facto, foi só em 1922 que Orwell chegou a Mandalay para frequentar a escola que o tornaria membro da Polícia Imperial Indiana naquela então colónia britânica. Manteve-se nessa função até 1927, ano em que contraiu dengue e regressou a Inglaterra.

Mais conhecida é o resto da vida que se seguiu como escritor, a participação na resistência durante a Guerra Civil de Espanha e a morte por tuberculose, em Londres, com 46 anos.

Uma citação bem actual, entre muitas possíveis:

«Uma sociedade torna-se totalitária quando a respectiva estrutura se torna manifestamente artificial, isto é, quando a respectiva classe dirigente perdeu a sua função mas consegue manter-se agarrada ao poder pela força ou pelo embuste. Uma sociedade assim, por muito tempo que persista, nunca pode dar-se ao luxo de se tornar tolerante ou intelectualmente estável. (…) Porém, para sermos corrompidos pelo totalitarismo, não é obrigatório que vivamos num país totalitário.» (Livros & Cigarros)

Uma curta entrevista:


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Terá sido a primeira guerra decidida por um algoritmo?

 


«Durante décadas, iniciar uma guerra exigia decisões humanas baseadas em provas, análises estratégicas e responsabilidade política. Hoje, esse modelo está a desmoronar. Estamos a entrar numa nova era da guerra por inferência algorítmica, onde a inteligência artificial (IA) já não apenas informa, mas pode desencadear ataques.

O bombardeamento dos EUA às instalações nucleares iranianas, alegadamente justificado por uma ameaça detetada por algoritmos da Palantir Technologies, é talvez o primeiro episódio concreto dessa transformação.

A acusação de que o Irão estaria a movimentar ou a montar um dispositivo nuclear não veio de espiões, nem da Agência Internacional de Energia Atómica (IAEA), mas alegadamente de uma inferência gerada por IA, operada por uma plataforma desenvolvida pela Palantir, empresa de análise de dados com fortes ligações ao Departamento de Defesa dos EUA e aos serviços secretos israelitas.

A narrativa passou rapidamente de hipótese algorítmica à decisão de um presidente impulsivo e consequentemente à intervenção militar. Este casamento entre software e soberania levanta inevitavelmente questões, como até que ponto pode um país delegar a sua segurança a uma empresa privada? E que implicações tem isso para a geopolítica global?

As instalações de Fordow, Natanz e Isfahan foram atacadas com bombas antibunker e mísseis de cruzeiro. No entanto, as imagens de satélite que se seguiram não revelaram danos visíveis ou colapsos estruturais. Os níveis de radiação mantiveram-se estáveis e não houve sinais sísmicos. O único impacto claro foi político, com o colapso da diplomacia como primeira linha de contenção.

Este cenário levanta-nos a dúvida se estamos a delegar decisões de guerra a máquinas ou a humanos. A IA é apresentada como objetiva e neutra, mas os algoritmos não são independentes, pois refletem os dados e os critérios com que são programados e treinados. O que se define como “risco” ou “ameaça” é uma escolha humana, disfarçada de cálculo matemático.

A Palantir, que fornece as ferramentas Gotham, Foundry e AIP/Mosaic, não é neutra. É uma empresa inserida no ecossistema do complexo militar-industrial, que lucra com a antecipação de ameaças. Quando essa antecipação se torna justificativa para a guerra, a diplomacia é substituída pelo reflexo automático. E o que vimos no Irão pode bem ter sido a primeira guerra desencadeada por premonição digital.

Mais grave é a erosão do escrutínio democrático. Um ataque justificado com “inteligência algorítmica classificada” escapa ao controlo de parlamentos, à verificação jornalística e ao debate público. A opacidade já não é apenas política, é técnica. E, nesse ambiente, os algoritmos transformam-se em escudos de impunidade.

Este ataque não marca apenas a entrada dos EUA no conflito entre Israel e o Irão. Marca o fim simbólico da verificação multilateral e o início de uma geopolítica automatizada. O que antes exigia consenso e inspeção, hoje basta que seja inferido por uma máquina.

No domingo passado, abriu-se uma verdadeira Caixa de Pandora no sistema internacional. As decisões mais perigosas para a paz mundial parecem estar a ser tomadas por máquinas que projetam comportamentos, sem provas concretas, nem validação humana. A confiança cega na tecnologia, vendida como eficiência, revela o seu lado mais sombrio, o de uma guerra gerada por dados mal interpretados.

Se outrora as guerras se venciam com território e armamento, hoje discutem-se em dashboards interativos e algoritmos preditivos. O que começou com uma linha de código pode terminar com uma cadeia de destruição impossível de travar, num mundo onde o juízo humano já não é pré-requisito para a guerra, mas uma variável descartável.»


24.6.25

Agora peixes

 


Vaso de vidro com dois grandes peixes esmaltados a nadar entre algas marinhas.
Moser.

Daqui.

Lei da nacionalidade?

 


Só há uma ameaça extrema e é a da direita

 


«Não há qualquer paralelo entre quem defende direitos cívicos e o respeito pelos direitos humanos e quem os ataca em nome do racismo e da xenofobia. São combates opostos. O primeiro é digno e humano, o segundo repugnante e desumano. Compará-los é condescender com a violência odiosa. Quem estabelece esse paralelo está prestes a apregoar que a distinção entre Martin Luther King e o Ku Klux Klan era uma questão de cor. (…)

A avaliar pela intenção legislativa do Governo, e mensagem insistente, os imigrantes devem ser uma ameaça à segurança nacional. A repetição da ideia de que a imigração estava descontrolada e que o país estava de portas escancaradas criou aquele medo que se entranha até nas aldeias que nunca viram um desses perigosos imigrantes. Daí que seja necessário combater o reagrupamento familiar — o CDS deveria ser frontalmente contra este ataque aos valores da família — ou retirar a nacionalidade a quem cometeu crimes graves, como se o número de pessoas nestas condições fosse estratosférico, e por aí fora. (Já agora, o USA Today acaba de revelar que Portugal é a primeira opção para quem vive nos EUA e quer emigrar.) (…)

Só há uma ameaça extrema e é a da direita A verdade irrefutável é que a ameaça à segurança nacional não advém nem do radicalismo islâmico nem da extrema-esquerda. A violência à esquerda é uma arqueologia. A principal ameaça à segurança nacional e às instituições da democracia fala português, é nacionalista, racista, xenófoba e é de extrema-direita.»


A mulher de Lot olhou para trás e morreu

 


«O PS ficou atrás da extrema-direita. O Bloco e o PCP sofreram as suas piores derrotas eleitorais. Ninguém no centro ou na esquerda determina a política e a consequência imediata destes desastres tem sido confusão e medo. Por isso, e como seria de esperar, instalou-se uma cacofonia de ajustes de contas: editoriais sanguinolentos anunciam a extinção da esquerda e comissionistas esfuziantes festejam a vitória, enquanto a oposição não se entende sobre o que fazer, como fica demonstrado pela multiplicação de putativos minicandidatos nas presidenciais, a começar pelos do PS, em que se prenunciam três que são zero. Contra esse caos, venho aqui apresentar duas teses: a de que o regime já mudou e a de que, em consequência, a alternativa não é (só) resistir.

O regime cinquentenário acabou

A nova república instaurada pela revolução de Abril alicerçou-se em três realidades: os efeitos reais desse tempo inaugural, a reconfiguração fixada pelo 25 de Novembro e um sistema de alternância entre dois partidos dominantes. Esses pilares deram origem ao compromisso consagrado na Constituição, que é de 1976, e o modelo adaptou-se nos cinquenta anos seguintes. Agora, esgotou-se. Logo, não estamos a viver um novo ciclo eleitoral, por definição passageiro, mas sim a instalação de um novo regime.

A desagregação do compromisso anterior responde a uma mudança estrutural da relação de forças. Ela resulta da imposição, pelos sectores dominantes da finança, de uma tripla garantia: primeiro, corrigir a estagnação da acumulação de capital nas últimas décadas por via do abaixamento histórico dos salários (e daí a precarização do trabalho qualificado e a promoção da imigração sem papéis); segundo, assegurar as rendas amparadas pelo poder político, do que depende a fortuna dos oligarcas; e, terceiro, que a desigualdade extravagante, a matriz deste regime, seja blindada pela intensidade da submissão social. Esse é o combustível da vaga de fundo que leva o liberalismo económico a escolher o autoritarismo. A viragem de milionários e operadores políticos para o fascismo é a sua expressão, pelo que Trump não é uma anedota, é o rei do mundo. O novo regime não é uma minhoca ocasional, é o fruto designado; não é um azar, é o triunfo de um novo sistema de poder em que a extrema-direita se torna o vector do governo.

Ora, espantosamente, o que predomina na esquerda é a negação da evidência desta mutação. A esquerda está desarmada por não querer ver o inimigo. Multiplicam-se explicações contextualizantes (que há um ressentimento social pela inconsistência das políticas públicas) que conduzem a desculpabilizações facilitistas (os inocentes não se fascistizam) e a conclusões débeis (bastaria corrigir essas raízes materiais da frustração) e, sobretudo, inoperantes, pois suplicam aos que cavaram a crise de confiança que façam o contrário do que determinam. Ora, a crise social não resulta de erros; pelo contrário, é o resultado do sucesso do mercado e o mercado é insaciável. Por isso, nenhum governo deste regime brutalista corrigirá o colapso na saúde ou na habitação, antes estará empenhado no desmantelamento do SNS e na subida dos preços das casas, duas das condições para a acumulação das rendas oligárquicas.

Criar povo

Nos escombros do antigo regime brilham ainda algumas pepitas, como as dos direitos constitucionais que dificultaram o corte nas pensões na troika (embora não impedissem a bazuca do mercado na habitação ou na corrosão da democracia). Nelas se pode apoiar uma resistência frentista que não abdique de nenhum terreno de luta onde possa juntar povo. Contudo, não haja ilusões: esperar uma mão salvadora vinda das glórias do passado, ou olhar para trás como na lenda da mulher de Lot (a Bíblia ignora o seu nome), só nos transformará em estátuas de sal.

Dessa inquietação resultam as respostas fugidias que nos são apresentadas no caos actual e que merecem atenção. Uma é a renúncia: a morte da alternância deu lugar à cínica “teoria dos três corpos”, que apela a que a esquerda apoie o PSD para que este fique puro, sem sequer perceber que esse navio já zarpou e que o único corpo político que beneficiaria do vazio da esquerda seria o Chega. Outra é a adaptação por via de partidos Zelig que, como no filme de Woody Allen, digam a cada pessoa o que gosta de ouvir, esperando que a banalidade seja uma barragem aos maus espíritos. A terceira é abdicar dos direitos das mulheres ou LGBT porque excitam os inimigos e é preciso aplacá-los aceitando a dose certa de machismo. A quarta, ainda mais perigosa, é uivar com os lobos, desumanizando os imigrantes ou apoiando o exterminismo armamentista, fugindo assim de qualquer aresta em que a oposição seja a exigência da decência. Nestas opções a esquerda morreria e todas elas estão aí ao seu dispor.

A alternativa depende, creio, de um novo começo em duas ousadias para criar povo. A respiração, primeiro: só haverá esquerda viável fora das redes Zuckerberg-Musk, onde se podem dinamitar adversários – o encarniçamento reaccionário contra a Mariana é um caso de estudo, uma mulher jovem é lapidada se dirigir uma força de esquerda – e trivializar a cultura da ilusão, endeusando a meritocracia ou a superioridade rácica. Não se pode vencer esse poder algoritmo da bolhificação e do fascismo emocional no seu próprio terreno. E, se devem ficar alguns guerrilheiros por detrás das linhas inimigas, só haverá esquerda popular se viver em modos de comunicação livres. É preciso criar um novo espaço público, sem a toxicodependência que nos degrada. Só fugindo da cloaca o povo se reconhecerá nas suas comunidades.

E a política, depois: se o novo regime se define pela desigualdade classista da acumulação de capital, apoiada em rendas e no terror do empobrecimento, é aí que se deve definir o combate. Não serão promessas de remendos do velho regime que mobilizarão quem sofre a espera das consultas hospitalares ou quem sabe que só terá casa se morrer um familiar. Faltar-lhes-ia credibilidade e, pior, abdicariam do futuro. Por isso, juntar só para resistir seria aceitar a derrota passo a passo, o destino da mulher de Lot. Seria renunciar a uma esperança que levante. Em contrapartida, quando congressos unitários para alternativas declararem oposição a este novo regime e enunciarem caminhos constituintes de uma política social transformadora, praticável e consistente, o movimento falará a uma voz forte e teremos o início da ofensiva da esquerda para derrubar esta nova prisão. É no tempo da sombra que a luz é mais necessária.»


23.6.25

Não é azul mas…

 


Vaso Anémona, 1913.
René Lalique.


Daqui.

Amigos do Porto, hoje é que é

 



Boris Vian morreu num 23 de Junho

 


Boris Vian morreu com 39 anos, vítima de crise cardíaca, em 23 de Junho de 1959. Escritor, engenheiro mecânico, inventor, poeta, cantor e trompetista, teve uma vida muito acidentada e ficou sobretudo conhecido pelos livros de poemas e alguns dos seus onze romances, como L’écume des jours e L’automne à Pékin.

Célebre ficou também uma canção – Le déserteur – que foi, durante muitos anos, uma espécie de hino para todos os que recusavam a guerra – incluindo muitos portugueses. Lançada durante a guerra da Indochina, foi grande o seu impacto e acabou mesmo por ser proibida por antipatriotismo, na rádio francesa, pouco depois do início da Guerra da Argélia.


(Serge Reggiani : Dormeur du Val , de Arthur Rimbaud, e Le déserteur de Boris Vian.)

Mas não só:


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Um louco guia um cego para tentar repetir o Iraque

 


«Antes que a memória recente se perca, foi Israel que atacou o Irão, ao que se seguiu um ataque dos Estados Unidos, por ordem do mesmo presidente que pôs fim ao acordo de supervisão do programa nuclear do país atacado. Ache-se o que se achar do regime iraniano (imaginam o que acho de um regime teocrático que desrespeita os direitos das mulheres e reprime os opositores), é ele que se está a defender, não o oposto.

Logo depois de fazer um ataque que diz ter sido um sucesso, Trump disse que o poderia continuar, assumindo o que Israel já assumira: que o risco de o Irão ter armas nucleares não passou de um pretexto. Um pretexto para Netanyahu puxar Trump para uma guerra. Em Telavive, é claro que se quer derrubar o regime de Teerão sem saber o que vem depois, porque é no caos que Netanyahu sobrevive. Em Washington, cada um insinua coisas diferentes sobre os objetivos da intervenção.

Parafraseando Lídia Jorge, que citou Shakespeare: um louco guia um cego. O primeiro sabe que busca o que Bush procurou no Iraque. O segundo talvez acredite (acreditará?) que a sua intervenção foi mesmo por causa do risco de uma bomba nuclear e confirma o monumental falhanço da sua política externa: prometeu tirar os EUA de todas as guerras, mas não conseguiu dar um passo na direção da paz na Ucrânia e envolveu os EUA num confronto direto com o Irão, sem autorização do Congresso.

Em 1995, Netanyahu disse que, daí a três ou cinco anos, o Irão teria a bomba; em 1996, disse que o tempo se estava a esgotar; em 2006, que estava muito próximo; em 2012, faltavam seis meses; em 2015, estava a semanas; em 2018, faltava mesmo muito pouco tempo; em 2025, era daqui a poucos meses. E, no entanto, não temos qualquer evidência de que o Irão estivesse próximo de uma arma nuclear.

Trump até teve, para acompanhar a narrativa israelita, de dizer, na sexta-feira, que a diretora nacional de Inteligência, Tulsi Gabbard, estava errada ao sugerir que não havia provas de que o Irão estivesse a desenvolver uma arma nuclear. E teve de ignorar o diretor-geral da AIEA, que disse, na quarta-feira, que o relatório da AIEA foi deturpado e que não há "nenhuma prova de um esforço sistemático do Irão para conseguir a bomba atómica". Ontem, reiterou que não dispunha dos elementos necessários "para demonstrar que o Irão planeava desenvolver uma arma nuclear".

Estamos, é bom recordar, a falar de um país que foi atacado por outro, que, esse sim, tem armas nucleares à margem de qualquer tratado ou supervisão internacional. O que parece ser ignorado, apesar da agressividade, desrespeito sistemático pelo direito internacional e atual participação num genocídio de Israel.

Já vimos isto tudo. A assunção, contrariando a informação dos serviços de inteligência, da ameaça iminente de uma arma de destruição em massa. O ataque preventivo que o direito internacional não permite. A tentativa de mobilizar as opiniões públicas com a natureza ditatorial e atentatória aos direitos humanos do regime do país atacado, como se o novo regime sírio, cúmplice de Israel, não fosse liderado por um carniceiro vindo da Al-Qaeda e o maior aliado dos EUA na região não fosse a Arábia Saudita, que nega direitos às mulheres e ataca direitos humanos e liberdades cívicas. A promessa de reinvenção do Médio Oriente, ignorando as consequências destas aventuras. Os delírios de mudar um regime através de uma ofensiva externa, sem fazer ideia de quem sejam os sucessores e que dinâmicas internas serão libertadas. Visto daqui, a utilização da Base das Lajes é a cereja em cima do bolo no déjà vu iraquiano.

A intervenção no Iraque foi responsável por um número ainda indeterminado de mortos, mas que andará pelas centenas de milhares. Foi responsável por um vácuo de poder, lutas sectárias e uma desestabilização que levou ao nascimento e crescimento do Estado Islâmico, que acabaria por transbordar para a mortífera guerra da Síria que, por sua vez, levaria a mais umas centenas de milhares de mortos e estaria na origem da onda migratória que atingiu a Europa e fez crescer a extrema-direita. Na altura, não faltou quem explicasse que a queda da primeira peça do dominó faria cair as seguintes, encaminhando a região para a democracia. Encaminhou-a para o caos, como os que se opuseram à guerra previam.

Agora, um homem que foge do seu próprio destino (a prisão) acredita que pode moldar toda a região aos seus próprios interesses, prendendo a maior potência do mundo e a paz internacional à sua infinita arrogância. E o mundo parece estar disposto a permiti-lo.

Mesmo sendo esta aventura liderada por dois irresponsáveis encartados, um deles com um longo currículo de crimes de guerra e contra a humanidade, vejo os mesmos que deixaram cair uma lágrima furtiva quando viram os tanques americanos chegar a Bagdad a recuperarem a superioridade moral de quem não aprendeu nada com a história. Até estou à espera das mesmas acusações de apaziguamento e cumplicidade com tiranias que então se ouviram.

Só que o Irão não é o Iraque. É uma sociedade muito mais consolidada, uma civilização milenar, uma potência regional e um território impossível de invadir que controla o estreito de Ormuz, por onde circula 20% do abastecimento global de energia. As caricaturas de um regime que, sendo ditatorial, corresponde a uma sociedade e uma realidade política bastante mais complexas e contraditórias do que eram as do Iraque explicam a leviandade com que se está a abrir esta Caixa de Pandora.

Trágico é ver o mundo depender de os líderes da maior teocracia do mundo não retaliarem (como teriam legitimidade para fazer) e não aprenderem nada com estes dias. Se aprenderam, concluirão que, se continuarem a negociar com uma administração que não mantém a mesma palavra durante 24 horas, continuarão a ser atacados enquanto o mundo exige que se sentem na mesa de negociações de que nunca saíram, e que o melhor a fazer para a sua defesa é terem mesmo a arma nuclear. A tragédia desta ação é explicar ao Irão que o melhor para eles é o pior para todos.»


22.6.25

Um pouco mais de azul (33)

 




Raça Lusitana? Passámos a cavalos?

 


Paris 1889

 


Ao pé da Torre Eiffel em 1889, podia-se visitar chalés que retractavam a história da habitação em todo o mundo, projectados por Charles Garnier, o arquitecto da Ópera. Aqui, um chalé escandinavo no qual foi recriada a atmosfera de uma casa de pescador.

Trabalhe mais e mais barato

 


«Aquilo que o Programa do Governo inscreve em forma de compromissos e em esboços de políticas, as afirmações do primeiro-ministro e ainda as análises feitas pelos partidos em torno da sua discussão permitem concluir que iremos ter: i) aprofundamento do baixo perfil de especialização da economia e enfraquecimento da indústria; ii) muito trabalho disponível, mas mal pago e desprotegido; iii) direitos sociais mais frágeis com perda de cidadania, menor solidariedade e mais injustiças.

A política industrial passou para mero apêndice na gestão do PRR. Não há abordagens sustentadas sobre os setores e a “ambição industrial 2040”, propalada noutros tempos, desapareceu. Chama-se industrialização ao aumento de investimento belicista. Em contrapartida, aparece um ponto novo, “14. Lançar a Estratégia Turismo 2035”, que também tratará da “valorização dos ativos endógenos”. Ora, se estes forem os que temos tido, preparemo-nos para habitação ainda mais cara, e para muito trabalho intensivo e precário. Desvalorizar a indústria é sempre baixar a qualidade do emprego e travar a modernização tecnológica.

Este cenário alimenta a imigração ilegal, estratégica para a implementação de uma política de baixos salários. A inexistência de acesso a habitação digna expulsa os jovens portugueses e uma parte dos imigrantes de que precisamos. E assim se cria o caldo para a ampliação dos discursos de ódio e bloqueios de futuro.

O trabalho é sempre “a questão central” na definição de boas ou más políticas. São determinantes as condições em que é prestado, o valor que produz e a forma como é distribuído, como ancora as políticas sociais. Ora, o Capítulo 12. Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, repete a lengalenga do aumento da produtividade sem tratar de compromissos que garantam a justa repartição do aumento do produto. O grande objetivo é criar nos trabalhadores a ilusão de receberem mais no fim do mês a troco de mais baixo valor das suas futuras reformas, ou destruindo o caráter específico dos subsídios de férias e de Natal que, diluídos nos 12 meses, evaporar-se-ão em poucos anos. Em vez de melhores salários oferecem-se “prémios” que possam ser retirados a qualquer momento e umas migalhas nos impostos.

Portugal é um país de muita pobreza. Precisamos de solidariedade transformadora. A situação não é catastrófica porque temos direitos sociais fundamentais com caráter universal e solidário e porque há apoios sociais para os mais desprotegidos. O governo reconhece estes factos. Todavia, em todo o programa utiliza a palavra solidariedade apenas seis vezes a enfeitar títulos. E somente uma vez, pg. 208, reclama “obrigações de solidariedade”. Para os muito ricos? Não. Somente para pessoas do rendimento social de inserção que o passam acumular com algum outro subsídio.

Vamos ter as casas de trabalho britânicas dos séculos XVIII e XIX em que o teto e a alimentação eram “oferecidos” em troca de trabalho não remunerado?»