«Desperto, ainda trémulo de café por fazer, e deparo-me com a notícia de sempre: António Vitorino não será candidato à Presidência da República. Uma vez mais, o país é brindado com este ato de não-intenção, este ritual sibilino de recusa que se repete, com zelo quase litúrgico, em todos os atos eleitorais, quaisquer que eles sejam. Presidenciais, autárquicas, europeias, legislativas ou eleição da mesa do condomínio: lá está Vitorino, recusando com gravidade o que ninguém ousou sugerir com entusiasmo.
Já não é uma notícia, é um género literário. Há sonetos, haikus e “António Vitorino recusa ser candidato”. Publicações sazonais, previsíveis como o equinócio, reconfortantes como um pudim flan, e ligeiramente mais cómicas. Há quem colecione selos, o nosso jornalismo coleciona negativas vitorinianas. Brevemente, nas bancas: “As 100 melhores vezes em que António Vitorino disse que não”.
E atenção: considero-o um homem sério, inteligente e competente. É precisamente isso que torna tudo ainda mais delicioso. Um estratega da recusa. Um mestre da abdicação antecipada. Um atleta do “não, obrigado”.
É comovente. Uma espécie de Dom Quixote da abstenção, que investe com brio contraintenções vagas e convites implícitos. Um Cincinnatus que abandona o arado sem nunca ter estado nas imediações de um campo. Um cavalheiro do renascimento que, ao entrar num salão, saía logo de seguida, por puro pudor republicano.
Eu, por mim, fico expectante pela próxima renúncia pública. Talvez anuncie que não será campeão olímpico dos 100 metros. Ou que, ponderadas todas as circunstâncias, não aceitará ser Patriarca de Lisboa. Ou que, em consciência, prefere não assumir o comando da Frota Estelar. Seja como for, manter-se-á firme. O homem que, com nobreza clássica e precisão suíça, insiste em não ser aquilo que, com total dignidade, não tenciona vir a ser.»
Luís Galego no Facebook.

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