26.3.22

Alice Neto de Sousa - «Março»



 

Poema original, criado para a abertura das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril.


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Um outro Putin


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O tempo não passa sempre da mesma maneira

 


«Nestes dias comemora-se a ultrapassagem do tempo da ditadura pelo tempo da democracia. Não sei se sou só eu que se estranha com esta situação: olhando a partir do meu tempo “vivido”, a ditadura demorou muito mais tempo do que a democracia. Muito mais tempo, a “longa noite”. E no entanto, eu vivi mais tempo em democracia do que em ditadura e muito mais ainda se deixar de contar a infância. É “parece-me” com todas as limitações dessa subjectividade. E, no entanto, a aceleração da história ou a sua estagnação existem para além do “parece-me”, sendo que o tempo do capitalismo industrial, da sociedade de consumo, dos totalitarismos do século XX, das democracias é sabido que é tido como sendo acelerado, por exemplo comparado com a “lentidão” do tempo medieval. É um terreno historicamente complicado, propício à asneira, mas, na verdade, “parece-me”… Não é ciência, é percepção.

Olhando para os 48 anos de ditadura, o tempo parece-me muito longo; os 48 anos de democracia um instante incomparável com o anterior. Como é possível? Escrevendo sobre os anos de 1926 a 1974, passo por períodos muito definidos de história, os anos do estertor da República com as últimas tentativas do “reviralho” até 1934, a consolidação do Estado Novo até à guerra, e depois o pós-guerra, fim dos anos 40 e década de 50, até pelo menos o “furacão Delgado” que abre uns anos antes a década de 60, com a Guerra Colonial, os conflitos estudantis e operários e depois a ruptura final com a queda de Salazar, o “caetanismo” e por fim o 25 de Abril. Nenhum historiador consegue escrever sobre estas quase cinco décadas sem fazer distinções entre tempos, mas há constância (ou constâncias) na ditadura, a começar por ser isso mesmo, uma ditadura. Anda tudo devagar.

Por outro lado, os 48 anos de democracia parecem-me muito rápidos. É certo que há os anos de 1975-6, entre o PREC e o 25 de Novembro, e depois a Constituição. Menos lembrado está o grande retorno de África, mas esse esquecimento pode ter a ver com a dificuldade de lembrar a culpa, a dupla culpa da guerra e do modo do fim da guerra. E depois há a queda de Spínola, a ascensão de Eanes e Soares, a ruptura da AD e a morte de Sá Carneiro, a sucessão de governos e presidentes, o vaivém entre o PS e o PSD, Cavaco, Sócrates, Passos, Costa, a “geringonça” e nos últimos anos a entrada no sistema político do populismo do Chega e do anarco-liberalismo da IL.

Por muito que estes diferentes acontecimentos marquem momentos da vida da democracia, parecem ter uma duração curta e ter menor valor estrutural do que os grandes momentos da relação da ditadura com a história do século XX. É também um problema de “pontos sem retorno”. O golpe de 1926, as revoltas do “reviralho”, o grande saneamento de 1926 a 1934, militar e civil, os anos do fascismo lusitano puro com braço ao alto, marchas de verde nas ruas, repressão violenta, a vitória franquista na Guerra Civil de Espanha, o Salazar servidor de dois amos, Hitler e Roosevelt, a “democracia orgânica”, a campanha de Delgado, a perda de Goa, a Guerra Colonial, Marcelo Caetano e o 25 de Abril, tudo foram momentos de mudança qualitativa, pontos em que se pode definir um antes e um depois. Como Salazar estava lá quase todo este tempo, a face do regime era sempre a mesma, tudo parecia “evolução na continuidade”.

Na democracia, também há desses pontos, mas são menos. Um é claramente o 11 de Março e o 25 de Novembro, as eleições de 1975 e a Constituição. Este período é temporalmente curto, de menos de três anos. A seguir a vitória da AD, em 1979, é outro ponto sem retorno pelo facto de, pela primeira vez, haver uma genuína alternância de governo, o mesmo se passando com a sequência da vitória presidencial de Soares e a maioria absoluta de Cavaco. Depois disso há muitos acontecimentos relevantes, mas, à luz dos de 1974-1989, menos intensos, sentidos como uma sequência normal, em que há mudanças, mas menos dramaticidade. São “pontinhos” sem retorno, mas numa constante de democracia plena, institucionalizada, sem grandes crises de regime, como nos anos do PREC. Aliás, parece que, à medida que os anos de democracia e liberdade vão passando, se instala um consenso de regime mais pacífico, e por isso sentido como uma normal respiração do tempo, como se nada acontecesse. Como se o tempo que nos é exterior, o tempo da história, se tornasse um tempo interior, nosso, subjectivo, mais moldado pelo passar da idade física e por isso medido apenas pelos aniversários. Comparado com 48 anos de claustrofobia e medo, sem liberdade, com polícia política e censura, guerra em África, o tempo da democracia parece mais suportável, menos pesado, logo, mais rápido. Custa menos a passar, há menos “fora” e mais “dentro”.

Referi-me muitas vezes a um tempo que é no essencial político, 48 anos de ditadura versus 48 anos de democracia, e cuja rapidez ou lentidão também se manifesta na economia, na cultura e na sociedade, mas aí há fenómenos qualitativamente diferentes com outros “tempos” com outras dependências, quer do bem-estar material, quer das modas, quer da sociabilidade. Mas também aí a claustrofobia e a autarcia paralisavam a mudança e, por isso, o tempo parecia mais lento antes de 1974. Sendo assim, um dia mais de democracia face à ditadura não me mobiliza muito, seja qual for o balanço das alterações, as coisas que verdadeiramente mudaram foram em 25 de Abril de 1974. A força dessas mudanças, a força de uma revolução, a força da liberdade, a força da democracia fazem-me estar hoje como no dia 26 de Abril, sabendo que no dia anterior tudo tinha mudado. Em bom rigor, começou a haver tempo, dia, manhã, meio-dia, tarde, fim de tarde, crepúsculo, noite e madrugada, e não só noite.»

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25.3.22

Política para um Governo só

 


Miguel Guedes
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A crise cega

 

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Marcelo para além do admissível

 

Observador, 24.03.2022

O presidente da República terá feito ontem estas afirmações. Em Portugal, na data em que se comemorava o mais famoso Dia do Estudante, comparar as lutas actuais com as de 1962 é, além de um disparate, menosprezar a mudança radical que a Revolução de 74 provocou. É Marcelo igual a si próprio, o fura-greves de outra crise da mesma década a vir à tona de água e a ofender quem lutou e sofreu realidades cujo sentimento ele desconhece. E é inadmissível porque tudo tem limites.
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A volúpia da guerra

 


«Com todos os objetivos iniciais de Putin falhados, a guerra de fim incerto chegou a um impasse e fará cada vez mais vítimas civis. Impacientes com o horror, muitos pensam como se já estivéssemos na III Guerra Mundial. Assumi-lo, quando a guerra continua circunscrita a um território e a dois beligerantes diretos, é descartar os passos para impedir que alastre. E nasce da tentação de escrever a história do presente. Da forma mais fácil: decalcando-a do passado, quando os níveis de integração económica internacional eram diferentes, não havia uma grande potência fora do mundo ocidental e não tínhamos entrado na era nuclear. Partindo do mesmo anacronismo que levará a Rússia ao desastre, ninguém quer estar no lugar do apaziguador. Sem adversativas quanto ao lado de onde vem a agressão, é onde permaneço.

Os europeus olham com espanto para uma guerra “em plena Europa”. Para o cerco a Mariupol e as suas valas comuns. Para a insanidade criminosa do tirano. Para as bombas que caem numa grande capital europeia. Para a ironia “desnazificadora” de Putin, que matou, em Kharkiv, Boris Romanchenko, 96 anos, sobrevivente de Bergen-Belsen e Buchenwald e ex-combatente do Exército Vermelho. Estamos, pela primeira vez em 80 anos, a ver tudo pelos olhos das vítimas. E descobrimos que as guerras nunca acabaram. As tantas em que participámos como agressores foram desmateria¬lizadas, com as vítimas vistas de longe. E é por isso que a revoltante imagem de europeus massacrados nos faz regressar a um passado longínquo, abalando o conforto que este mundo nos tem oferecido. Expostos diaria-mente a uma tenebrosa realidade que desconhecíamos, as nossas cabeças regressaram ao último momento em que isto foi possível. E ouvem-se nos discursos políticos as botas cardadas do passado.

Hipnotizados pelas imagens dos horrores da guerra a que somos expostos 24 horas por dia e a que fomos asseticamente poupados durante décadas, muitos flertam com o enfrentamento direto que levaria a uma guerra nuclear. Tal como as guerras que fizemos e não vimos, este risco transformou-se numa abstração. Numa doença crónica esquecida. Dizem-nos que só não a temendo poderemos lidar com um bully. Que, caso contrário, ele nos verá como “medricas”. Putin não é apenas um bully, e já o devíamos ter percebido. Mas a aventura nuclear, que uma simulação da Universidade de Princeton diz que provocaria 34 milhões de mortos e 57 milhões de feridos logo no seu início, não é a única que nos propõem. Joe Biden exige que a China escolha um lado. Como precisamos dela como mediadora, o nosso problema é mesmo se o escolher. A não ser que, numa caminhada sonâmbula para o abismo, haja pressa para uma clarificação que nos faça entrar numa nova ordem mundial, com a China, a Rússia e talvez a Índia de um lado e EUA e Europa do outro, pondo fim a uma globalização em que estamos em perda.

Aquilo a que convencionámos chamar de Ocidente acreditou que um capitalismo global desregulado traria a prosperidade e a democracia, bastando intervenções cirúrgicas — militares e brutais, se preciso fosse — para manter o domínio sobre os recursos. Só que o mundo que dominámos mudou. Sem disparar um tiro, com um capitalismo de Estado e planeado ainda mais implacável, a China está a tomar o nosso lugar. Em África, onde oferece nem menos nem mais liberdade, nem menos nem mais paz, nem menos nem mais respeito pelos direitos humanos, já decide tudo. E faz o seu caminho no resto do mundo. Os EUA, que uma esquerda mais antiamericana do que anti-imperialista ainda vê como o centro de todas as coisas, são um império poderoso mas em declínio. A Rússia estrebucha violentamente em busca de um passado que já nem sequer é próximo. E a Europa, entretida com a sua desindustrialização e megalomanias federais, transforma-se no parque de diversões do mundo. Naturalmente, desejamos regressar a um jogo que conhecemos: o da Guerra Fria. Com novos e velhos atores. Só que ela não volta, porque tudo mudou e é mais complicado.

Achamos que somos atrativos porque vivemos em democracias. Mas, ao verem como deixámos os sírios morrerem no Mediterrâneo enquanto nos mobilizamos (e bem) para receber ucranianos, o resto do mundo percebe que os nossos valores são, como se lê nos estabelecimentos comerciais, para consumo exclusivo da casa. Duvido que nos queira acompanhar numa guerra planetária por uma coisa que não lhe diz respeito. Muitos conhecem a guerra de sempre e não são tão impressionáveis perante os seus horrores. Também conhecem o neocolonia¬lismo e não lhes faz diferença se é chinês, europeu ou norte-americano. Nós já não somos o centro do mundo nem temos o poder de antes. Por isso, em vez de nos deixarmos enfeitiçar pela volúpia da guerra, julgando que ela salvará as nossas democracias, temos de nos concentrar em garantir, por agora, que a China não dá a mão a Putin. Há solução para a guerra? Apenas provisória, injusta e urgente. Quem procura resolver agora todos os impasses do mundo quer uma coisa mais grandiosa. Mas os seus desejos não nos levarão a lugares muito diferentes dos que Putin procura.»

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24.3.22

Quando as orquestras desafinam

 

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O almoço do 60º

 


Ainda foram centenas os ex-estudantes de 1962, de outras crises da década (1965, 1969) e «assimilados», que se organizaram como todos os anos e almoçaram hoje na velhinha cantina universitária de Lisboa para comemorar o 60º aniversário do Dia do Estudante.

Só a pandemia interrompeu este ritual, cada vez com mais ausências que a lei da vida torna inevitáveis, mas que ainda dura com a mesma cumplicidade.
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A crise académica, 50 anos depois — e agora?

 


Dez anos depois, retomo este texto de JORGE SAMPAIO, publicado no Expresso de 17.03.2012, por ocasião das comemorações do 50º aniversário do Dia do Estudante.

«Comemora-se agora a o cinquentenário da crise académica de 62. Seria, porém, redutor ficarmos no agridoce conforto de nostalgias, pois essa data – e o que significou – pede-nos sobretudo a pedagogia de um inventário e o dever de um testemunho. E isto porque, ao olharmos para trás, voltamos a sentir que essas foram horas de aprendizagem de vida e de cidadania, de múltiplos desafios, de inevitáveis testes de carácter. Mas foi também um raro momento de unidade, em que muitos descobriram como construir o triunfo da razão sobre a força, ou da justiça sobre a prepotência. 

Vale, por isso, a pena assinalar, sobretudo junto das novas gerações, alguns fundamentos de uma crise académica que lhes parecerão anacronicamente absurdos. Quando em março de 1962 se procurou comemorar o dia do estudante, o regime escondia mal as feridas acusadas pela perda de Goa, pela insurreição em Angola, pelo frustrado assalto ao quartel de Beja, e por vários indícios de desgaste postos a nu pela falhada tentativa do general Botelho Moniz. Tudo isto se começava a refletir numa nova dinâmica do movimento associativo que, em Lisboa, congregava mais de uma dúzia de associações e organismos autónomos, coordenados por uma estrutura informal - a RIA (reunião interassociações). O ato da inauguração do edifício da reitoria dera já um sinal: coubera-me não aceitar, como representante dos estudantes, a censura ao texto que me propunha ler, o que motivaria a ausência institucional do corpo discente na cerimónia. A posterior proibição do dia do estudante atuou como faísca, ao mostrar a face arbitrária do governo, a arrogância do seu comportamento pela recusa do diálogo e pela desautorização do reitor, num atropelo à então débil autonomia da universidade. Depressa se abriram as portas da crise: encerramento de instalações, presença e repetidas cargas da polícia de choque na cidade universitária, maciças concentrações de protesto de estudantes no Estádio Universitário (a que inesperadamente se juntaria o reitor Marcelo Caetano) e na Alameda da Universidade, um justamente famoso jantar de confraternização de estudantes e alguns professores, por convite pouco antes feito pelo reitor devido ao fecho da cantina, o qual originaria nova carga e consequentes correrias. De tanta inabilidade de um governo acossado, surgiria uma inédita unidade de estudantes e professores: demissão do reitor e dos diretores da Universidade Clássica; comunicado do Senado (apenas formado por docentes) defendendo a autonomia universitária; e a decisão, com o magnífico apoio de Coimbra, de iniciar o luto académico. A crise, entre recuos, faltas de palavra e endurecimento do governo, persistiria até julho, e, na barricada universitária, as associações, sob a coordenação da RIA, iriam atravessar dias arrebatados, numa febril cooperação e capacidade organizativa cuja eficácia ainda hoje me surpreende. Foi um tempo repartido por reuniões pela madrugada fora; pela desmontagem das notas oficiosas através de comunicados informativos que a PIDE nunca conseguiu calar; por experiências de alguma incipiente clandestinidade e encontros vagamente conspirativos; pela mobilização de apoios de intelectuais e artistas; e, para vários, o primeiro contacto com a prisão. 

Que pedíamos, afinal? Um diálogo sobre a liberdade de pensamento e ação; a real autonomia das universidades; a revogação do estatuto universitário castrador do livre associativismo; um acesso à universidade sem discriminações económicas, políticas, religiosas ou rácicas; uma orgânica universitária com presença dos alunos nos órgãos de gestão.

Passados estes 50 anos, podemos orgulhar-nos de ter encetado a defesa de um caminho que sabíamos se encontrava do lado certo da história. Os fundamentos essenciais dessa universidade que havíamos sonhado são hoje, afinal, os pilares que as instituições universitárias defendem como cioso património, por deles depender a sua manobra de ajustamento a um mundo asperamente mutável e competitivo. Como antes pressentíamos, é num quadro de real autonomia que as universidades poderão hoje dar resposta efetiva aos desafios inéditos que implicam um inevitável espírito de mudança e de autoavaliação das suas debilidades ou omissões. Novo, e decerto difícil, é este seu caminho, a exigir o repensar de orgânicas internas e ofertas educativas, e a requerer coragem decisória, de que a programada fusão de duas universidades de Lisboa é exemplo a merecer aplauso. Porque só assim poderão construir a sua posição no seio do universo universitário global, e contribuir, como responsáveis fontes de saberes e de produção de conhecimentos, para a adequada formação e sentido empreendedor dos recursos humanos ao seu cuidado e, também, para o acompanhamento inteligente e solidário dos próprios problemas nacionais. 

Há 50 anos, separava-nos da livre Europa um regime cada vez mais isolado na sua teimosa resistência à realidade histórica. Olhávamos, então, com inveja para a outra Europa que começara há pouco o seu projeto de integração, paz e prosperidade. A ela chegaríamos uma vez alcançada a democracia, e hoje nela partilhamos as angústias de uma crise que põe em risco os fundamentos políticos e éticos da mais relevante iniciativa diplomática dos nossos dias a que tanto aspirámos. E isto porque aos seus inquietos cidadãos as instituições da UE têm oferecido um arrastado acervo de omissões, fragilidades decisórias e duvidosas terapêuticas conjunturais desprovidas de uma tranquilizadora visão de futuro. Em vez dos equilíbrios fundadores assiste-se ao enfraquecimento do método comunitário a favor de iniciativas intergovernamentais; abrem-se brechas nos equilíbrios do triângulo institucional, com acentuada perda do antigo peso de iniciativa da Comissão; deixa-se instalar no discurso dos seus líderes a imagem de divisão entre um norte supostamente virtuoso e um sul irresponsável; pouco se tem feito para evitar a erosão do antigo relacionamento gerador de consensos. Perante este cenário de declínio face aos novos polos do poder mundial, importa lutar para que uma lúcida vontade política saiba criar no espaço europeu uma perspetiva de futuro, através de políticas que, a par da necessária estabilização orçamental proteja de recessões, promovendo programas de crescimento, nomeadamente através de uma renovada e dinamizadora alocação de fundos estruturais; por uma crescente harmonização fiscal que atenue os atuais nichos diferenciadores; pelo estabelecimento de uma real barreira protetora dos Estados-membros sob o frio ataque dos mercados financeiros; por uma ação mais liberta de constrangimentos do BCE. Decerto que tudo isto é complexo. Mas atrevo-me a pensar que nenhum responsável político queira ficar na história como não tendo sabido impedir a fratura de um projeto que trouxe paz a um continente atravessado séculos a fio por egoísmos nacionais, rivalidades e guerras suicidárias. 

Olho de novo para trás e para o tempo que hoje celebramos. Insensivelmente, chegam-me rostos, alguns de amigos já desaparecidos, inflamadas discussões, entusiasmos, receios, uma ou outra utopia. Procuro lembrar a extensa contabilidade dos colegas a que a repressão interrompera a normalidade das suas vidas: expulsando das universidades, detendo, embarcando para a guerra colonial ou forçando ao exílio. Bem como, afinal, os momentos vividos há 50 anos, pois deles ficaram amizades, lições e a certeza de que fizemos algo de útil. 
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23.3.22

Guerra e racismo

 

«Uma (…) consequência é a desvalorização do racismo. Em Portugal, foi noticiado o caso de Domingos Ngulonda e de Mário Biaguê, estudantes portugueses de medicina na Ucrânia, que ficaram cinco dias na fronteira com a Polónia e foram tratados, segundo os próprios, como “animais de carga” com polícias ucranianos com tacos de basebol que repetiam “africanos para o fundo da fila”, onde ouviram ordens para que os negros formassem filas próprias que eram remetidas para o fim. Não se tratou, infelizmente, de uma situação isolada. No final de fevereiro, o presidente do Senegal e o presidente da Comissão da União Africana queixaram-se dos “tratamentos inaceitáveis” e “chocantemente racistas” e o próprio Parlamento Europeu viu-se forçado, no primeiro dia de março, a condenar “o racismo experimentado pelos estudantes africanos e do Médio Oriente que foram impedidos de embarcar em autocarros e comboios na Ucrânia para chegar à fronteira ou impedidos na fronteira sem que pudessem procurar segurança”. Foram posições importantes, mas que não tiveram um eco à altura. Em Portugal, Santana Lopes vangloriava-se, nestes termos, de acolher refugiados: “A receber Dasha, lourinha, de olhos azuis. (...) Absolutamente emocionante”. No Observador, José Crespo de Carvalho, professor catedrático do ISCTE e co-fundador da We Help Ukraine, publicou um artigo repugnante, em que elogiava a “crise como oportunidade", por poderem entrar em Portugal cerca de 30 mil ucranianos que “colocarão a faca nos dentes, isto é, ninguém espere que sejam trabalhadores das nove às cinco e que venham reclamar o que por cá reclamamos”, fazendo a apologia da exploração dos refugiados - prontos para serem sugados pelo oportunismo empresarial - e da instrumentalização da sua presença para rebaixar os direitos de todos, numa corrida para o fundo dos direitos laborais.»

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Lá vai o português

 

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Aylan não cabe aqui

 


«Quando se tornou mundialmente famosa a fotografia de Aylan, ou Alan Kurdi, o menino de três anos que tinha fugido com o pai para a Turquia e morreu à beira da praia onde esperava ser acolhido, houve uma comoção generalizada. A imagem era tremenda, mostrava a morte avassaladora e a tragédia daqueles refugiados da guerra síria parecia imparável. O Mediterrâneo estava a ser transformado numa vala comum onde milhares de pessoas perderam a vida, Bruxelas contratou com a Turquia uma fortuna para garantir que os refugiados não chegavam à fronteira europeia e o desinteresse instalou-se, mesmo que fugazmente perturbado por essa fotografia dilacerante de Aylan. O mesmo já tinha acontecido e continuou a suceder com os refugiados das guerras do Afeganistão. A Europa fechou-lhes as portas.

Em contrapartida, quando começou a invasão da Ucrânia pelas tropas russas e se desencadeou a maior migração dentro da Europa na sua história recente, os refugiados foram acolhidos.

Já mais de três milhões de pessoas terão saído do país e muitas mais lhes seguirão os passos, sendo recebidas nos países fronteiriços ou, em alguns casos, deslocando-se para outros destinos, como Portugal. Esta resposta humanitária é uma prova de grandeza e de amparo das vítimas da guerra. É um modelo do que deve ser a resposta de emergência, com a solidariedade necessária.

Essa solidariedade faltou aos curdos, aos sírios e aos afegãos, entre muitos outros deslocados de guerra. E, para o escrever com todas as letras, o racismo foi a razão para a discriminação (mesmo agora, nas fronteiras europeias, houve casos de discriminação contra africanos que saíam da Ucrânia). Zizek revelou uma mensagem do governo esloveno, logo no início da invasão russa, que explicava que os ucranianos deviam ser recebidos, mas que isso não se estendia a outros: “Os refugiados da Ucrânia vêm de um ambiente que é no seu sentido cultural, religioso e histórico algo totalmente diferente do ambiente de onde os refugiados do Afeganistão estão a sair”. São europeus de olhos azuis, em resumo. A mensagem foi logo apagada, conspurcava o discurso de um governo de extrema-direita que, nestas circunstâncias, não quer lembrar que discrimina os refugiados por razões étnicas ou religiosas. Mas a discriminação não desaparece pelo facto de ter sido ocultada.

Hoje, Aylan continuaria a arriscar-se a não ser recebido na Europa. Haverá talvez um dia em que todas as vítimas das guerras serão acolhidas com respeito. Então teremos uma Europa decente. Ainda falta muito para que sejam recebidas essas pessoas perseguidas pela guerra e que são como nós, seres humanos.»

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22.3.22

Niagara

 


As cataratas podem ter tido os habituais arcos-íris durante o dia, mas ficaram assim à noite.
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O bem e o mal na Ucrânia

 

«Não sei se gosto de Zelensky. O ponto é que não tenho de gostar. Não tenho de achar que votaria nele, nem considerá-lo santo, nem concordar com tudo o que faz, nem sequer achar boa ideia que um país governado por ele entre na UE (repito: não tenho informação que me permita ajuizar), para saber que neste momento o lado dele é o certo, aquele pelo qual torço e me angustio.

Por motivos simples, simplórios, até. É o presidente de um país invadido por uma superpotência governada por um autocrata formado nos serviços secretos soviéticos que arranjou um esquema para se manter indefinidamente no poder; que há anos apoia e financia tudo o que é extrema-direita na Europa; que interfere nas eleições de outros países; que tem a sorte de os opositores tenderem a morrer de mortes macacas; que manda prender pessoas por dizerem a palavra guerra. Um autocrata que justifica a invasão asseverando que o país invadido é "uma invenção de Lenine" e que a concessão de autonomia às repúblicas que fizeram parte da URSS foi um erro estúpido (leia-se: nunca lhes deveria ter sido dada a hipótese de se autodeterminarem) e, no mesmo discurso, lembra que a Rússia tem armas nucleares - o maior arsenal do mundo - e por esse motivo é invencível, e diz temer pela respetiva segurança. Um autocrata que ameaça o mundo com o holocausto nuclear caso se atreva a ir em socorro da Ucrânia e põe os seus representantes na ONU a negar que esteja a ocorrer uma invasão.»

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Cigarros e tristeza

 

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As mentiras de Putin, a extrema-direita e os Machados que regressarão

 


«É impossível acompanhar uma guerra em direto, quase 24 horas por dia, sempre do lado da sua principal vítima, manter qualquer racionalidade no debate para além da enunciação de postulados morais evidentes: que esta ocupação é imoral, criminosa e ilegal. Tudo o que não corresponda a esta simplicidade moralmente necessária tenderá a ser ignorado. E é por isso que um trabalho como este (muito útil para este meu artigo), que há dois anos era banal em jornais como o “Público”, não teria hoje grande impacto – apesar da “Visão” ter regressado ao tema, não deixando de ser a criticada por quem acha que, em jornalismo, há factos indesejáveis.

Se alguém falar das milícias paramilitares e militares de extrema-direita na Ucrânia responderão, e até se compreende, que se está a repetir a propaganda de Vladimir Putin, que usa o Batalhão Azov como argumento para a necessidade de “desnazificar” a Ucrânia. Na melhor das hipóteses, virá a pergunta: e isso justifica a invasão? Não só não justifica como a propaganda de Putin se baseia em várias premissas falsas.

Os grupos armados e violentos da extrema-direita ucraniana (presentes, mas não liderantes, nas revoltas de 2014) cresceram e reforçaram-se sobretudo durante a presidência de Petro Poroshenko, o ex-presidente que o comediante Zelensky, judeu, derrotou em 2019. Desde a anexação da Crimeia, formaram-se vários grupos paramilitares de extrema-direita, financiados por oligarcas ucranianos, como o Azov, o Dnipro 2, o Shakhtarsk, o Aidar ou o Poltava. Mas o máximo que se pode dizer de Zelensky é que não teve condições para reverter este processo, numa presidência em que a sua popularidade esteve em queda até ao início desta guerra. Muito menos o conseguiu Poroshenko, a grande desilusão que nasceu do Euromaidan, e que até chegou a tentar desarmar um grupo armado ligado ao partido radical “Pravi Sektor” (Setor de Direita).

Por outro lado, o exército russo também conta com a participação e o apoio do grupo Wagner, a empresa de mercenários de Valeryevich Utkin, um neonazi condecorado pelo presidente Putin. A que se acrescenta, nesta guerra, a temível Guarda Nacional chechena, responsável por crimes de guerra na Chechénia. Pensar que esta gente “desnazificaria” fosse o que fosse, só mesmo para fazer humor negro. E não é difícil perceber que são os russos que se comportam como os nazis nesta guerra.

Das mentiras de Putin não resulta que seja falso que o Batalhão Azov (e outros grupos neonazis armados, o que torna absurdas comparações com o Chega) exista, que se mova pelo ódio a judeus, homossexuais e minoria russa, que tenha sido integrado na Guarda Nacional em maio de 2014, numa tentativa provavelmente frustrada de ter algum controlo sobre ele, e que mantenha o essencial dos seus traços ideológicos, comuns ao ultranacionalismo ucraniano com um passado de colaboracionismo e antissemitismo (para além do compreensível anticomunismo). Não tem nem a dimensão, nem o poder que Putin lhe atribui. Mas existe. E é por não ser uma fantasia que o Congresso norte-americano proibiu que lhe fosse dada mais ajuda militar, em 2018. A falsidade resulta disto tudo ser um pretexto cínico, não uma justificação.

UM BANQUETE PARA AS DUAS EXTREMAS-DIREITAS

Esta guerra, tal como a do Donbass, que dura há oito anos, será combustível para as extrema-direitas ucraniana e russa. Na Rússia, a que aceitou ser leal a Putin – e que foi combater para o Donbass – está a apropriar-se do “Z” usado nos tanques russos como sua imagem de marca. E o Kremlin tem um discurso cada vez mais próximo com o seu. Viverá tempos animadores.

Na Ucrânia, os combatentes ultranacionalistas desempenharão um papel “heroico” na resistência. Como setenta e quatro transcreve do relatório da Freedom House de janeiro de 2020, “a guerra no leste deu uma nova legitimidade social a grupos de extrema-direita, trazendo consigo níveis sem precedentes de sofisticação, financiamento, recrutamento e capacidade organizacional”. Com esta guerra, terão a possibilidade de atrair mais pessoas de todo o mundo. Poder político já ganharam, com o comandante do Batalhão Aidar, acusado pela Amnistia Internacional de crimes em Lugansk, a chegar a governador de Odessa. Estes grupos serão, aliás, um grave problema para qualquer solução de paz negociada que, a acontecer, tentarão boicotar.

Isso não muda um milímetro na barbaridade desta guerra “repugnante” (como lhe chamou o papa Francisco), na sua ilegitimidade e nas pulsões imperialistas e expansionistas de Putin. Só não precisamos de apagar factos para desfazer a propaganda de Putin. A melhor arma contra ele é a verdade, não é fingir que as contradições não existem, como em todas as guerras. A clareza moral é mais fácil nesta guerra do que em quase todas. É claríssimo quem ocupa e quem é ocupado e o ocupante nem consegue simular um argumento. Não precisamos de embelezamentos da realidade para fazer qualquer condenação.

Não é de agora que a Ucrânia é destino de ativistas de extrema-direita em busca de treino militar e contactos internacionais. Mas, desde 24 de fevereiro, as coisas mudaram. Aos compreensíveis apelos de Volodymyr Zelensky e Dmytro Kuleba para que cidadãos de todo o mundo se alistassem na Legião Estrangeira responderam (no Fight for Ukraine), nas primeiras semanas, mais de 20 mil pessoas. Há muito que o Batalhão Azov e o seu partido, Corpo Nacional (aliou-se ao Setor Direito e ao Svoboda e não conseguiram mais do que 2,15%), defendia a formação de uma Legião Estrangeira. E não é por acaso.

Nos que seguiram para a Ucrânia haverá de tudo: pessoas que, procurando aventura, rapidamente regressam; mercenários; ex-militares solidários com a resistência ucraniana; e militantes de extrema-direita. Com os últimos, que provavelmente serão uma pequena minoria, devemos preocupar-nos.

LEMBRAR O AFEGANISTÃO

Os ativistas de extrema-direita estão-se nas tintas para o povo ucraniano. Sabem que terão acesso a treino militar, a armamento e a uma rede internacional. A Ucrânia em guerra não tem qualquer capacidade de controlar em que mãos ficam essas armas. Cabe-nos a nós, na Europa, impedir que ativistas identificados como perigosos vão para a Ucrânia treinar-se, armar-se e fazer contactos. Em nome da nossa própria segurança, porque vão regressar mais perigosos. E em nome do futuro da Ucrânia, que depois da destruição russa será um Estado insustentável durante muitos anos. É esse um dos objetivos de Putin, aliás.

Como disse o politólogo José Filipe Pinto à “Visão”, é possível que este conflito se torne numa “rampa de lançamento” para “ser criado um movimento de extrema-direita transnacional”. Segundo um antigo agente do FBI ,“a instabilidade na Ucrânia oferece aos extremistas da supremacia branca as mesmas oportunidades de treino que a instabilidade no Afeganistão, Iraque e Síria ofereceu durante anos aos militantes jihadistas”. O Counter Extremism Project diz que "vão provavelmente obter experiência de combate na zona do conflito e terão potencialmente um maior impacto nos meios extremistas orientados para a violência nos seus países de origem depois de regressarem". E defende que se deve "interromper a viagem desses extremistas". É bom recordar que foi a rede de contactos criada no Afeganistão, entre os resistentes à invasão soviética, que esteve na origem da Al-Qaeda.

Há uma diferença entre relatar tudo isto e discutir os riscos que corremos quando permitimos que ativistas de extrema-direita com cadastro usem a Ucrânia para ganharem treino, armas e contactos e alinhar na propaganda da “desnazificação” como pretexto para ocupar um país soberano. Infelizmente, como a comunicação social decidiu tirar uma folga e resumir o seu trabalho à simplificação do que é complexo e contraditório, ignora tudo o que não seja mobilizável para o esforço de guerra. Em vez de contribuir para uma solidariedade informada, contribui para a infantilização da opinião pública.

O NEONAZISMO HUMANITÁRIO DE MACHADO

Pode ser esta ignorância geral do contexto desta guerra e dos seus perigos que pode ajudar a explicar que uma magistrada tenha decidido dispensar Mário Machado, com um largo cadastro criminal, de cumprir a medida de coação de apresentações quinzenais numa esquadra de polícia para poder rumar à Ucrânia. Ou então nem sabe quem é Mário Machado, o que seria ainda mais caricato.

Certo é que a juíza do TIC de Lisboa teve em conta “a situação humanitária vivida na Ucrânia e as finalidades invocadas pelo arguido para a sua pretensão”. Respondeu positivamente ao apelo do avogado que argumentava que o arguido “mobilizou um grupo de pessoas de diversas nacionalidades que se propõe ir para a Ucrânia prestar ajuda humanitária e, se necessário, combater ao lado das tropas ucranianas”. Indiciado num processo de incitamento ao ódio racial e violência, Machado vai para a Ucrânia fazer trabalho humanitário. Indiciado pelo crime de posse de arma proibida, vai armar-se noutro país. Parece um sketch de humor, mas aconteceu num tribunal português.

Alguns ainda se lembrarão da forma como as Primaveras Árabes nos foram contadas. Do ponto de vista moral, as razões dos protestos eram evidentes. Como o jornalismo das emoções achou que elas chegavam, ofereceu-nos a visão simplificada e romântica, porque num momento daqueles seria indecente falar das contradições do lado do protesto. Sabemos como as opiniões públicas ocidentais não tinham os instrumentos para perceber nada do que aconteceu depois. Não somos crianças. Podemos ter acesso à complexidade da situação sem vacilar nas nossas convicções morais. Quanto mais não seja, para não contribuir para aumentar alguns dos terríveis efeitos que esta guerra terá.»

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21.3.22

Sobreviveu ao Holocausto, foi vítima de um bombardeamento em Kharkiv

 


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«Sampaio, Caetano e Salazar: o confronto de 1962»

 


Na próxima quinta-feira, 24.03.2022, comemora-se o 60º aniversário do Dia do Estudante de 1962. No âmbito dessas comemorações, que marcam também o início das iniciativas oficiais que assinalam 50 anos de democracia, foi realizado o documentário acima mencionado.

Estreia na RTP 1, hoje, a seguir ao Telejornal das 20:00.
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A guerra aumenta a exploração

 


«Nos debates político e económico a palavra crise surge convocada, vezes sem fim, para justificar políticas duras ou injustas, independentemente de se estar apenas perante uma hipótese de crise, de esta ser encenada ou ser real. Pelo seu impacto destrutivo, pelas cargas de injustiça e violência que gera, pelo seu potencial de horrores e morte, a guerra é a crise das crises, aquela que mais assusta os seres humanos, a que mais nos subjuga, a que mais intensifica a exploração humana. Por tudo isso a exigência de que se ponha fim à guerra é a prioridade das prioridades.

Todavia, a luta pela paz não se confina ao ato de terminar a guerra. É preciso uma atenção redobrada sobre o que se altera na vida das pessoas e da sociedade, sobre o funcionamento das organizações, instituições e poderes (instituídos ou fátuos), para que a invocação oportunista dos efeitos da guerra não seja instrumento de intensificação da exploração dos povos. Se os "mecanismos" políticos, económicos e sociais que ficarem instalados aumentarem as injustiças, podemos ter a certeza de que a guerra seguinte estará mais próxima.

A recente pandemia, e agora a guerra na Ucrânia, vieram evidenciar em dimensões coincidentes ou distintas a obstrução dos canais que até hoje têm sustentado o aprofundamento dos processos de integração económica. E perspetivam-se disfunções e contradições nas cadeias de valor que não imaginávamos. Por outro lado, parte do acelerado aumento de preços de muitos produtos resulta de dinâmicas especulativas dos mercados de futuros, manipulados por grandes "consórcios" com enorme poder de mercado.

É tempo de alertas: o papel do Estado (s) não pode afunilar-se na missão de garantir lucros aos acionistas das empresas; a responsabilidade social das empresas não deve ser mero produto propagandístico; o risco não pode desaguar todo nas costas dos trabalhadores e no comum dos cidadãos; andam mal altos responsáveis do Estado que pregam a preparação dos portugueses para grandes sacrifícios, no abstrato, em vez de tudo fazerem para que cada sacrifício pedido seja cabalmente justificado.

Na sequência da invasão e guerra na Ucrânia, subiu de tom o "coro económico" de setores empresariais viciados em reivindicar apoios do Estado. Os preços sobem e aumentam custos de produção, logo, dizem-nos, que para salvar as empresas e o emprego que elas "dão", é urgente subsidiá-las ou dispensá-las de pagar impostos, num contexto em que se estão a ampliar os deveres do Estado e as áreas de investimento, em que o país necessita de uma profunda recuperação socioeconómica. Além disso, a situação que começamos a viver traz elementos novos - o processo inflacionista e outros - que exigem políticas distintas das desenhadas para a pandemia.

Os preços sem dúvida sobem, mas quem os sobe são empresas. Isto é, as empresas têm custos mais elevados porque há outras empresas que aumentam os preços, acabando as primeiras por fazer o mesmo para recuperarem a margem que perderam com o aumento dos custos. Neste processo de pescadinha de rabo na boca - em que infelizmente não falta quem aproveite para "melhorar o negócio" - as empresas mais frágeis face à concorrência tendem a perder, mas isso é improvável que aconteça com as grandes.

Uma coisa é certa, quem mais perde é quem paga o preço final dos bens de consumo e não consegue transformar esses acréscimos de custos em aumento de salário ou de pensão.»

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20.3.22

Espelhos e inimigos

 

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Primavera? A sério?

 


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A invasão de Moscovo está em curso

 


«Todos os impérios colapsaram. Do romano ao otomano, do português ao britânico, da tentativa de Napoleão ao falhanço nazi. O poder da mudança atravessa a História e derruba os ditadores. E fica condenado ao fracasso quem copia o passado para replicar as mesmas arquiteturas geoestratégicas, décadas ou séculos depois. A Ucrânia demonstra isso mesmo: a vitória de opiniões públicas informadas, intransigentes em aceitar passivamente a perda de liberdades básicas e respeito pelos direitos humanos.

Com o acesso (cada vez mais impossível de controlar) à informação e ao empoderamento de cada cidadão como decisor da História, a democracia está lentamente a vencer em todas as latitudes - do mais recôndito lugar de África ou Índia, até ao germinar de novas ambições num qualquer jovem chinês ou russo. E é exatamente aí que isto muda.

A solução para esta guerra representa esse esmagador desejo de liberdade dos povos: dos ucranianos, dos cidadãos do mundo, mas igualmente dos russos - e um dia, dos chineses. Chega sempre o "turning point", a viragem onde a avassaladora vontade de quase todos se descobre a si mesma, tornando-se capaz de controlar os acontecimentos e o poder. Vimos isso com o nosso 25 de Abril, vemos isso em praticamente todas as mudanças de regime: o dia em que os militares, os legisladores e os membros do poder estabelecido ficam encostados à parede pela torrente de cidadãos que exigem respirar e fazer parte de um mundo ao qual aspiram: mais livre e próspero.

A cegueira de Putin - de remontar uma Rússia semi-imperial, como terceiro bloco de força, num mundo cada vez mais bipolar entre Estados Unidos e China -, redundou num colapso que o torna na nova Coreia do Norte. Pior: à sua frente, os irmãos ucranianos, dominados por uma vontade indómita de serem donos do seu próprio destino, mostram aos russos que recusar a opressão é possível, e essa liberdade é tão importante que se dispõem a ir para além da morte, ou seja, a ficarem na História como um inabalável ponto de resistência do século XXI contra o esmagador poder de uma autocracia. É o maior caso prático de recusa de um mundo moldado à imagem do trio Trump-Putin-Xi Jinping. É a vacina anti-Le Pen, Salvini ou novo Partido Republicano.

Quem quer um autocrata a tomar conta da sua vida? Ou, dito de outra maneira, quantos russos aspirariam, se pudessem, a viver num país membro da União Europeia, um bloco económico dominado pela ideia de paz, prosperidade e consenso? Não estou com isto a traçar um quadro onírico de Bruxelas, mas o que ela garante para uma vida básica dos seus cidadãos é único no planeta, apesar de milhões terem achado que podiam viver melhor sem ela...

Ao dia de hoje existe esta dúvida: é a Rússia que esmaga a Ucrânia, ou é a Ucrânia que pulveriza diariamente o arcaico sistema de corrupção russo, onde os seus cidadãos vivem numa democracia faz-de-conta, os media são controlados e os opositores políticos envenenados e presos?

Há uma só guerra. Putin versus todos os cidadãos livres dos dois países. Também a batalha subterrânea de Moscovo se adensa todos os dias. É mais difícil fazer trincheiras à informação e ao bloqueio económico que aos tanques.

Putin pode acabar por não deixar pedra sobre pedra na Ucrânia - talvez recue antes. Mas neste momento o vento da História sopra nas costas de Zelensky. Pensar que podemos recuar séculos é descurar a mais fundamental das mudanças no curso da humanidade: as pessoas hoje já sabem ler e escrever. E pensar pelas suas cabeças. Putin ficou lá atrás.»

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