20.3.22

A invasão de Moscovo está em curso

 


«Todos os impérios colapsaram. Do romano ao otomano, do português ao britânico, da tentativa de Napoleão ao falhanço nazi. O poder da mudança atravessa a História e derruba os ditadores. E fica condenado ao fracasso quem copia o passado para replicar as mesmas arquiteturas geoestratégicas, décadas ou séculos depois. A Ucrânia demonstra isso mesmo: a vitória de opiniões públicas informadas, intransigentes em aceitar passivamente a perda de liberdades básicas e respeito pelos direitos humanos.

Com o acesso (cada vez mais impossível de controlar) à informação e ao empoderamento de cada cidadão como decisor da História, a democracia está lentamente a vencer em todas as latitudes - do mais recôndito lugar de África ou Índia, até ao germinar de novas ambições num qualquer jovem chinês ou russo. E é exatamente aí que isto muda.

A solução para esta guerra representa esse esmagador desejo de liberdade dos povos: dos ucranianos, dos cidadãos do mundo, mas igualmente dos russos - e um dia, dos chineses. Chega sempre o "turning point", a viragem onde a avassaladora vontade de quase todos se descobre a si mesma, tornando-se capaz de controlar os acontecimentos e o poder. Vimos isso com o nosso 25 de Abril, vemos isso em praticamente todas as mudanças de regime: o dia em que os militares, os legisladores e os membros do poder estabelecido ficam encostados à parede pela torrente de cidadãos que exigem respirar e fazer parte de um mundo ao qual aspiram: mais livre e próspero.

A cegueira de Putin - de remontar uma Rússia semi-imperial, como terceiro bloco de força, num mundo cada vez mais bipolar entre Estados Unidos e China -, redundou num colapso que o torna na nova Coreia do Norte. Pior: à sua frente, os irmãos ucranianos, dominados por uma vontade indómita de serem donos do seu próprio destino, mostram aos russos que recusar a opressão é possível, e essa liberdade é tão importante que se dispõem a ir para além da morte, ou seja, a ficarem na História como um inabalável ponto de resistência do século XXI contra o esmagador poder de uma autocracia. É o maior caso prático de recusa de um mundo moldado à imagem do trio Trump-Putin-Xi Jinping. É a vacina anti-Le Pen, Salvini ou novo Partido Republicano.

Quem quer um autocrata a tomar conta da sua vida? Ou, dito de outra maneira, quantos russos aspirariam, se pudessem, a viver num país membro da União Europeia, um bloco económico dominado pela ideia de paz, prosperidade e consenso? Não estou com isto a traçar um quadro onírico de Bruxelas, mas o que ela garante para uma vida básica dos seus cidadãos é único no planeta, apesar de milhões terem achado que podiam viver melhor sem ela...

Ao dia de hoje existe esta dúvida: é a Rússia que esmaga a Ucrânia, ou é a Ucrânia que pulveriza diariamente o arcaico sistema de corrupção russo, onde os seus cidadãos vivem numa democracia faz-de-conta, os media são controlados e os opositores políticos envenenados e presos?

Há uma só guerra. Putin versus todos os cidadãos livres dos dois países. Também a batalha subterrânea de Moscovo se adensa todos os dias. É mais difícil fazer trincheiras à informação e ao bloqueio económico que aos tanques.

Putin pode acabar por não deixar pedra sobre pedra na Ucrânia - talvez recue antes. Mas neste momento o vento da História sopra nas costas de Zelensky. Pensar que podemos recuar séculos é descurar a mais fundamental das mudanças no curso da humanidade: as pessoas hoje já sabem ler e escrever. E pensar pelas suas cabeças. Putin ficou lá atrás.»

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