12.11.22

Garfos

 


Conjunto de garfos de pastelaria Arte Nova, cerca de 1900.
Archibald Knox para Liberty & Co., Reino Unido.


Daqui,
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Estudantes pelo clima


 

Uma enorme revolta e tristeza pelo que ontem aconteceu na FLUL. Não esperava que ainda fosse possível ver a polícia ser chamada para retirar estudantes da faculdade em que dei aulas, fui-me deitar como se a minha vida tivesse regressado a acontecimentos de há 50 anos.

Tristeza acrescida – e de que maneira – por o actual director ser quem é: alguém que conheço desde que nasceu, por quem senti desde sempre uma imensa ternura, no seio de uma família onde tive, e ainda tenho, alguns dos meus grandes amigos de muitas décadas. É a vida, eu sei, mas custa muito.
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Em Kherson, ontem, foi assim

 




O dia em que a Ucrânia “invadiu” a Rússia

 


«As imagens felizes das cidades libertadas de ocupantes estrangeiros fazem parte da mais bela das iconografias da História. O Exército da Ucrânia entrou em Kherson e, se a escala do júbilo é incomparável à das grandes celebrações de Paris ou Amesterdão na II Guerra, é possível perceber nos risos e nos choros, nos cânticos ou nos punhos erguidos um mesmo sentimento de reparação de uma injustiça e de recuperação da dignidade com a expulsão dos invasores. Kherson, mais do que qualquer outra das cidades libertadas, tem esse valor simbólico: a derrota dos agressores e a vitória das suas vítimas.

O que aconteceu nestes últimos dias vai, no entanto, muito para lá do simbolismo ou da justiça, questões quase sempre alheias à brutalidade da guerra. Kherson foi a única cidade capital de província conquistada pelos russos desde Fevereiro; Kherson, já perto da embocadura do grande rio da Ucrânia, o Dniepre, tem um extraordinário valor estratégico; Kherson fora anexada em Setembro e, por isso, é território da Rússia; Kherson, finalmente, foi abandonada porque os russos corriam o risco de um cerco e de uma derrota ainda mais humilhante.

A propaganda do Kremlin pode por isso continuar a dizer que a retirada foi uma pequena correcção estratégica, que ninguém acredita. Os relatos da imprensa internacional dão conta de soldados russos feridos deixados para trás, as imagens mostram sinais de debandada nos pontões do Dniepre, houve soldados a confessar que despiram as fardas e vestiram roupas civis. Os sinais de desnorte e de derrota abundam.

O Kremlin poderá também continuar a insistir que Kherson será sempre russa, que hoje só os seus líderes e os que mais ou menos veladamente os emulam conseguem acreditar. A ajuda e o treino ocidental tornaram o Exército ucraniano mais forte, enquanto o desgaste de meses de guerra e de recuos recentes deixou as tropas russas muito menos capazes. Numa guerra convencional, as apostas de vitória estão mais voltadas para Kiev do que para Moscovo.

Perante a actual correlação de forças, vale a pena tentar antecipar o passo que se segue. O reagrupamento dos russos na margem esquerda do Dniepre pode significar que, em vez de novas ofensivas, apostam apenas na consolidação de posições. O fracasso pode alimentar o mal menor: em vez de um estado-fantoche, os russos desistem de controlar todo o acesso ao mar Negro e satisfazem-se em conservar o Donbass e um acesso à Crimeia. Se assim for, espera-se uma guerra fria, estática e sem fim à vista. Um abcesso que continuará a pairar sobre a Europa como um pesadelo.»

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11.11.22

As velhas já não funcionam

 

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Entretanto na Ucrânia

 


A bandeira da Ucrânia voltou hoje a Kherson, depois de mais de oito meses de ocupação.
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O activismo dos jovens pelo clima – um podcast que merece ser ouvido

 


Download daqui.
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S. Martinho

 


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Adultos em negação

 


«Enquanto a Europa experimentou o verão mais quente da história e a pior seca de meio milénio, o Paquistão afunda e a Cidade do Cabo tem falta de água doce para consumo, milhares de pessoas puseram-se em aviões, com o zelo burocrático da inutilidade, e pela 27ª vez foram ouvir discursos piedosos no palco e tratar de assuntos relevantes nos corredores. Macron, por exemplo, encontrou Maduro e ficou marcada uma conversa de negó¬cios com um emissário, que anda tudo ao mesmo: onde arranjar petróleo e gás barato. Falando para conferencistas protegidos por uma ditadura que evitou protestos, Guterres fez mais um discurso apocalíptico, cada vez menos eficaz, porque o anúncio do Apocalipse só assusta uma vez. Começa a ter o efeito oposto, a cada cimeira fracassada. Perdido por cem, perdido por mil.

Não me vou centrar na imensa dificuldade em mudar o mundo nos poucos anos que nos restam para impedir o ponto de não-retorno. Que renováveis nos interessam e que modelo de produção queremos para elas? As novas gerações do nuclear correspondem a um perigo aceitável? Como desglobalizar parte da economia, encurtando cadeias de produção e distribuição, sem devolver os países pobres à miséria? Como mudar a alimentação e a agricultura sem destruir culturas e identidades? Que instrumentos precisamos para que as nossas cidades, transformadas em ativos financeiros, voltem a ser para lá viver quem lá trabalha, reduzindo movimentos? Como as preparamos para o carro ser a exceção vinda do passado e o transporte público a regra do presente? Como passaremos a usar muito menos os aviões sem nos confinarmos ao espaço nacional?

A escassez de um bem ou serviço torna-o mais caro. Sem intervenção política, o sacrifício não será de um “nós” abrangente. Uns deixarão de consumir, outros continuarão a fazê-lo com a mesma frequência. E isto aplica-se a bens mais essenciais do que o turismo. O que corresponderia a um recuo civilizacional para a maioria mais pobre. E é provável que essa maioria prejudicada, vendo que o fardo não é partilhado, vote em quem lhe diga que nada disto é necessário porque se baseia numa grande mentira. O que quer dizer que esta mudança só é politicamente sustentável de duas formas: em ditaduras ou democracias de intensidade reduzida (continuando a transferir poderes para instâncias europeias não-eleitas), ou com uma agenda social tão profunda que seria uma revolução. E esta revolução é só uma pequena parte da solução. O resto do mundo, que pouco contribuiu para o estado do clima, ainda não tem eletricidade em muitas casas e produção que lhe garanta o mínimo.

O desafio é tão gigantesco que é estranho não falarmos disto o tempo todo e este não ser o primeiro critério na hora do voto. Pelo contrário, dizemos que a guerra na Ucrânia terá de ir até às últimas consequências porque está em causa o “nosso modo de vida”, que de qualquer das formas tem os dias contados. E achamos que a transição energética, em vez de ser acelerada, pode ser adiada até ao fim do conflito. Talvez imaginemos sociedades livres e democráticas em seca extrema ou debaixo de água.

Esta semana entrevistei três ativistas pela justiça climática. Entre os 17 e os 21 anos, politizadas, informadas e corajosas, lideram ocupações de escolas e faculdades e fazem exigências que sabem que não serão atendidas, atónitas perante a indiferença geral. Cresceram a pensar nisto e descobriram, quando ganharam consciência política, que os adultos não levam a sério o que lhes ensinaram na escola. Mas o mais esclarecedor é observar a reação ao seu ativismo, já evidente com os furiosos ataques a Greta Thunberg, depois dos primeiros anos de bonomia quase consensual. É raro ver uma irritação tão epidérmica, mesmo num tempo em que esse é o estado natural do debate. E percebe-se que o súbito amor coletivo à arte, quando duas ativistas atiram sopa a um vidro que protegia um quadro de Van Gogh (o que deu um novo fôlego mediático ao movimento), foi o falso argumento para a raiva que a verdade saída destas jovens bocas provoca. Primeiro negaram-se as alterações climáticas, depois a origem humana dessas alterações, agora o ódio é apenas irracional. Porque elas fazem passar os que as ouvem do estado de negação para a raiva, e isso é doloroso.

O comentário mais simpático é o que os tontos usam contra socialistas de telemóvel: então elas não se deslocam de carro? Ao contrário do que acreditam os mais liberais, as mudanças sociais não resultam da mera soma de escolhas individuais. Como em quase tudo, Thatcher estava enganada quando dizia que não existe essa coisa de sociedade. Se não existisse, a política era desnecessária. Mesmo que todos tivessem condições económicas para escolher o que comem, como se movem e como vivem, viveriam nestas cidades e nesta economia. Monges climáticos são tão inúteis perante o que aí vem como eremitas ascetas perante o capitalismo. Não se muda o mundo vivendo fora dele. Milhões morreram e mataram para vivermos melhor neste planeta. Que sorte temos que estas ativistas ainda só atirem sopa a vidros para podermos viver, melhor ou pior, neste planeta.»



P.S. – A entrevista a três jovens, que Daniel Oliveira refere no texto, pode ser ouvida AQUI.
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10.11.22

Jarras

 


Jarra Villeroy & Boch, Mettlach, Alemanha, com suporte de «ormolu», cerca de 1900.
Fabricado pela empresa Orivit.

(O que é ormulu.)

Daqui.
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Que delícia!

 

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10.11.1948 – Mário Viegas

 


Mário Viegas nasceu num 10 de Novembro. Morreu novo, muito novo, antes de chegar aos 48. Fundou três companhias de teatro, actuou em vários países, participou em mais de quinze filmes e só quem for muito jovem não se recordará das séries televisivas «Palavras Ditas» (1984) e «Palavras Vivas» (1991).

Celebérrima ficou a sua leitura do Manifesto Anti-Dantas de Almada Negreiros:



Mas existiu também um Manifesto Anti-Cavaco, lançado por Mário Viegas durante a campanha eleitoral para as legislativas de 1995, em que foi candidato independente na lista da UDP (candidatou-se também à Presidência da República).




Mais duas interpretações inesquecíveis:


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Eu ocupo. Não ocupo porque quero, ocupo porque não tenho escolha

 


«Começaram na segunda-feira as ocupas das escolas e faculdades pelos membros da Greve Climática Estudantil. Em muitas faculdades e escolas secundárias, estudantes ocupam e lutam, em conjunto, por duas reivindicações principais: o fim aos combustíveis fósseis, a demissão imediata de António Costa e Silva, ministro da Economia e do Mar e, mais importante, ex-CEO da petrolífera Partex Oil and Gas.

Eu estou a ocupar. Sou aluna do Liceu Camões e ocupo a escola. Ocupo, juntamente com outros alunos e alunas. Todos nós estamos determinados em não desistir, em ocupar até sermos ouvidos.

Não ocupo porque quero. Não ocupo porque não gosto de ir às aulas. Não ocupo porque tenho alguma coisa contra a direcção. Não ocupo porque me apetece dormir no chão.

Ocupo porque não tenho escolha. Porque nenhum de nós se pode dar ao luxo de ficar confortavelmente em casa e ignorar a emergência que berra aos nossos ouvidos.

A emergência que berra no Paquistão, onde centenas morrem, porque escolhemos ignorar o problema. A emergência que berra na Índia, onde os pequenos agricultores sofrem com as alterações ao clima e onde os activistas são presos, porque escolhemos ignorar o problema. A emergência que berra na Etiópia, onde as temperaturas escaldantes enfraquecem, ainda mais, as crianças subnutridas, porque escolhemos ignorar o problema. E berra agora, na COP27, onde medidas e acordos insuficientes são aprovados, mais uma vez, porque escolhemos ignorar o problema.

Eu sei que o mundo não é a realidade europeia. Sei que não depende só de mim. Mas também sei, que pode começar em mim.

Tenho medo. Tenho medo de viver o dia de amanhã. E não sou a única. Não somos os únicos aterrorizados. Mas não deixamos que o medo nos imobilize. Não, pelo contrário.

Deixamos que ele não nos deixe desistir. Levamos o medo para a inquietação. Da inquietação para uma pequena revolta. De uma pequena revolta, para uma grande revolta. E é nesta revolta que criamos uma certeza: para mudar, temos que nos radicalizar.

No nosso primeiro dia de ocupação, as faixas, os megafones, as músicas de intervenção, as tendas e os sacos-cama encheram o pátio principal e toda a escola. Na primeira aula da manhã, dezenas de estudantes levantaram-se das suas cadeiras, saíram do espaço sagrado que é a sala de aula e percorreram os corredores. Percorreram os corredores, empenhando gritos de desespero: “Temos que lutar pelo nosso futuro!”, diziam. Esses mesmos estudantes, e tantos outros, juntaram-se, minutos mais tarde, junto ao portão principal, entoando e saltando juntos: “Oh sim! À transição! À transição! À transição!”. Com fogo na barriga e inquietação no coração, não foram as suas vozes cansadas, ou os sussurros contra, que os detiveram.

No segundo dia de ocupação, podemos dizer que, depois de uma noite mal dormida, de momentos de algum desalento, de reuniões com a direcção e plenários sentados no chão, nos sentimos cansados, ansiosos e um tanto confusos.

Mas não enfraquecemos, não desistimos. Não enfraquecemos e não desistimos, porque não podemos.

Lutamos pelo futuro de todos, com o fogo na barriga, que mantém a chama acesa. Lutamos pelo futuro de todos, de mãos dadas, lado a lado, com brilho nos olhos, e inquietação. Muita inquietação.»

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9.11.22

Escadas

 


Escada da Casa Comalat, edifício modernista, Barcelona, projecto de 1906, realização em 1911.
Arquitecto: Salvador Valeri i Pupurull.

Daqui.
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Ficámos sem Yves Montand em 09.11.1991

 


Yves Montand só chegou aos 70. Nasceu italiano, naturalizou-se francês, foi cantor e actor e formou um dos pares mais célebres do cinema francês quando se casou com Simone Signoret em 1951.

Algumas das suas interpretações, entre muitas, AQUI.
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09.11.1989 – O dia em que caiu um muro

 


Festejámos, ainda bem e de que maneira, mas felizmente que não somos omniscientes para termos podido prever os muros que, entretanto, se ergueram e que tanto atormentam hoje a humanidade.
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Gal Costa

 



Ela morreu e apetece-me ir ao que há de mais clássico.
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O outro lado da Cimeira do Clima no Egipto

 


«Dias antes de a COP27 arrancar em Sharm el-Sheikh, no Egipto, dezenas de pessoas foram detidas por estarem a convocar protestos para uma altura em que jornalistas de todo o mundo lhes garantiriam palco. A denúncia foi feita pela Human Rights Watch.

Já a Reuters deu conta no início do mês de um aumento de agentes de segurança à paisana, nas ruas, que mandavam parar pessoas e verificavam os seus telemóveis. E foi imposta uma série de restrições que por estes dias limitam substancialmente os passos de activistas pró-democracia, ambientais ou de quaisquer outras causas que possam representar um embaraço para o regime de Abdel Fattah el-Sisi, como várias notícias internacionais têm dado conta.

Será sempre algo inglório. A COP é o tipo de acontecimento — pelas mais altas figuras da política mundial que envolve e pela gravidade dos temas em discussão — que não ajuda a empurrar questões difíceis para debaixo do tapete. Há dias, vários escritores, Nobel da Literatura, aproveitaram-no para lançar uma carta em que apelam aos líderes internacionais para pressionarem o Egipto: pedem a libertação de “milhares” de presos políticos “injustamente” presos. Estima-se que existam 60 mil no país. Um deles, diz a Amnistia Internacional, pode não resistir à greve de fome que intensificou nos últimos dias e morrer antes de a COP acabar. É Alaa Abd el-Fattah, protagonista da Primavera Árabe.

Há quem acuse o Egipto de greenwashing, termo que entrou na linguagem comum para classificar a autopromoção de uma entidade que alega que se importa muito com o ambiente sem que essa preocupação seja genuína. Mas é mais do que isso. O jornal britânico The Guardian coloca a questão assim: “O que importa ao Egipto é tentar recuperar um ar de respeitabilidade. Por isso, é o anfitrião da COP27.”

É impossível não pensar no Mundial de Futebol no Qatar, país onde paira a suspeita de que milhares tenham morrido a trabalhar em condições degradantes na construção dos estádios. E onde a Federação Internacional de Jornalistas teme que seja quase impossível durante o evento, que está prestes a começar, reportar temas como “abusos de direitos humanos”.

Nos próximos dias vamos falar muito da COP. A brutal frase com que o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, arrancou os trabalhos — “Estamos numa auto-estrada para o inferno” —, para depois pedir um “Pacto de Solidariedade Climática”, vai ficar a ressoar pelo menos até ao fim dos trabalhos, no dia 18. Mas é essencial que não haja contemplações com o que se passa no país que é por estes dias a casa da COP. Clima e direitos humanos são inseparáveis.»

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8.11.22

Alguma dúvida?

 

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Qatar é isto – E o mundo vai estar de joelhos

 


Daqui.
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Edmundo Pedro – Faria hoje 104



 

AQUI, num post que publiquei quando ele morreu, a poucos meses de chegar aos 100, um resumido «percurso existencial», escrito pelo próprio.
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Cada coisa no seu lugar

 


«A história é verdadeira: um grupo de jovens estudantes em visita à Redação é confrontado com a agitação de uma operação de bombeiros no prédio em frente. A explicação de que um trabalhador estava em risco de cair e estava a ser resgatado pelos bombeiros não despertou grande interesse e foi rapidamente ignorada.

Poucos minutos depois foi avançada outra explicação: afinal, os bombeiros estavam a resgatar um gato que estava no telhado do prédio. A reação inverteu-se: rapidamente quase duas dezenas de jovens se amontoaram junto da janela com constantes lamentos sobre a sorte do "gatinho" em perigo.

O exemplo constituiu uma espécie de teste sobre como a sociedade se preocupa tanto em ajudar os animais e, em simultâneo, quase ignora os seres humanos em dificuldade. Algo de estranho se passa com uma sociedade que coloca no mesmo patamar uma criança e um animal doméstico.

Os animais, sejam quais forem, devem ser cuidados, bem tratados e acarinhados. A forma como tratamos bem ou mal os animais - e não apenas os domésticos - diz muito sobre a nossa evolução civilizacional. Mas o excesso diz-nos outro tanto...

Diz-nos, por exemplo, que estamos cada vez mais individualistas e incapazes de olhar para as necessidades dos outros. Diz-nos como somos mesquinhos quando estamos disponíveis para ajudar um animal abandonado mas olhamos para o lado quando encontramos um ser humano caído na berma de uma estrada.

Seria tão bom que a sociedade que reage entusiasticamente e se mobiliza para ajudar animais em dificuldades ou maltratados o fizesse com a mesma intensidade quando estão em causa pessoas. Uma ajuda que, por vezes, se resume a ligar o 112.»

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7.11.22

Mais um candeeiro

 


Candeeiro de mesa banhado a prata, Viena, cerca de 1905.
Moritz Hacker.


Daqui e Daqui.
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A sinistra vida no Qatar

 


Em breve, vamos ouvir falar deste país dia e noite. O mínimo que nos é exigido é ler o que escreve quem se dá ao trabalho de estudar a sinistro vida nesta parcela do mundo.

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07.11.1913 – Albert Camus

 


Os velhinhos «Livres de Poche» que marcaram as nossas vidas.
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Vai fogoso e não seguro

 


«Há um problema sério com Marcelo Rebelo de Sousa e temos de lhe pedir que o resolva, porque uma maioria absoluta no Parlamento sem um Presidente absolutamente determinado em combater os abusos dessa maioria, é um desperdício de tempo e de talento. O talento de um comunicador que soube captar a atenção de uma parte dos portugueses que estava desligada da política, que rebentou com as audiências do comentário político na televisão, que se fez do povo vindo da elite, que virou a estrela das selfies aquém e além mar. Não aproveitar esse talento para exigir que o Executivo explique prontamente todos os casos que se dão à estampa, incluindo o do secretário de Estado-adjunto do primeiro-ministro, é deixar no governo a sensação de que pode andar em roda livre. Daí para o rolo compressor é um passinho.

Miguel Alves veio, entretanto, dar algumas explicações, numa entrevista ao JN/TSF, mas não deixou escapar a oportunidade de apontar o dedo ao mensageiro, apresentando-se como vítima do "preconceito" em relação a quem está fora da "corte" mediática de Lisboa. Um preconceito que existe, sobretudo, na sua opinião, porque as coisas aconteceram em Caminha. Tendo demorado dez dias para responder, o tempo que considerou necessário para escrever uma carta à PGR, o secretário de Estado lamenta que "estes dias, com este enredo de insinuações e suspeições, acabam por prejudicar e atacar a minha credibilidade", mas reconhece que sem este escrutínio do jornalista José António Cerejo não se conheceriam algumas mentiras do currículo do promotor. Não tivesse havido notícia e, provavelmente, também não teriam existido os desenvolvimentos positivos nesta história. Agora, é difícil o dinheiro ficar perdido no imaginário de uma obra não concretizada. Miguel Alves precisou de 10 dias para dar explicações e o que queria, afinal, é que o víssemos como a vítima da história.

Regressemos ao fogoso comentador, inquilino do Palácio de Belém, que corre atrás de cada notícia e que nelas tem andado a tropeçar com muita frequência, obrigado a corrigir o tiro. Dele nada se ouviu sobre o adjunto de António Costa e bem que lhe podia ter lembrado que "quando se aceitam funções políticas é para o bem e para o mal. Não somos obrigados a aceitar, sabemos que são difíceis e sujeitas ao controlo e escrutínio crescentes". Isto foi dito por Marcelo, mas dirigido a uma ministra com quem o Presidente entendeu fazer troça. Coragem era ter lançado a ameaça sobre a número dois do governo (Mariana Vieira da Silva), que é quem tem a gestão do PRR, ou mesmo sobre António Costa, responsável por tudo o que acontece no governo. Mas é já evidente que o Presidente tem receio da reacção do primeiro-ministro.

Marcelo sempre foi divertido e essa é uma característica que joga a seu favor. Seja a fazer análise política, seja no exercício da função presidencial, convém é que nunca perca a noção dos limites, o povo na sua imensa sabedoria está cá para lembrar ao Presidente que "mais vale cair em graça do que ser engraçado".»

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6.11.22

Vitrais, muitos vitrais

 


Catedral São Vito, Praga.
Alfonso Muchá.

Daqui.
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Surprise!

 


Com uma notícia de ontem à noite, fui-me deitar sem que isto me saísse da cabeça.
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06.11.1919 – Sophia

 


A ler também: Sophia antifascista que inclui um vídeo com uma entrevista rara feita a Sophia e a Francisco Sousa Tavares.

O novo Marcelo, ainda

 

«Faço parte daquela geração que se fez adulta a ler e a ouvir os comentários do “Prof.” Marcelo. Lembro-me de estar a dar de mamar ao meu miúdo, há 28 anos, e não querer passar sem ouvir “As notas do Prof. Marcelo” na TSF aos sábados de manhã. Marcelo era um analista inteligente, muito divertido e imperdível. Mas o que se passou na Trofa este sábado, com as bocas a uma futura candidatura presidencial de Marques Mendes e o “não lhe perdoo” dirigido à ministra da Coesão, é mais um episódio em que o comentador “fogoso” (para usar o adjectivo que Marcelo dirigiu a Marques Mendes) está a sobrepor-se ao Presidente da República. Uma coisa é ser o Presidente dos afectos, outra é ser o Marcelo comentador permanente de vários órgãos de comunicação social. Há uma crise na Presidência da República no momento em que mais precisávamos dela.»

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A China que aí vem

 


«É interessante começar a olhar a política internacional de Xi Jinping à luz do 20.º congresso do Partido Comunista Chinês (PCC). A assembleia foi marcada por algumas subtis rupturas e significou o apogeu do poder de Xi Jinping. “O partido dirige tudo e Xi dirige o partido” é o resumo possível. O pensamento de XI Jinping não é apenas a actual ideologia dos comunistas chineses: é “o marxismo do nosso tempo”.

O secretário-geral e Presidente Xi usou o congresso para impor uma nova formulação das prioridades da China, destinada a ter impacto na sua política internacional. A prioridade das prioridades é a consolidação do seu próprio poder. E está estreitamente ligada a outra: “A segurança nacional constitui o fundamento da renovação da nação.” Os chineses devem preparar-se para “as duras provações que se seguirão, como tempestades ou até furações”.

Uma leitura distraída veria pouca novidade, dado o que Xi foi afirmando ao longo dos seus dois primeiros mandatos. As palavras merecem mais atenção porque implicam uma nova abordagem. A partir de 2002, os dirigentes chineses tinham por hábito afirmar que o país “conhecia um período de oportunidade estratégica”. Queria isto dizer que não estava perante nenhuma ameaça grave ou iminente e que se podia concentrar, na tradição de Deng Xiaoping, no seu desenvolvimento económico e acentuar a sua política de abertura ao mundo.

No relatório apresentado ao congresso, Xi introduz uma mudança fundamental. “As tentativas de bloqueio da China vindas do exterior correm o risco de se agravarem a todo o momento. A China encontra-se num período do seu desenvolvimento em que as oportunidades estratégicas coexistem com perigos e desafios, enquanto crescem os factores de incerteza.”

A China não abandonou, antes pelo contrário, a necessidade do desenvolvimento económico. Observa, no entanto, a sinóloga Alice Ekman: “Mas a hierarquia das prioridades de Pequim já não é a mesma — a China consolidou o seu estatuto de segunda potência económica mundial — que a do tempo de Deng Xiaoping, que se esforçava, após a Revolução Cultural, para tirar o país da pobreza. Isto não quer dizer que a capacidade de garantir o crescimento económico tenha deixado de ser um pilar da legitimidade do partido. Mas outros pilares existem: fazer frente aos Estados Unidos é um entre outros. E, sobretudo, o PCC considera que a consolidação do seu poder é uma condição prévia indispensável ao desenvolvimento económico” (Le Monde, 24 de Outubro).

A audácia de Xi

Muitos apontam o risco da ultracentralização e de uma política externa mais agressiva terem um impacto negativo sobre uma economia que atravessa um mau momento: quebra do crescimento, crise imobiliária, desemprego dos jovens e os efeitos perversos da política covid-zero. Mas, conclui Ekman, “a China está hoje disposta a pagar os custos das suas posições políticas ou geoestratégicas”. Outrora, o raciocínio de que Pequim era sobretudo sensível ao risco económico era relativamente válido. Hoje é muito menos.

Kevin Rudd, antigo primeiro-ministro da Austrália e sinólogo competente, vê no 20.º congresso uma mudança radical em relação às direcções anteriores. “A audácia de Xi não tem limites. (…) De acordo com a sua visão do mundo, profundamente ideológica, está determinado a mudar a ordem internacional de forma mais compatível com os interesses nacionais e os valores chineses. O seu poder para o fazer, pelo menos dentro do seu próprio sistema, deixou de ter limites” (The Economist, 25 de Outubro).

É uma política muito mais acentuadamente nacionalista. Para Rudd, a audácia de Xi dentro da China e a manutenção da direcção do partido em todos os planos reforçam a sua estatura internacional.

A rivalidade geopolítica com os Estados Unidos e o Ocidente em geral e o temor de um “cerco” são a chave da actual política externa chinesa. Depois da guerra comercial de Trump, a Administração Biden mantém a linha de impedir que a China se transforme na primeira potência das tecnologias do futuro. “A nossa prioridade é conservar a nossa vantagem competitiva sobre a China”, diz Washington. “A China tem a intenção, e cada dia mais, de desenhar uma ordem internacional que lhe seja favorável” e em que a influência dos Estados Unidos seria diminuída.

O New York Times publicou recentemente um inquérito sobre a política de Washington para atrasar o progresso tecnológico da China, uma espécie de “guerra comercial global”. É também uma resposta ao ritmo com que a China integra os seus avanços tecnológicos no seu sistema de armamento — designadamente os mísseis hipersónicos e os engenhos furtivos.

Uma mobilização total

Como se disse, a segurança nacional substituiu a economia como elemento central do futuro da China, e Xi usou este argumento para justificar a concentração do poder.

Explica a analista Nadège Rolland, especialista da China no National Bureau of Asian Research (de Washington): “Pequim tomou a decisão, há dez anos, de consolidar as suas defesas e de reforçar a sua autonomia. A sua política industrial voluntarista, as ‘rotas da seda’, a sua diplomacia proactiva perante o mundo emergente, as plataformas multilaterais sino-centradas, a sua aproximação à Rússia, (…) sem falar nas decisões que visam o controlo da população, como a relativa aos jogos de vídeo e o próprio covid-zero, fazem parte do mesmo esforço de mobilização do país para enfrentar a tempestade que se anuncia.”

O 20.º congresso faz prever um endurecimento da política chinesa. Xi enviou há dias uma mensagem colaborante a Joe Biden, que repetiu ao chanceler alemão, Olaf Scholz, na sua visita a Pequim na sexta-feira. Mas o diferendo de Taiwan e o clima de “guerra comercial” entre Pequim e Washington, sobretudo no campo das novas tecnologias, fazem prever um mundo tempestuoso. Enquanto os EUA procuram reforçar as suas alianças asiáticas, a China aposta em dividir a Europa e a América, assim como não desiste de criar clivagens dentro da própria União Europeia.

Rússia e Ucrânia

A invasão da Ucrânia abriu um capítulo extremamente perigoso nas relações entre a Rússia e o Ocidente. A China adoptou uma política prudente de apoio à Rússia. O mais recente desenvolvimento foi o aviso de Xi sobre o perigo das declarações acerca do uso de armas nucleares. É uma mensagem dirigida a Moscovo. Mas é inútil qualquer esforço ocidental para separar Pequim de Moscovo. Porque essa relação assenta num imperativo geopolítico que se sobrepõe a quaisquer outras razões.

“A relação entre a China e a Rússia pode ter limites, como demonstrou a recusa da China de violar abertamente as sanções ocidentais, mas está firmemente cimentada na sua visão comum dos Estados Unidos, e do Ocidente em geral, como adversário principal, e pelo seu objectivo comum de reformular a ordem mundial”, escreve a analista Helena Legarda, do Instituto Mercator de Estudios sobre China (El País, 2 de Novembro).

A posição de Pequim é de “apoio tácito” a Moscovo, em nome das “legítimas exigências de segurança” da Rússia. A China atribui a origem da crise à extensão da NATO e ao “exagero das tensões” protagonizadas pelos Estados Unidos. A ajuda económica que Pequim dá a Moscovo também é limitada, além de lhe trazer vantagens económicas, como o preço do petróleo.

Para a China, esta guerra não diz apenas respeito à Rússia e Ucrânia. Volto a citar Legarda e Martin Eleman, que com ela assina o artigo no El País: “Implica questões mais amplas sobre a rivalidade geopolítica e sobre o modo como a China se quer posicionar perante a Rússia e o Ocidente, agora e no futuro.” A rivalidade sino-americana é “a lente através da qual o PCC olha o mundo actualmente”.

Pequim vê na Rússia não um aliado, mas um parceiro estratégico de importância fundamental. Concluem os autores: “Por tudo isto, abrir uma brecha entre a China e a Rússia é uma proposta muito pouco realista. Não há nada que possamos oferecer [a Pequim] sem comprometer os nossos próprios valores, interesses e segurança.”

É a esta nova China, diplomaticamente mais agressiva, mais forte militarmente e menos aberta que a Europa tem de se adaptar sem cair na armadilha que Pequim lhe estende: a divisão da Aliança Atlântica e da própria UE.»

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