«É interessante começar a olhar a política internacional de Xi Jinping à luz do 20.º congresso do Partido Comunista Chinês (PCC). A assembleia foi marcada por algumas subtis rupturas e significou o apogeu do poder de Xi Jinping. “O partido dirige tudo e Xi dirige o partido” é o resumo possível. O pensamento de XI Jinping não é apenas a actual ideologia dos comunistas chineses: é “o marxismo do nosso tempo”.
O secretário-geral e Presidente Xi usou o congresso para impor uma nova formulação das prioridades da China, destinada a ter impacto na sua política internacional. A prioridade das prioridades é a consolidação do seu próprio poder. E está estreitamente ligada a outra: “A segurança nacional constitui o fundamento da renovação da nação.” Os chineses devem preparar-se para “as duras provações que se seguirão, como tempestades ou até furações”.
Uma leitura distraída veria pouca novidade, dado o que Xi foi afirmando ao longo dos seus dois primeiros mandatos. As palavras merecem mais atenção porque implicam uma nova abordagem. A partir de 2002, os dirigentes chineses tinham por hábito afirmar que o país “conhecia um período de oportunidade estratégica”. Queria isto dizer que não estava perante nenhuma ameaça grave ou iminente e que se podia concentrar, na tradição de Deng Xiaoping, no seu desenvolvimento económico e acentuar a sua política de abertura ao mundo.
No relatório apresentado ao congresso, Xi introduz uma mudança fundamental. “As tentativas de bloqueio da China vindas do exterior correm o risco de se agravarem a todo o momento. A China encontra-se num período do seu desenvolvimento em que as oportunidades estratégicas coexistem com perigos e desafios, enquanto crescem os factores de incerteza.”
A China não abandonou, antes pelo contrário, a necessidade do desenvolvimento económico. Observa, no entanto, a sinóloga Alice Ekman: “Mas a hierarquia das prioridades de Pequim já não é a mesma — a China consolidou o seu estatuto de segunda potência económica mundial — que a do tempo de Deng Xiaoping, que se esforçava, após a Revolução Cultural, para tirar o país da pobreza. Isto não quer dizer que a capacidade de garantir o crescimento económico tenha deixado de ser um pilar da legitimidade do partido. Mas outros pilares existem: fazer frente aos Estados Unidos é um entre outros. E, sobretudo, o PCC considera que a consolidação do seu poder é uma condição prévia indispensável ao desenvolvimento económico” (Le Monde, 24 de Outubro).
A audácia de Xi
Muitos apontam o risco da ultracentralização e de uma política externa mais agressiva terem um impacto negativo sobre uma economia que atravessa um mau momento: quebra do crescimento, crise imobiliária, desemprego dos jovens e os efeitos perversos da política covid-zero. Mas, conclui Ekman, “a China está hoje disposta a pagar os custos das suas posições políticas ou geoestratégicas”. Outrora, o raciocínio de que Pequim era sobretudo sensível ao risco económico era relativamente válido. Hoje é muito menos.
Kevin Rudd, antigo primeiro-ministro da Austrália e sinólogo competente, vê no 20.º congresso uma mudança radical em relação às direcções anteriores. “A audácia de Xi não tem limites. (…) De acordo com a sua visão do mundo, profundamente ideológica, está determinado a mudar a ordem internacional de forma mais compatível com os interesses nacionais e os valores chineses. O seu poder para o fazer, pelo menos dentro do seu próprio sistema, deixou de ter limites” (The Economist, 25 de Outubro).
É uma política muito mais acentuadamente nacionalista. Para Rudd, a audácia de Xi dentro da China e a manutenção da direcção do partido em todos os planos reforçam a sua estatura internacional.
A rivalidade geopolítica com os Estados Unidos e o Ocidente em geral e o temor de um “cerco” são a chave da actual política externa chinesa. Depois da guerra comercial de Trump, a Administração Biden mantém a linha de impedir que a China se transforme na primeira potência das tecnologias do futuro. “A nossa prioridade é conservar a nossa vantagem competitiva sobre a China”, diz Washington. “A China tem a intenção, e cada dia mais, de desenhar uma ordem internacional que lhe seja favorável” e em que a influência dos Estados Unidos seria diminuída.
O New York Times publicou recentemente um inquérito sobre a política de Washington para atrasar o progresso tecnológico da China, uma espécie de “guerra comercial global”. É também uma resposta ao ritmo com que a China integra os seus avanços tecnológicos no seu sistema de armamento — designadamente os mísseis hipersónicos e os engenhos furtivos.
Uma mobilização total
Como se disse, a segurança nacional substituiu a economia como elemento central do futuro da China, e Xi usou este argumento para justificar a concentração do poder.
Explica a analista Nadège Rolland, especialista da China no National Bureau of Asian Research (de Washington): “Pequim tomou a decisão, há dez anos, de consolidar as suas defesas e de reforçar a sua autonomia. A sua política industrial voluntarista, as ‘rotas da seda’, a sua diplomacia proactiva perante o mundo emergente, as plataformas multilaterais sino-centradas, a sua aproximação à Rússia, (…) sem falar nas decisões que visam o controlo da população, como a relativa aos jogos de vídeo e o próprio covid-zero, fazem parte do mesmo esforço de mobilização do país para enfrentar a tempestade que se anuncia.”
O 20.º congresso faz prever um endurecimento da política chinesa. Xi enviou há dias uma mensagem colaborante a Joe Biden, que repetiu ao chanceler alemão, Olaf Scholz, na sua visita a Pequim na sexta-feira. Mas o diferendo de Taiwan e o clima de “guerra comercial” entre Pequim e Washington, sobretudo no campo das novas tecnologias, fazem prever um mundo tempestuoso. Enquanto os EUA procuram reforçar as suas alianças asiáticas, a China aposta em dividir a Europa e a América, assim como não desiste de criar clivagens dentro da própria União Europeia.
Rússia e Ucrânia
A invasão da Ucrânia abriu um capítulo extremamente perigoso nas relações entre a Rússia e o Ocidente. A China adoptou uma política prudente de apoio à Rússia. O mais recente desenvolvimento foi o aviso de Xi sobre o perigo das declarações acerca do uso de armas nucleares. É uma mensagem dirigida a Moscovo. Mas é inútil qualquer esforço ocidental para separar Pequim de Moscovo. Porque essa relação assenta num imperativo geopolítico que se sobrepõe a quaisquer outras razões.
“A relação entre a China e a Rússia pode ter limites, como demonstrou a recusa da China de violar abertamente as sanções ocidentais, mas está firmemente cimentada na sua visão comum dos Estados Unidos, e do Ocidente em geral, como adversário principal, e pelo seu objectivo comum de reformular a ordem mundial”, escreve a analista Helena Legarda, do Instituto Mercator de Estudios sobre China (El País, 2 de Novembro).
A posição de Pequim é de “apoio tácito” a Moscovo, em nome das “legítimas exigências de segurança” da Rússia. A China atribui a origem da crise à extensão da NATO e ao “exagero das tensões” protagonizadas pelos Estados Unidos. A ajuda económica que Pequim dá a Moscovo também é limitada, além de lhe trazer vantagens económicas, como o preço do petróleo.
Para a China, esta guerra não diz apenas respeito à Rússia e Ucrânia. Volto a citar Legarda e Martin Eleman, que com ela assina o artigo no El País: “Implica questões mais amplas sobre a rivalidade geopolítica e sobre o modo como a China se quer posicionar perante a Rússia e o Ocidente, agora e no futuro.” A rivalidade sino-americana é “a lente através da qual o PCC olha o mundo actualmente”.
Pequim vê na Rússia não um aliado, mas um parceiro estratégico de importância fundamental. Concluem os autores: “Por tudo isto, abrir uma brecha entre a China e a Rússia é uma proposta muito pouco realista. Não há nada que possamos oferecer [a Pequim] sem comprometer os nossos próprios valores, interesses e segurança.”
É a esta nova China, diplomaticamente mais agressiva, mais forte militarmente e menos aberta que a Europa tem de se adaptar sem cair na armadilha que Pequim lhe estende: a divisão da Aliança Atlântica e da própria UE.»
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