«Apesar de terem passado meses desde o início dos trabalhos parlamentares, a Assembleia da República ainda não elegeu os cinco conselheiros que lhe competem nesta legislatura. E é neste quadro de inércia que o Presidente, cansado de esperar, marcou a reunião de um Conselho de Estado desatualizado para 9 de janeiro.
Em plena campanha presidencial, com duas pessoas na dupla condição de conselheiros e candidatos presidenciais, o que deveria ser um órgão de consulta transforma-se em palco de campanha. A solução é óbvia: Marques Mendes e Ventura devem pedir escusa de participar. Ao dizer que são apenas três horas de intervalo na campanha, o candidato do governo reforça a incapacidade em perceber as fronteiras institucionais. A mesma que o leva a acreditar que ter sido lobista durante mais de uma década é politicamente irrelevante para o cargo que pretende ocupar.
Mais grave do que a sobreposição com a campanha, este Conselho de Estado é a última colisão entre a arrogância de quem governa como se não tivesse de prestar contas e a irrelevância a que o Presidente se deixou conduzir ao longo do mandato.
Mesmo informalmente, o governo tem vindo, através de declarações públicas, a assumir compromissos políticos, financeiros e até militares com a Ucrânia – contribuições diretas, participação em programas conjuntos de apoio militar e industrial no âmbito da UE e da NATO, disponibilidade para integrar missões de paz – que terão impacto futuro. A importância, o âmbito e a longevidade destes compromissos justificam um debate sério, que não existiu. Nem no Parlamento, nem com o Presidente da República, que a Constituição não coloca como figurante em matérias de política externa e de defesa.
É um padrão. O Parlamento serve para aprovar autorizações legislativas, o Presidente é um guichet para promulgações com quem não tem de existir qualquer coordenação, mesmo quando há partilha de poderes. Se isto é assim agora, imagine-se Montenegro com uma maioria parlamentar.
Marcelo acorda tarde. Depois de anos a confundir proximidade com autoridade e comentário com intervenção, tenta recuperar num gesto concentrado aquilo que foi esbanjando em recados e declarações de circunstância. Só que o poder presidencial não se reclama por decreto nem por convocatória tardia. Quando o Presidente se transforma em ruído de fundo, o governo aprende a ignorá-lo.
O resultado é um curto-circuito institucional. De um lado, um executivo que galopa sobre competências alheias, seguro de que ninguém o travará. Do outro, um presidente que descobre, no fim do mandato, que a função de árbitro não se exerce na convocatória, no pior momento possível, de um Conselho de Estado.
Este episódio também é um aviso aos eleitores. Num contexto em que a direita concentra o governo, dois terços do Parlamento, a maioria das câmaras, as regiões autónomas, e ainda se prepara para pôr juízes do Chega no Tribunal Constitucional, o maior risco não é a arrogância de quem governa, é a eleição de um sucessor sem autonomia para ser mais do que um delegado do governo em Belém. A Ucrânia é o tema. Mas o que está em jogo é outra coisa: se os portugueses decidirem, com todos estes indícios, eleger um presidente-adjunto, tudo isto se agravará.»

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