22.3.25

Antes dos teclados

 


Tinteiros Arte Nova. Fim do século XIX / início do XX.

Daqui.

Gouveia e Melo

 


Livra! Ouvido algures:
«Tem tudo para agradar a um certo tipo de portugueses, é Cavaco com a farda de Eanes».


Os mortos que ninguém chora

 


«As bolsas de resistência política à imigração começaram nos países onde os movimentos extremistas eram mais vocais, mas rapidamente o discurso securitário, tendente ao fecho de fronteiras e ao controlo da legalização de cidadãos, ganhou tração noutras latitudes. Portugal incluído. Também aqui, a dicotomia esquerda-direita se foi esbatendo e hoje não é invulgar encontrarmos socialistas e sociais-democratas um pouco por toda a Europa que defendem o reforço de medidas restritivas no acolhimento e na legalização desses imigrantes. Em certo sentido, a Europa humanista, de braços abertos para o outro, já não existe enquanto projeto civilizacional comum. Hoje, os esforços estão alinhados com as máquinas de guerra.

O ano passado deixou-nos uma mancha negra: foi o pior de sempre em número de mortes de migrantes. Quase nove mil pessoas morreram enquanto tentavam “dar o salto” para outra existência.»

Continuar a ler AQUI.

“Democrazy” e o fim do bem comum

 


«O que acontece quando a memória histórica se esbate e os mesmos erros do passado se repetem, envoltos em novas tecnologias e dinâmicas sociais? A ascensão da desinformação, o retrocesso dos direitos fundamentais e a substituição da justiça pela força são sintomas claros de um sistema democrático que se desfigura.

A indiferença face ao avanço de forças autoritárias pode transformar-se, mais cedo ou mais tarde, numa prisão colectiva. A desigualdade cresce, enquanto a liberdade torna-se um privilégio de poucos. O medo, a raiva e o ressentimento – emoções que moldam o comportamento humano desde sempre – são hoje amplificados por algoritmos, redes sociais e discursos de ódio que ecoam numa sociedade cada vez mais fragmentada e polarizada.

Orwell e Huxley anteviram dois futuros distópicos: um onde a repressão é brutal e declarada; outro onde o prazer anestesia a crítica. Hoje, vivemos uma síntese dos dois. A política da pós-verdade e do espetáculo, o consumo compulsivo de entretenimento e a insaciável busca de validação digital assemelham-se ao “soma” de Admirável Mundo Novo – um paliativo social que perpetua a apatia.

Entretanto, as democracias perdem terreno para regimes que não têm pudor em usar o medo e a violência como moeda de troca. O avanço da militarização e da retórica belicista reforça o velho princípio de Sun Tzu: a diplomacia só é eficaz quando sustentada pela força. No entanto, se a história ensina algo, é que o verdadeiro poder reside na construção de sociedades coesas, guiadas pela humildade, pela gratidão e pelo compromisso com o bem comum.

A falácia da meritocracia, repetida como um mantra neoliberal, justifica injustiças e desresponsabiliza Estados e elites. Mas uma sociedade saudável não se pode basear exclusivamente na competição desenfreada. Precisamos de resgatar a ética e a empatia, sem as quais a democracia se esgota, tornando-se uma caricatura de si mesma – uma “democrazy”, onde a liberdade não passa de um slogan vazio.

Para fortalecer a democracia e combater a “democrazy”, é fundamental investir na literacia mediática e no pensamento crítico desde os primeiros anos de educação, com vista à capacitação dos cidadãos para discernir a desinformação, compreender a complexidade dos problemas sociais e participar de forma mais informada e ética no debate público. Além disso, seria crucial promover espaços de diálogo inclusivos e plurais, que permitam a construção de um entendimento mútuo e o desenvolvimento de soluções coletivas para os desafios enfrentados.

O futuro ainda não está escrito. Mas, para que a democracia sobreviva, é urgente que nos recordemos: a história não perdoa os que se recusam a aprender com ela, mas oferece oportunidades àqueles que ousam inovar construindo pontes para um futuro comum mais justo.»


Ricardo Paes Mamede: que política económica poderemos debater nesta campanha?

 

21.3.25

Biscoitos e mais biscoitos

 


Biscoiteiras Arte Nova em vidro esmaltado com motivos florais.
François-Théodore Legras.

Daqui.

Discriminação Racial

 


Apoios a Gouveia e Melo

 


Do PSD e não só.

Daqui.

A campanha no “beco ético”

 


«Filas de comentadores pedem, em modo Miss Mundo, uma campanha que não se espoje na “lama”, expressão para o escrutínio às relações financeiras de um primeiro-ministro em exercício com empresas que dependem de decisões do Estado. Isto até seria possível, mas não aconselhável, em eleições normais, mesmo com um candidato sob suspeição. É impossível quando foi o próprio a exigir um plebiscito à sua honestidade. O tema desta campanha são mesmo os “becos de natureza pessoal e ética” de Montenegro, usando um eufemismo do Presidente. E há pelo menos um beco que, vença quem vencer, continua¬rá sem saída: nenhum primeiro-ministro pode receber uma avença, diretamente ou através de uma empresa de fachada, ou pode achar que as suas relações empresariais estão defendidas por qualquer tipo de sigilo. A CPI teria servido para que a vitimização em campanha não ocupasse o lugar do escrutínio no Parlamento. E a certeza que o primeiro-ministro iria ser “torrado” é sinal de pouca confiança nos factos e nas provas.

Fora isto, o que há para debater? Os programas dos partidos serão semelhantes aos do ano passado, os líderes são todos os mesmos. De lá para cá o mundo mudou, mas não estou seguro de que os dois principais candidatos tenham coisas diferentes a dizer sobre as consequências da vitória de Trump. Insensível a três eleições e dois Governos em quatro anos, a nossa economia foi crescendo, enquanto saltávamos entre crises políticas ao dobro do ritmo da zona euro. As crises do SNS e da habitação continuam a agravar-se, com a ajuda de uma desastrosa ministra da Saúde e de políticas que inflacionaram ainda mais os preços das casas. Pelo menos as promessas de soluções em 60 dias não se repetirão. O dinheiro do excedente herdado foi distribuído, como se esperava, a pensar num ciclo curto. É o trunfo deste Governo, depois de Costa nos ter andado a dizer que era insustentável responder às exigências de professores, polícias e oficiais de justiça. Com custos para a eficácia do Estado e, já agora, para o PS.

O Governo também não caiu por um bloqueio político ou por ação da oposição, como na Madeira. O PS viabilizou-lhe o programa e o Orçamento, com alterações que, no fim, se resumiram a matar uma versão do IRS Jovem que até Montenegro reconheceu ser disparatada e descer menos um ponto percentual o IRC. E há poucas semanas inviabilizou duas moções de censura. O Presidente foi amigo e poucas leis tiveram de passar pela Assembleia da República. Nunca um Governo com uma base parlamentar tão curta teve tanto espaço de manobra.

Passado um ano das últimas eleições, e sem um bloqueio que tenha impedido a governação, como raio poderíamos não passar uma campanha a discutir a falta de ética de Montenegro? É a única razão para termos sido obrigados pelo próprio a voltar às urnas. É verdade que, com a atual intensidade mediática, tudo cansa muito depressa. O arrastão, que mistura o relevante com o acessório, o rigoroso com a mentira, tende a dessensibilizar as pessoas. Mas que o PSD não se iluda: mesmo desfocado, o perfil de Luís Montenegro mudou para sempre e com toda a justiça. As pessoas nunca mais o verão da mesma forma. E que o PS não se iluda: seria um enorme erro Pedro Nuno Santos concentrar o seu discurso nestes casos. O estrago já foi feito por Montenegro e pairará na campanha. O resto será feito pelos outros partidos, figuras secundárias do PS e notícias que saiam. O líder da oposição precisa de conquistar o que faltou há um ano: credibilidade para converter o desgaste de Montenegro em voto no PS. Não faltam indecisos numas eleições que ninguém queria. Falta confiança numa alternativa. Isso não se faz a falar da empresa do primeiro-ministro.

Estou convencido de que, com mais ou menos clareza, a maioria dos portugueses já percebeu que as relações de Montenegro com algumas empresas são, sendo delicado, muito pouco saudáveis. O que nos será perguntado não é se acreditamos nele. Suspeito que, se dependesse apenas disso, a sua vitória seria improvável. O que nos será perguntado é se, havendo uma situação económica estável e tendo distribuído dinheiro, nos importamos com a vulnerabilidade de quem nos governa. É que isto não vai desaparecer depois das eleições. Acontecendo depois de Sócrates, este “plebiscito” será mais sobre nós do que sobre o primeiro-ministro. Em geral, sou pouco otimista em relação à exigência da maioria das pessoas nesta matéria. Se a vitória do ano passado não tivesse sido tão curta, ia ao Estoril apostar que Montenegro se aguentava, como Albuquerque se aguentará. Veremos se o líder do PS, que ao fim do ano já não é visto como “irresponsável”, consegue conquistar mais do que a deceção ética com Montenegro.»


Nova Iorque contra o genocídio

 


20.3.25

Não é azul, mas…

 


«Paisagem com um lago», Museu Hermitage, 1904-1906.
Émile Gallé.

Daqui.

20.03.2003. E se tivesse sido o Iraque a bombardear os Estado Unidos?

 


Eduardo Galeano, em Los Hijos de los Dias:



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Martinho

 


Na praceta onde moro, parte desta árvore caiu em cima de um carro que não ficou em bom estado. O meu estava perto de outra que se manteve firme. Fico grata ao Martinho. Hoje há mais?

Não parece mas ela aí está

 



Viagem ao umbigo de Carlos Moedas

 


«Percorrer as redes sociais de Carlos Moedas é uma inspiração para qualquer influencer. Esta segunda-feira soubemos pelo Instagram que inaugurou uma creche em Monsanto, resultado de “um trabalho conjunto com a Junta de Freguesia de Benfica”. Traduzindo: inaugurou uma obra feita pela junta, paga integralmente pela junta e que vai ser gerida pela junta. A intervenção da CML foi a cedência de um espaço que estava vago.

Entre fotografias de uma porta com borboletas e brinquedos, lá aparece o presidente - que nesse dia, infelizmente, não conseguiu estar na reunião de câmara extraordinária que ele próprio tinha marcado, para defender a sua proposta de prolongamento da concessão dos terrenos da Alta de Lisboa à SGAL por mais sete anos. Ao contrário do que chegou a anunciar um jornal, a proposta não foi votada nesse dia por ausência do proponente, que estava ocupado a cortar fitas.

A ânsia de inaugurações é tanta que, quando não há nada para inaugurar, Moedas até lança primeiras pedras em estaleiros onde as obras já estão a bom ritmo. O Centro de Saúde de Campo de Ourique ou o da Ribeira Nova, que fazem parte do pacote de projetos que herdou do anterior executivo, são bons exemplos. O que as redes não mostram são novas unidades da sua iniciativa. Zero, bola, nem um rascunho, que o presidente anda demasiado ocupado a tentar criar um Estado Social paralelo (ou local, como prefere dizer). E a tirar fotografias em todas as oportunidades.

Se não segue as várias publicações diárias de Carlos Moedas, não se preocupe. Há um vídeo que sumariza a sua semana e que é uma extraordinária peça de marketing pessoal. Mostra como, em apenas seis dias, Moedas consegue lançar várias primeiras pedras, dar entrevistas a duas televisões, fazer inaugurações, ir ao teatro, atribuir medalhas de mérito cultural, passar pela Moda Lisboa, por um jantar no Dia da Mulher, estar num concerto do Tony Carreira e ainda aparecer a tempo de disparar o tiro de partida da Meia-maratona de Lisboa. Não sabemos se no sétimo dia descansou.

Moedas também inaugura obras de outras entidades, em cerimónias para as quais é apenas um convidado protocolar. Como foi o caso do novo Centro de Acolhimento para Sem-Abrigo da Santa Casa da Misericórdia e dos jardins do CAM, na Gulbenkian.

A verdade é que, com tanta agitação, as publicações tornam-se cansativas e forçadas e um dia sem nada nas redes deixa-nos preocupados com o presidente de Lisboa. O ritmo deve ser angustiante, sobretudo para quem lhe vai tratar da campanha eleitoral. O futuro-candidato-Moedas vai ter dificuldades em competir com o ainda-não-candidato na criação de uma agenda tão dinâmica. Já para não dizer que o frenético proto-candidato arrisca chegar esgotado à meta.

Não estamos habituados a que um autarca tenha uma máquina de propaganda tão oleada, e este nível de autopromoção permanente só se justifica quando há outras ambições em jogo. Mas será isto que queremos dos políticos, uma figura híbrida entre o gestor do condomínio e uma influencer?

Eu trocaria de bom grado as mensagens de propaganda por explicações sobre a nova greve da Carris e o que está a fazer o município para evitar o caos na vida dos lisboetas. Também preferia que, em vez de me mostrar que foi ao teatro, o presidente me informasse sobre as peças em cena nos equipamentos municipais. E gostaria, principalmente, de saber quem está a governar, de facto, a cidade enquanto Carlos Moedas nos mostra o seu umbigo a todas as horas do dia.

PS - Enquanto escrevo estas linhas, Moedas está no Reels no Centro Paroquial S. Francisco de Paula, a prometer voltar para comer a sopa na cantina. Já vimos este filme.»


19.3.25

PSD – Com esta ventania…

 


… nem sabe onde vai parar!

19.03.1968 – Mário Soares detido e deportado

 


Mário Soares foi deportado para S. Tomé, pouco depois de ter estado preso e incomunicável, durante três meses, pretensamente por ter fornecido a um jornalista do Sunday Telegraph informações relativas a um escândalo sexual que envolveu suspeitas de actos pedófilos por parte de várias figuras públicas – o chamado caso dos «Ballet Rose». No fim de Fevereiro de 1968, conseguiu sair em liberdade na sequência de um pedido de habeas corpus.

O que se seguiu, aqui resumido por Maria João Avillez (Soares. Ditadura e Revolução, 1996, Círculo de Leitores, p. 197):


Detido pela PIDE nesse 19 de Março, foi-lhe comunicado que partiria para S. Tomé no dia seguinte, por volta das onze horas da noite. Rapidamente espalhada a notícia (sem internet, sem telemóveis...), centenas de pessoas, de todos os quadrantes da oposição, dirigiram-se para o velho aeroporto da Portela, na tentativa de chegarem a uma varanda de onde então se podia assistir a descolagens e aterragens de aviões. Em vão, porque a polícia correu tudo à bastonada. Recordo bem algumas cabeças partidas e correrias atabalhoadas por corredores e escadarias. Alguns escaparam: Maria Belo, por exemplo, porque era loira, foi tomada por estrangeira e saiu calmamente, sem pressas e sem que os bastões lhe tocassem. Eu não era loira, mas só um me tocou – e de raspão.

In illo tempore, havia um consenso sagrado: contra a PIDE, sempre, quaisquer que fossem as afinidades ou as divergências. E, se existiam algumas (poucas) excepções, não faziam mais do que confirmar a regra. 
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António Brito Guterres na SIC N

 


Chegou a vez das universidades americanas

 


«Caro leitor, cara leitora

Há já longos anos, durante uma entrevista ao sociólogo catalão Manuel Castells a propósito da sua obra seminal sobre a sociedade da informação, perguntei-lhe onde residia a força dos Estados Unidos. Na sua economia? No seu poderio militar? Castells interrompeu-me para dizer sem hesitar: "Nas suas universidades". Explicou-me detalhadamente porquê e como eram financiadas por grandes somas vindas directamente do Pentágono.

Veio-me esta entrevista à memória ao ler as notícias cada vez mais frequentes sobre os ataques da actual Administração às universidades americanas, sobretudo, as da Ivy League – de Harvard, a mais antiga e a mais famosa, a Yale, passando pela Columbia ou pela Brown, nomes que nos são familiares. Esses ataques passam pelo corte de verbas, sobretudo à investigação científica, e até pela expulsão de académicos de outros países cujos green cards são inesperada e ilegalmente cancelados.

Na sua última coluna do Washington Post, Fareed Zakaria chamava a atenção para as consequências do que se estava a passar, num texto intitulado Trump is launching America’s version of the Cultural Revolution. "Não há área em que o domínio global dos Estados Unidos seja mais absoluto do que no ensino universitário", diz o colunista, lembrando que, com 4% da população e 25% do PIB mundial, a América tem 72% das 25 melhores universidades do mundo, segundo um dos rankings mais considerados, e 64% noutro.

É esse tesouro que está a ser subvertido pela Administração Trump. Sem surpresas, diz Zakaria. Basta-lhe citar um discurso de J.D. Vance durante a Conferência Nacional Conservadora de 2021. "Temos de atacar as universidades honesta e agressivamente. Os seus professores são nossos inimigos". A Administração de que é vice-presidente está a pôr "agressivamente" este objectivo em prática. O assalto mais radical está a ser financeiro, prossegue Zakaria, traduzindo-se pelo congelamento ou pela redução drástica das subvenções e dos empréstimos do Governo federal. O impacto cumulativo pode atingir milhares de milhões de dólares de cortes em programas e projectos de investigação.

Quando um líder político quer transformar uma democracia numa forma de governo autoritário, procura minar as fontes independentes de informação e de responsabilização, explica o colunista. Dos tribunais à imprensa, passando pelas agências governamentais autónomas. Putin fá-lo há 25 anos. Em menor grau, é este o caminho que está a ser seguido por Viktor Orbán, na Hungria, ou Narendra Modi, na Índia. "O enfraquecimento da educação superior é uma parte importante desta estratégia".

Só a suspensão do funcionamento da USAID, para além da fome, da doença e da morte que já está a provocar, cortou 800 milhões de dólares de subvenções à John Hopkins. A Columbia sofreu um corte de 400 milhões porque foi acusada de antissemitismo. Com o fim anunciado do Departamento da Educação, que já viu o seu staff reduzido a metade, acaba também grande parte do apoio directo aos estudantes. Há, evidentemente, processos judiciais para tentar impedir estas medidas, mas se Donald Trump tenciona cumprir o que os tribunais decidirem é hoje uma enorme interrogação. Na semana passada, num discurso no Departamento de Justiça, insultou juízes e tribunais, para além dos órgãos de comunicação social, com particular destaque para a CNN e a NBC, que considerou "ilegais". Razão? Passam mais de 90% do tempo a "criticar-me".

O ambiente gerado junto da opinião pública pelas universidades, acusadas de wokismo e vistas como redutos privilegiados das elites intelectuais, alimentando o ressentimento, favorece estas medidas. Zakaria reconhece isso mesmo. "Demasiados professores e administradores das universidades agiram nos anos recentes como ideólogos liberais (no sentido americano do termo), mais do que procurarem a verdade empírica. Académicos tentaram silenciar o debate em torno de questões legítimas, incluindo sobre o confinamento durante a pandemia, os tratamentos transgénicos ou as questões de diversidade, igualdade e inclusão." Criaram, por vezes, um ambiente opressor. Houve, no ano passado, gigantescos protestos contra Israel na Universidade de Columbia e noutras universidades, por causa da guerra em Gaza. Houve excessos. Os estudantes judeus sentiram-se ameaçados. Se recuarmos aos anos 1960, o mesmo aconteceu contra a guerra no Vietname. Faz parte do comportamento dos jovens e das suas causas. Não se resolve com cortes à investigação científica.

Voltando a Castells: é porque a produção científica das universidades e centros de investigação está na base do poder tecnológico, económico e militar da América que estes ataques deliberados são mais uma forma de a Administração Trump enfraquecer o poder americano no mundo. Está a fazê-lo em todos os domínios, da economia às alianças, do soft power à cultura.

Perseguições

Nas universidades, não são só os financiamentos que estão em causa. Uma das razões pelas quais a América é o país com mais Prémios Nobel está também na capacidade das suas universidades para atraírem professores e investigadores do mundo inteiro. Alguns vão doutorar-se, muitos ficam. Começam agora a ser alvo de perseguição.

O New York Times relatava há dois dias um caso exemplar. A médica Rasha Alawieh, especialista em transplantes de rim e professora da Universidade Brown, detentora de um visto válido, foi expulsa do país, apesar da decisão do tribunal de Massachusetts de suspender temporariamente a ordem de deportação. No mês passado, Alawieh foi visitar a família ao Líbano, onde nasceu e estudou. Foi presa no aeroporto quando regressava e colocada num voo para Paris pelos Serviços de Fronteiras.

O Líbano nem sequer está na longa lista de países cujos nacionais vão ser proibidos de entrar nos Estados Unidos. O advogado que representa a professora e a universidade esclareceu que, enquanto ela estava no Líbano, o consulado americano em Beirute lhe emitiu um visto H-1B, que permite aos cidadãos estrangeiros altamente especializados viver e trabalhar na América. O seu visto foi patrocinado pela Brown. A médica, de 34 anos, formou-se na Universidade Americana de Beirute em 2015. Foi para os Estados Unidos, três anos depois, completar os estudos na Universidade Estadual do Ohio, para em seguida ensinar em Yale e em Brown.

Os pormenores desta história ajudam a compreender o que sentirão nesta altura os milhares de professores e investigadores em situação semelhante à de Rasha Alawieh. Os Estados Unidos começam a ser um destino perigoso. Até para quem dispõe de green cards ou de vistos especiais, sobretudo se não tiver a pele branca.

Caro leitor, cara leitora, este é um dos lados menos conhecidos da natureza autoritária e racista da nova Administração e, ao mesmo tempo, do seu crescente desrespeito pelos tribunais, a última barreira ao arbítrio e à ilegalidade de muitas das decisões que foram orquestradas pelo Presidente americano nestes 50 dias.

A Europa abre os braços

Entretanto, deste lado do Atlântico, as universidades europeias já começaram a aliciar os cientistas americanos, convencendo-os a vir para cá trabalhar.

O Financial Times noticiava ontem que a Universidade de Cambridge, com uma forte capacidade de atracção dada a sua alta qualificação nos rankings mundiais, é uma delas, mas não é a única. O mesmo está a acontecer em França, na Suécia, mas também na China.

Escreve o diário britânico que a Administração americana está a preparar-se para cortar milhares de milhões de fundos às agências federais, como os institutos nacionais de saúde. "O ambiente político na América é desencorajador para a investigação independente", diz ao jornal Maria Leptin, presidente do Conselho Europeu de Investigação. "O que podemos fazer é dizer com toda a clareza aos nossos colegas que a comunidade de investigadores europeus e os seus financiadores dão as boas-vindas à Europa àqueles que, independentemente da nacionalidade, consideram as suas opções para o trabalho científico ameaçadas." O reputado instituto sueco Karolinska, de investigação biomédica, está a oferecer sabáticas aos colegas americanos.

A China, naturalmente, também não perde a oportunidade. O Global Times, jornal do Partido Comunista, escreveu na semana passada que, "sob o pretexto da segurança nacional, Washington está a desestabilizar o campo da investigação científica." Diz o jornal: "Confrontados com uma pressão crescente, muitos cientistas sino-americanos estão a reavaliar a suas carreiras e a voltar a sua atenção para a China, um país mais aberto, inclusivo e cheio de oportunidades".

A América de Trump a dar mais um monumental tiro no pé.

Tenha uma boa semana»


18.3.25

Do mundo azul

 


Vaso de vidro azul, cobalto Papillon, iridescente, com formato de abóbora dupla. Klostermühle, 1900.
Viúva de Lötz.

Daqui.

Só faltava Lili Caneças!

 


Se PNS deixasse de responder a qualquer patetice, só ficava a ganhar. Exactamente desde hoje até daqui a dois meses, há muito caminho importante a percorrer.

O silêncio ensurdecedor do PSD

 


«O silêncio de que falo é, pois, o silêncio das dúvidas que não se levantaram, das vozes que não questionaram, dos incómodos que não se ouviram, das críticas, ainda que veladas, que não se fizeram. Devo excecionar, para ser justo, dois ou três bravos militantes. Mas não mais. Foi o silêncio, um ruidoso silêncio, aquele que imperou.

É evidente que não sou ingénuo e não estaria à espera de que logo se desencadeasse uma noite das facas longas. Nem isso teria feito qualquer sentido, de resto. Afinal, naqueles primeiros dias, levantaram-se dúvidas à espera de respostas e não necessariamente certezas. Da mesma maneira não esperaria, nem porventura isso seria inteiramente leal, desafios declarados ou ataques abertos na praça pública. Mas destas hipotéticas posições quixotescas ao silêncio acrítico e à disponibilidade para cegamente atestar sobre o que não se conhecia, vai um mundo de diferença. E é esse mundo de diferença que impressiona.»


Democracia não é só urnas: o perigoso precedente de Montenegro

 


«O populismo moderno já não rejeita a democracia. Pelo contrário, veste-lhe a pele. Ou melhor, abraça a sua versão reduzida a um único princípio: a vontade da maioria expressa no voto. O argumento é simples e enganador: quem vence eleições não só tem o direito de governar como o de reescrever as regras, deslegitimar contrapesos e colocar o Estado de Direito em segundo plano.

Os seus líderes já não falam em acabar com a democracia — querem "purificá-la". Dizem que a verdadeira democracia é aquela onde a vontade do povo prevalece sem entraves, onde a maioria governa sem limites, onde instituições que regulam o poder são um vestígio elitista que precisa de ser eliminado.

Neste modelo, quem governa deixa de estar submetido às regras democráticas e passa a ser o único intérprete legítimo da voz do povo. O líder eleito já não responde a tribunais, parlamentos ou imprensa — responde apenas ao eleitorado. E, se houver resistência, a culpa é das “elites”.

Os exemplos são evidentes. Viktor Orbán usa referendos manipulados e consultas nacionais para justificar o seu poder, enquanto denuncia tribunais e parlamentos como obstáculos à democracia real. Donald Trump convenceu milhões de americanos de que eleições que não o favorecem são fraudulentas. Jair Bolsonaro ensaiou um golpe no Brasil com o mesmo argumento. Benjamin Netanyahu tenta moldar o sistema judicial à sua sobrevivência política. Em cada um destes casos, a democracia não é rejeitada — é instrumentalizada.

E o resultado é sempre o mesmo: um líder eleito que se torna intocável.

A democracia liberal não se esgota no voto. A sua essência está no equilíbrio de poderes, no respeito pelas instituições, na liberdade de imprensa e na submissão de qualquer governo às regras que o precedem e o sucedem. Quando um líder decide que as urnas absolvem tudo, abre-se um precedente perigoso: o voto deixa de ser uma escolha e passa a ser um salvo-conduto para governar sem limites.

Luís Montenegro não está a seguir esse guião. Não está a descredibilizar eleições passadas. Não está a atacar tribunais. Não está a anunciar um regime à medida.

Mas está, sem querer, a normalizar uma lógica que pode ser usada por quem venha depois dele.

Montenegro quis resolver uma crise política recorrendo a eleições. Até aqui, nada de extraordinário. Mas o que está verdadeiramente em jogo nestas legislativas não é um programa de governo nem uma escolha entre políticas públicas. É um julgamento de confiança. Montenegro recorreu a uma moção de confiança que sabia inviável porque preferiu transferir essa decisão para o eleitorado.

Não é ilegal. Não é anti-democrático. Mas é um precedente que redefine a forma como a política pode ser usada para escapar à fiscalização institucional.

Se Montenegro vencer e interpretar essa vitória como um referendo à sua idoneidade, abre-se uma porta perigosa. O que impede, materializado o precedente, que um líder mais extremado veja na convocação de eleições um método para fugir à fiscalização e reforçar um poder absoluto?

Montenegro não é um iliberal (já aqui elogiei, aliás, a sua coragem no não é não). Não é Orbán. Não é Trump. As diferenças são evidentes. Mas as regras democráticas não se desfazem num dia. A erosão institucional não acontece com golpes. Acontece quando práticas que deveriam ser exceção se tornam norma.

A história da democracia não se faz apenas com aquilo que os líderes de hoje fazem. Faz-se, acima de tudo, com aquilo que os líderes de amanhã aprendem que podem fazer. Se Montenegro ganha e diz que as eleições o absolvem de qualquer dúvida, estará inocentemente a ensinar uma lição que um dia poderá ser usada contra a própria democracia.

E, nesse dia, talvez seja tarde para perceber que democracia nunca foi só contar votos.»


Há sempre quem esteja pior

 


17.3.25

Mais um

 


Vaso Clematite em vidro camuflado. Cerca de 1900.
Émile Gallé.

Daqui.

A grandeza da exclusividade

 

«A segunda figura do Estado, José Pedro Aguiar-Branco, já fez questão de mostrar ao país que não desempenha funções em exclusividade. Ou, no mínimo, exerce-as mal. O presidente da Assembleia da República (AR), reunido com outros militantes de relevo do PSD, surpreendeu ao afirmar que Pedro Nuno Santos fez pior à democracia em seis dias do que André Ventura em seis anos. (…) Depois de ter deixado o Parlamento resvalar para uma espécie de sala de aula com alunos malcomportados, Aguiar-Branco resolveu mostrar-nos que não lidera a casa da democracia a tempo inteiro, justificando as declarações com o facto de ter falado “enquanto militante do PSD”. Definitivamente, um ano não foi suficiente para perceber a importância e a grandeza de ser segunda figura do Estado.»


Elis Regina – Seriam 80!

 


Elis Regina nasceu em 17 de Março de 1945 e morreu com apenas 36 anos. 

Viveu os «anos de chumbo» da ditadura brasileira e não lhes passou ao lado ao participar em vários movimentos culturais e políticos. Uma das suas canções – «O bêbado e o equilibrista» – funcionou como uma espécie de hino pela amnistia de exilados brasileiros. Notável também, nessa mesma linha, «Aos nossos filhos». E como esquecer o seu ícone «Águas de Março»?








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Corrupção no Estado Novo

 


Um convite para a lama

 


«Com as intervenções tresloucadas no Conselho Nacional do PSD, está dado o mote para a campanha do partido: a vitimização. E o mantra será o de que qualquer debate sobre a honestidade do primeiro-ministro representa uma cedência ao discurso do Chega. Como se o PSD tivesse ficado longe desse tipo de temas na última década, quando estava na oposição. Não deixa de ser irónico que o digam os que puseram em causa a estabilidade, caso a oposição não decretasse que o primeiro-ministro estava acima de qualquer suspeita, e que impuseram eleições para avaliar o caráter de Luís Montenegro, como se houvesse plebiscitos na ética, defendendo que quem tratar do tema que escolheram para esta campanha é de extrema-direita.

O que podemos debater nos próximos dois meses? As últimas eleições foram há pouco mais de um ano. Fora uns anúncios, muitas nomeações e a utilização do excedente herdado para distribuir dinheiro no que se julgava ser (e foi) um ciclo curto, o que estava bem continuou bem (a economia), o que estava mal continuou mal ou piorou (o Serviço Nacional de Saúde e a habitação).

As eleições poderiam servir para desbloquear a governabilidade. O essencial da proposta do Orçamento de Estado passou, grande parte das medidas nem tem ido ao parlamento e o Presidente tem sido mais do que cooperante. Não é previsível que fique, ganhe Luís Montenegro ou Pedro Nuno Santos, menos bloqueada do que isto. Podemos fazer um debate sobre a situação internacional, que mudou radicalmente. Mas os dois principais candidatos têm muito a dizer sobre isso? E Portugal terá um papel relevante na resolução desses problemas?

Como escrevi na sexta-feira, Luís Montenegro reinventou-se, deixando para trás uma vida de confluência entre negócios e política. Mas manteve o rasto e parte dos rendimentos desse cruzamento. Na última campanha, as sondagens diziam que uma das suas vantagens comparativas era uma certa imagem de honestidade. Isso morreu. Montenegro terá de se reinventar outra vez. E não sei se tem tempo.

Apesar de ser esse o tema, duvido que Pedro Nuno Santos se concentre nele. Deixá-lo-á para Ventura, para segundas figuras do partido e para as notícias que forem saindo – como a de sexta-feira, que mostra que os anúncios de transparência de Montenegro são sempre inconsequentes. O líder do PS vai tentar deixar o primeiro-ministro sozinho na lama, não se envolvendo demasiado, porque essa guerra desgasta sempre. Mas é para a lama que será arrastado. Montenegro anunciou que este será um combate de caráter entre os dois. Claro que irão buscar histórias antigas de Pedro Nuno Santos, mesmo que não tenham valor comparativo ou que se fiquem pelo filho de homem rico. Se não é possível salvar a imagem de Montenegro, vende-se que o seu opositor não é melhor.

Não é porque a promiscuidade entre a política e os negócios seja um tema pouco sério (é determinante para muitas decisões) que os próximos dois meses serão feios. É porque o primeiro-ministro preferiu uma campanha onde se pode vitimizar a um escrutínio institucional com regras, onde contam os factos e os documentos que os comprovam. E com a sua escolha atirou o país para a lama. Ela será feia porque estas eleições não têm outro objeto.»


16.3.25

Este não escapa

 


Vaso em vidro soprado, Klostermühle, Boémia (agora Chéquia). Cerca de 1902.
Fabricado por Joh. Loetz Witwe.


A grandeza da exclusividade

 

«É curioso verificar que, ao contrário do que acontece com Luís Montenegro, a segunda figura do Estado, José Pedro Aguiar-Branco, já fez questão de mostrar ao país que não desempenha funções em exclusividade. Ou, no mínimo, exerce-as mal. O presidente da Assembleia da República (AR), reunido com outros militantes de relevo do PSD, surpreendeu ao afirmar que Pedro Nuno Santos fez pior à democracia em seis dias do que André Ventura em seis anos. (…) Aguiar-Branco resolveu mostrar-nos que não lidera a casa da democracia a tempo inteiro, justificando as declarações com o facto de ter falado “enquanto militante do PSD”. Definitivamente, um ano não foi suficiente para perceber a importância e a grandeza de ser segunda figura do Estado.»


16.03.1974 – O falhanço das Caldas

 


Há 51 anos, o golpe falhado das Caldas foi um passo importante para a queda da ditadura.

Em 2014, por ocasião do 40º aniversário dos acontecimentos, o Diário de Notícias ocupou duas páginas com vários textos sobre «A coluna rebelde que Spínola e Costa Gomes impediram de ocupar o Aeroporto de Lisboa»
. Excertos:

«A imagem que ficou na memória dos portugueses sobre a intentona tentada pelo Regimento de Infantaria N. º 5 das Caldas da Rainha no dia 16 de Março de 1974 foi a de uma coluna militar que ficou parada às portas de Lisboa. Ilustrava perfeitamente o golpe militar frustrado, que só teria o seu epílogo a 25 de Abril, e que logo deu origem a uma anedota bastante popular. A de que os camiões com 200 militares que iriam ocupar o Aeroporto de Lisboa teriam parado às portas de Lisboa porque o então presidente da República, Américo Tomás, ameaçou que o primeiro a chegar à capital seria obrigado a casar com a sua filha. (...)
A anteceder o 16 de Março tinham-se verificado mais dois factos políticos que fizeram o presidente do Conselho hesitar: a 22 de Fevereiro dera-se o lançamento do livro Portugal e o Futuro, do general Spínola, que defendia uma solução política e não militar para a guerra no Ultramar; a 14 de Março, o Governo demitira os generais Spínola e Costa Gomes dos cargos de chefe e vice- chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, devido à ausência no evento em que as chefias militares se solidarizavam com Caetano, numa cerimónia definida como representativa da “Brigada do reumático”.
A demissão dos dois generais espoletou a Intentona das Caldas e criou esse acto militar falhado.»

A nota oficiosa difundida pelo governo foi esta:

«Na madrugada de Sexta-feira para Sábado, alguns oficiais em serviço no Regimento de Infantaria 5, aquartelado nas Caldas da Rainha, capitaneados por outros que nele se introduziram, insubordinaram-se, prendendo o comandante, o segundo comandante e três majores e fazendo em seguida sair uma Companhia autotransportada que tomou a direcção de Lisboa.

O governo tinha já conhecimento de que se preparava um movimento de características e finalidades mal definidas, e fácil foi verificar que as tentativas realizadas por alguns elementos para sublevar outras unidades não tinham tido êxito.

Para interceptar a marcha da coluna vinda das Caldas foram imediatamente colocadas à entrada de Lisboa forças de Artilharia 1, de Cavalaria 7 e da GNR. Ao chegar perto do local onde estas forças estavam dispostas e verificando que na cidade não tinha qualquer apoio, a coluna rebelde inverteu a marcha e regressou ao quartel das Caldas da Rainha, que foi imediatamente cercado por Unidades da Região Militar de Tomar.

Após terem recebido a intimação para se entregarem, os oficiais insubordinados renderam-se sem resistência, tendo imediatamente o quartel sido ocupado pelas forças fiéis, e restabelecendo-se logo o comando legítimo. Reina a ordem em todo o País.»

Alguns dias depois (em 22 de Março), na sua última «Conversa em Família», foi assim que Marcelo Caetano se referiu ao golpe das Caldas:


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Sopram ventos de guerra na Europa da paz


«A União Europeia não nasceu para lidar com guerras. Foi criada para as evitar, alimentando o objectivo comum de manter a paz conquistada após séculos de revoluções, lutas religiosas, territoriais, civis e duas guerras mundiais.

A UE nasceu para criar laços tão fortes — políticos, económicos e sociais — entre os seus Estados-membros que se tornasse impossível haver agressões mútuas. E a solidariedade transformou-se, de facto, num dos mais importantes valores (e sentimentos) europeus.

A guerra esteve na origem, mas nunca nos meios nem nos fins da União Europeia, que evoluiu muito desde o primeiro esboço supranacional: a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (matérias-primas muito úteis para quem queria fazer a guerra), criada há quase 75 anos pelo Tratado de Paris.

“Pensávamos que estávamos a recolher os dividendos da paz, mas, na realidade, estávamos a acumular um défice de segurança”, disse esta semana a presidente da Comissão Europeia, vincando a ideia de que o projecto europeu ainda faz sentido, e talvez até faça cada vez mais sentido, atendendo às mudanças em curso.

Ursula von der Leyen acrescentou que os tempos mudaram e que é preciso “rearmar a Europa” e “construir uma defesa comum” porque — e estas já são palavras de António Costa, líder do Conselho Europeu — “a paz sem defesa é uma ilusão”.

Subitamente, expressões como “defesa aérea e de mísseis, sistemas de artilharia, munições, drones e sistemas anti-drone, capacitação estratégica, mobilidade militar, inteligência artificial, cibernética e guerra electrónica” entraram no léxico usado nas instituições europeias.

E a mensagem passou a ser: é preciso “mobilizar mais fundos públicos e privados para a defesa” sem cortar nas despesas do Estado social. “A UE e os Estados-membros não têm de escolher entre investir na paz ou nos sistemas de saúde, educação e habitação, porque o programa para Rearmar a Europa e a activação da cláusula de escape providenciam financiamento adicional”, sublinhou Costa.

Quando se confirmar, essa será a melhor das notícias, porque manter a Europa solidária sem pôr em causa a sua segurança, e vice-versa (manter a Europa segura sem comprometer a sua solidariedade), é um dos desafios mais importantes dos próximos tempos.

O mundo não precisa de mais uma potencial guerra, mas como canta Gabriel, O Pensador, [já] “não adianta olhar pro céu/com muita fé e pouca luta”.»