«Quando o Governo decidiu mudar a lei da nacionalidade, não respondeu a um excesso. Respondeu a um eco. Não quis reformar. Quis marcar posição. Quis, sobretudo, deixar claro que, em certos temas, já não teme parecer parecido com quem antes garantia nunca imitar.
A proposta não é neutra. Aumenta prazos, estreita acessos, reintroduz a ideia — insuspeitada numa democracia madura — de que a cidadania pode ser retirada como se fosse um favor e não um direito. Passa a ser preciso viver mais tempo em Portugal para pedir nacionalidade. Mesmo quando se nasce cá, mesmo quando se cresce cá, mesmo quando se pertence sem dúvida ao país, a dúvida passa a contar mais. Os filhos de imigrantes verão adiado o reconhecimento de uma pertença que já existe na prática. E, aos adultos, a nacionalidade poderá ser retirada se forem condenados a mais de cinco anos de prisão. A justiça já não basta. O castigo estende-se à identidade.
É um recuo. Não na lei apenas, mas na ideia de país. E apresenta-se como prudência, apesar de nascer do medo. Medo de parecer brando. Medo de não controlar o discurso público. Medo, no fundo, de ficar para trás numa corrida que a extrema-direita corre sozinha, porque escolheu o percurso. O PSD quis antecipar-se, mas chegou na mesma linha. E, ao fazê-lo, validou o terreno.
Nada do que é essencial se resolve. Os serviços continuam assoberbados. Os processos atrasados. A integração entregue a boas vontades. O tráfico sem dissuasão eficaz. Mas discute-se, com zelo, o número de anos que os pais de um recém-nascido precisam de ter acumulado para que o país reconheça que é de cá. E institui-se, com gravidade, o princípio de que há portugueses de primeira e portugueses de precaução.
É este o ponto: a nacionalidade deixa de ser vínculo para passar a ser vigilância. Deixa de ser pertença para se tornar uma cláusula. Quando um país faz isto, está a dizer que não sabe confiar. Que prefere desconfiar antes que aconteça. Que, perante a complexidade da imigração, escolhe o símbolo. E entrega à extrema-direita aquilo que ela menos merece: a agenda.
A Dinamarca enfrentou a mesma tensão. A diferença foi de método. E de coragem. Mette Frederiksen percebeu que o discurso extremado só recua quando a política ocupa o espaço. Endureceu regras, é certo, regulou a entrada, acelerou processos de expulsão de imigrantes sem documentos. Mas não cedeu no essencial: recusou a ideia de que a resposta à imigração deve ser baseada na retórica xenófoba.
Em vez de um conflito identitário, a Dinamarca construiu uma política de integração exigente, centrada na coesão social. Disse que a solidariedade nacional não se aguenta se for ressentida. Que o Estado social precisa de confiança mútua, não de desconfiança selectiva. E que só há legitimidade para exigir se houver clareza para proteger. Resultado: a extrema-direita encolheu. A tensão diluiu-se. O tema perdeu a carga tóxica. E a democracia respirou.
Portugal preferiu o contrário. Não resolveu, mas sinalizou. Não integrou, mas endureceu. E assim, em vez de responder aos desafios com política, respondeu com gestos. Porque é mais fácil parecer severo do que ser eficaz. Porque é mais fácil assustar do que governar.
Fazê-lo em nome da ordem é uma contradição. Porque a ordem não se impõe com papéis revogáveis, impõe-se com instituições que funcionam. Com serviços públicos capazes. Com regras claras. Com justiça que não escolhe a dedo quem merece pertencer.
A proposta do Governo não é apenas errada nos seus efeitos. É errada na sua origem. Porque nasce de um cálculo que parte de um erro: a ideia de que, para travar a extrema-direita, é preciso antecipar-lhe o tom. Mas a história recente mostra o contrário. A cedência nunca basta. Aclara o caminho, valida o discurso, reforça a desconfiança geral em tudo o que não seja ruído.
A nacionalidade é um dos contratos mais sérios que uma democracia pode assinar com quem vive dentro das suas fronteiras. Torná-la precária é transformar esse contrato num favor revogável.
E isso não é prudência. É fraqueza.»

1 comments:
Atravessamos tempos muito tristes e só se antevêem trevas ao fundo do túnel.
Assalta-me uma dúvida: Se a extrema-direita vier a governar (vade retro), como é que pensarão dar continuidade à "raça lusitana"? Será que vão obrigar os "puros" sangues nacionais a reproduzirem-se?!
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