Noite cerrada, o telefone a tocar pouco depois das quatro da manhã, alguém que me diz que a tropa está na rua, uns minutos de espera, de ouvido colado a um velho aparelho de rádio, a voz inconfundível de Joaquim Furtado: «Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas. As Forças Armadas portuguesas apelam a todos os habitantes da cidade de Lisboa no sentido de se recolherem a suas casas, nas quais se devem conservar com a máxima calma.»
No primeiro acto de desobediência a novas autoridades, que ainda nem o eram, saí imediatamente e só regressei a casa na madrugada do dia seguinte. Fui ter com amigos, reunimos máquinas fotográficas, deambulámos de carro e a pé pela cidade – horas e horas primeiro pelas ruas da baixa, depois no Carmo até à rendição de Marcelo.
Pelas 11 da manhã, quando absolutamente nada estava ainda decidido, alguém me tirou esta fotografia, no Largo do Corpo Santo, em Lisboa – guardo-a como a mais preciosa de toda uma vida. Tinha acabado de perguntar àquele soldado, empoleirado no tanque, o que se passaria a seguir. Que não sabia, mas que estava com Salgueiro Maia e que tudo ia correr bem. E eu também não duvidei, nem por um minuto, que sim, que ia acabar o pesadelo em que vivera desde que tinha nascido. Sem me passar pela cabeça temer o que quer que fosse.
Já no Largo do Carmo, a espera, as dúvidas, os boatos, o megafone de Francisco Sousa Tavares – e também os cravos, a Grândola. Pelo meio algumas corridas, evacuação obrigatória do local quando se pensou que o quartel não se renderia a bem, almoço tardio com últimos feijões do fundo de uma panela numa tasca do Largo da Misericórdia, pelo mais total dos acasos na companhia de José Cardoso Pires; um carro estacionado mesmo em frente, com as quatro portas abertas para o que desse e viesse. Regresso ao Carmo, o desenrolar de tudo o que se sabe, o poder que Marcelo Caetano não quis deixar cair na rua antes de sair de chaimite, os gritos sem fim de vitória, que se cravaram na memória e ainda hoje fazem arrepiar. A liberdade, enfim, que nunca se imaginara poder ser tão grande.
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Passaram 42 anos. Portugal é hoje, sem qualquer espécie de dúvida, um país melhor do que era naquela quinta-feira de Abril. Mas não é aquilo que sonhámos, não foi por isto que tantos lutaram durante décadas de ditadura, que alguns morreram, não é o que podia e o que devia ser hoje. Falhámos uma oportunidade única, nós que tivemos na mão uma das mais belas revoluções dos tempos modernos. Os humanos não são deuses omniscientes, e ainda bem, porque teria sido absolutamente insuportável, naquela primeira semana luminosa, naquele 1º de Maio triunfante, uma espécie de «regresso ao futuro» em que pudéssemos ver o Portugal de 2016.
O mundo está mais perigoso do que há quatro décadas e a Europa também. Ou, pelo menos, os perigos são outros e temos hoje meios mais potentes para os conhecermos rapidamente e para sentirmos na pele os seus efeitos. Sem sabermos bem como, nem muitas vezes com que instrumentos, resta-nos lutar pela democracia de hoje e de amanhã, com a mesma força com que festejámos a sua chegada há quarenta e dois anos. Não vai ser fácil. Mas é para isso que ainda estamos vivos.
Uma primeira versão deste post, ligeiramente diferente, foi publicada numa brochura que a APRe! divulgou em 25 de Abril de 2014, com textos escritos por um grande grupo de membros da Associação.
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