«Haverá sempre quem chame exagero à classificação de terrorismo em casa para designar parte do que acontece em casos de violência doméstica. Eu não. A galeria de horrores a que muitas mulheres são submetidas, muitas delas durante anos – e refiro-me a mulheres porque são as vítimas na esmagadora maioria dos casos, em Portugal como por esse mundo fora –, é qualquer coisa de inimaginável para muitos de nós que nem damos por isso, tão ocupados estamos com as questões que nos dizem respeito. E aqui está outro erro: se há algo que, mais do que tudo, nos diz respeito, é precisamente essa situação de desamparo, abandono, isolamento, marginalização, esquecimento e desprezo em que vive quem sofre as consequências da violência doméstica.
Se isso era assim quando a vida decorria sob a normal anormalidade, pensem bem como será agora. Como será passar dias, semanas, meses, não tarda um ano, em que as liberdades estão reféns de um inimigo tão invisível quanto devastador e em que até os livros, as livrarias, a cultura, a essência de todos, sofrem a tortura dos ignorantes que cortam a eito se fingem decidir por nós? Como será sofrer em silêncio, passar o tempo amordaçada, ameaçada, sob o peso esmagador da contradição que é querer gritar para tudo contar e mal se poder mover os lábios a expressar uma única ideia? Como será o come-e-cala, o insulto a toda a hora, a submissão para que os filhos não sofram, dormir sem dormir, a asfixia psicológica, a angústia, o medo, a repugnância, o asco, a coragem de resistir uma e muitas vezes? Tantas que, de repente, tudo se perde e dizem que foi por amor quando é de ódio, escrevem que foi a paixão quando é crueldade, mostram que foi irracional quando é metódico?
Por tudo isto, porque a pandemia em que vivemos pode, afinal, esconder outra pandemia, a da violência doméstica, é importante recuperar uma frase emblemática que nos avisava para o perigo de cruzar a linha do comboio: “pare, escute e olhe”. É em grande parte disso que se trata, de exigirmos mais a cada um de nós e aos legisladores. De sermos uma sociedade adulta e não entregue a vendedores de banha da cobra que abusam da palavra vergonha sem verem no espelho a vergonhosa imagem que este lhes devolve todos os dias. De não nos limitarmos à indiferença e ao comodismo de todos os dias, mas de mostrarmos que ninguém nos fica invisível. De acabar com um sistema em que as vítimas não conseguem ter atendimento e apoio imediato e, tantas vezes, são olhadas como suspeitas. Ou então com o inqualificável “tenho pena, mas nada posso fazer”. De pôr fim à impunidade nos (poucos) casos que chegam a tribunal e (muitos) são, antes disso, arquivados sem provas. Ou, então, terminam com a mentira da pena suspensa. De não resvalar para o extremismo do bota-abaixo simplista e populista do agravamento de penas, mas também de não escolher a reintegração como mero recurso mecânico e sim num quadro de escrupuloso respeito por programas que, de facto, regenerem os agressores e não os devolvam à sociedade sequiosos de vingança.
Não sou um especialista e, por isso, não escrevo nessa qualidade. Escrevo num esforço de cidadania como contributo para que a realidade mude de forma drástica; escrevo, porque me envergonha que homens como eu sejam capazes de actos atrozes contra mulheres, crianças e idosos, que muitas vezes só ficamos a conhecer demasiado tarde, quando as histórias já se transformaram em tragédias e são relatadas como tal pelos meios de comunicação; escrevo, porque, também como jornalista, considero meu dever agir para que a realidade mude.
Quando escrevi Murro no Estômago, livro que conta histórias de vítimas/sobreviventes de violência doméstica em discurso directo e experiências de profissionais que combatem todos os dias o flagelo em diferentes papéis, disse às mulheres que confiaram em mim e contaram as suas histórias de sobrevivência: “Este livro é vosso, eu sou apenas um porta-voz. Do vosso sofrimento, das vossas lágrimas, da vossa coragem, da vossa luta, da vossa vontade de vencer, da vossa esperança.”
Neste confinamento que tudo esconde, condena a ternura, mata o amor, nos aprisiona até os livros e ameaça desumanizar-nos, saibamos ser solidários e seguir a epígrafe do Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”»
.