6.4.19

Um murro no estômago



Pouco mais de meia hora para ver esta Grande Reportagem da SIC.
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Famílias e complicações futuríveis



Tenho um neto que, por puro acaso, tem o nome rigorosamente igual ao de um seu trisavô. Este dito trisavô teve uma filha «fora do casamento» (era assim que se dizia), mas deu-lhe magnanimamente o apelido (à bisavó do meu neto).

Porque o país é minúsculo, vim a ter um colega exatissimamente com o mesmo nome próprio e apelido – ele neto, na linhagem mais do que legítima, do «trisavô» em questão.

Como se trata de um apelido bastante raro em Portugal, e do nome próprio mais corriqueiro que imaginar se possa, e porque o neto legítimo até me explicou que é de tradição mantê-lo ao longo de gerações, prevejo que algum trineto meu possa um dia achar piada a convidar alguém com o nome do avô, seja para que função for, sem saber que, afinal, são primos em décimo terceiro ou quarto grau. E eu já não estarei cá para explicar que não pode, ou que não deve… sei lá!

Isto é tudo tão cansativo!
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Europeias : se alguma esquerda se calasse com argumentos parvos, não se perdia nada




«Quanto ao "brilhante lugar 597 em trabalho no Parlamento Europeu", no que respeita à plataforma MEPRanking, o facto é que Rangel está na 150ª posição entre os 750 eurodeputados. No entanto, ressalve-se que a pontuação global atribuída pela plataforma resulta de critérios quantitativos e qualitativos, além de que não se limita à produtividade, mas também avalia os dados referentes à assiduidade dos eurodeputados.»



Marcelo e o dom carismático



«Se houvesse em Portugal estudos de iconologia e cenografia políticas, uma reportagem sobre Marcelo Rebelo de Sousa, intitulada O Solitário no Meio da Gente publicada no Expresso, na semana passada (texto de Ângela Silva, fotos de Tiago Miranda) forneceria matéria abundante e eloquente para análise. O Presidente, como sabemos, tornou-se objecto de uma mitologia, de um sentido que se torna uma forma e um processo de significação que passaram a ser vistos como “naturais” (foi assim que Roland Barthes definiu a sua noção de mitologia).

E isso deu-se por efeito dos media, como todas as mitologias, a partir do momento em que uma parte importante do seu discurso e dos seus gestos públicos, em ocasiões que suscitam gestos mais enfáticos, se tornou apta a ser apropriada e difundida como um modo de significação despolitizada. A distribuição de afectos situa-se nessa esfera da despolitização. Esta mitologia presidencial tem um carácter muito profano, suscita o sentimento de familiaridade e proximidade. Não se confunde, por isso, com a aura nem com o carisma.

Ora, a reportagem que referi consiste precisamente em conferir uma aura ao Presidente de que ele se encontra destituído. Devemos perceber que esta ausência, em si mesma, não pode ser entendida como uma falta e uma negatividade. Uma questão que hoje se coloca é se é possível um chefe com aura e carisma numa democracia. Como é que nessa reportagem se atribui ao Presidente um dom aurático? Antes de mais, através de uma iconografia que o subtrai à mundanidade: fotografias a preto e branco (uma maneira de o transportar para fora do nosso tempo), onde ele está sempre sozinho.

A cenografia da solidão é muito importante, é nesse aspecto que incide toda a reportagem, como indica o título. À mitologia do Presidente mundano, popular, a cuja imagem e presença todos têm acesso, opõe-se aqui o Presidente carregado de aura e carisma, colocado a uma enigmática distância. Este sim, o verdadeiro, diz-nos implicitamente a reportagem. Na iconologia política, uma representação muito comum da aura é a fotografia do chefe a caminhar isolado, num caminho que é só dele. Às vezes de costas, afastando-se.

Há uma célebre fotografia de Mitterrand que corresponde na perfeição a este modelo. E Macron, que reivindica de maneira patética a aura presidencial da República, na noite da sua eleição escolheu esta cenografia para a sua entronização: caminhou lentamente e só, como uma silhueta, em direcção à pirâmide do Louvre, evocando assim um momento determinante da História, ao som do Hino da Alegria, antes de subir à tribuna.

Um Presidente resgatado à usura de uma constante presença mediática é a imagem que dele se constrói nesta reportagem. Não se deve entender essa imagem segundo os critérios do verdadeiro e do falso porque eles não são pertinentes para o exercício de cenarização de um chefe político, já que estamos no domínio das representações.

Mas é importante percebermos que esta reportagem ilustra na perfeição um aspecto da teoria do carisma (e carisma não é o mesmo que aura, embora haja entre ambos pontos de intersecção), tal como ela foi formulada por Max Weber: para percebermos como o carisma é produzido devemos olhar não para quem o detém, mas para aqueles que lhe concedem a autoridade carismática. Para Weber, o carisma é uma qualidade que exige ser vista e percebida, é como uma revelação que só se manifesta aos crentes, só por eles pode ser reconhecida.

Em última análise, o texto e as fotografias, no Expresso, sobre o Presidente “solitário, no meio da gente” não tem a nada de reportagem jornalística: é uma manifestação de culto por parte de crentes que se dirigem a outros crentes. Para os não-crentes, como eu estou a ser (mais não seja por uma questão metodológica: a minha análise só pode vir de um lugar que não é o da fé, embora ela não contenha nenhum juízo político ou moral sobre o Presidente), a dita reportagem é apenas uma ilustração do modo como se outorga carisma ao chefe político e da eloquência patética, na expressão iconográfica e na retórica verbal, requerida por esse fenómeno a que Max Weber chamou “dominação carismática”.»

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5.4.19

No país dos sacanas



Que adianta dizer-se que é um país de sacanas?
Todos os são, mesmo os melhores, às suas horas,
e todos estão contentes de se saberem sacanas.
Não há mesmo melhor do que uma sacanice
para poder funcionar fraternalmente
a humidade de próstata ou das glândulas lacrimais,
para além das rivalidades, invejas e mesquinharias
em que tanto se dividem e afinal se irmanam.

Dizer-se que é de heróis e santos o país,
a ver se se convencem e puxam para cima as calças?
Para quê, se toda a gente sabe que só asnos,
ingénuos e sacaneados é que foram disso?

Não, o melhor seria aguentar, fazendo que se ignora.
Mas claro que logo todos pensam que isto é o cúmulo da sacanice,
porque no país dos sacanas, ninguém pode entender
que a nobreza, a dignidade, a independência, a justiça, a bondade, etc., etc., sejam
outra coisa que não patifaria de sacanas refinados
a um ponto que os mais não são capazes de atingir.

No país dos sacanas, ser sacana e meio?
Não, que toda a gente já é pelo menos dois.
Como ser-se então nesse país? Não ser-se?
Ser ou não ser, eis a questão, dir-se-ia.
Mas isso foi no teatro, e o gajo morreu na mesma.

Jorge de Sena (Outubro de 1973)
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Ratos? É o que menos falta por aí...



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Memorial aos Presos e Perseguidos Políticos



No âmbito das comemorações do 45º aniversário do 25 de Abril, terá lugar em Lisboa um vasto conjunto de eventos, anunciado no passado dia 3 em conferência de imprensa realizada na respectiva Câmara Municipal.

Destaco a inauguração de um Memorial aos Presos e Perseguidos Políticos, na Estação de Metro Baixa-Chiado, uma iniciativa proposta por um grupo de cidadãos. Fica aqui alguma informação sobre o que esteve na base da referida proposta, bem como imagens que podem dar uma ideia do que poderá ser visto.

Ao longo de quase meio século, milhares de homens e mulheres sofreram, em Portugal e nas então colónias portuguesas, a violência da ditadura implantada em 28 de maio de 1926 e apenas derrubada em 25 de abril de 1974.

Esses homens e mulheres – presos e torturados, condenados em simulacros de tribunais, exilados e deportados, assassinados, impedidos de exercer as suas profissões e modos de vida, que viram as suas famílias perseguidas e humilhadas e as suas obras censuradas – abriram o caminho para «o dia inicial inteiro e limpo/ onde emergimos da noite e do silêncio», cantado por Sophia de Mello Breyner.

Mas se a Censura do Estado Novo impedira o conhecimento da sua luta e dos seus nomes, também a Democracia não soube ainda dar a conhecê-los sobretudo às novas gerações.

É nesse sentido que uma iniciativa cidadã apresentou à Câmara Municipal de Lisboa uma proposta para levar ao conhecimento da população em geral a memória desses homens e mulheres e da sua luta, através de um Memorial aos Presos e Perseguidos Políticos (1926-1974).

E porque foi numa rua do Chiado a sede da polícia política do regime, sugeriu-se como local dessa homenagem a estação de metropolitano Baixa-Chiado, onde todos os dias passam milhares de pessoas.

Considerou-se a centralidade desta Estação e a sua proximidade com a rua António Maria Cardoso (onde se situava a sede da PIDE/DGS e onde foram assassinados por elementos daquela polícia política manifestantes no próprio dia 25 de abril de 1974) e, mesmo, com o Largo do Carmo, onde se deu a rendição do último Presidente do Conselho da ditadura, ocorrendo em toda aquela zona (Largo do Chiado, Praça Luís de Camões, Rua da Misericórdia, Largo de São Carlos e ruas adjacentes) momentos marcantes daquela data, designadamente em matéria de detenção de agentes e graduados da PIDE/DGS.

Junto às escadas rolantes daquela estação de Metropolitano, que comunicam com o Largo do Chiado, será montado um pórtico com televisores de grande dimensão.

Ao longo dos 48 anos de ditadura, a polícia política prendeu, torturou e acusou milhares de cidadãos e de cidadãs: só em Portugal, registaram-se dois presos políticos por dia. Mesmo sabendo-se que a lista será sempre incompleta, já que, lamentavelmente, 45 anos sobre o 25 de abril de 1974, continua a ignorar-se o número exacto dos presos políticos, as datas de prisão e/ou de “julgamento” de muitos deles e a duração das respetivas prisões – situação que muito se agrava nas antigas colónias, sobre as quais não existem praticamente números credíveis – pretende-se com esta proposta ultrapassar essa ignorância sobre a repressão ao longo de toda a ditadura, fazendo passar nas referidas televisões dezenas de milhares de nomes, bem legíveis, apresentados por ordem alfabética do primeiro nome e, em simultâneo, mostrar algumas imagens de repressão e duas fotografias icónicas: a de um homem e a de uma mulher, compostas, cada uma, por centenas de outras fotografias.



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4.4.19

Cavaco e a falta de memória



… ou mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo.


«Dias Loureiro, Fernando Nogueira, Marques Mendes, Arlindo Cunha... O que têm em comum estes ex-membros do Governo de Cavaco Silva? As respetivas mulheres foram nomeadas para cargos na estrutura do Executivo. Há mais casos. Apesar disso, ontem o ex-primeiro-ministro criticou arduamente os "jobs for the boys" do Partido Socialista.»
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He Had A Dream



Morreu em 04.04.1968.
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04.04.1914 – Marguerite Duras



Marguerite Duras nasceu há 105 anos, em Saigão, actual Ho Chi Minh. Foi uma das grandes escritoras do século XX francês, também realizadora e guionista de filmes, para além de resistente durante a Segunda Guerra Mundial como membro do Partido Comunista Francês.

É vasta a sua obra no domínio da literatura, de início identificada com a corrente do nouveau roman, mas destaco dois livros que nunca esquecerei: L'Amant (1984) e antes, bem antes, de 1958, Moderato Cantabile.

Esta última obra viria a ser adaptada para cinema por Peter Brook, em 1960, e quem o viu terá certamente retido as interpretações de Jeanne Moreau e de Jean-Paul Belmondo. Inesquecível também, o guião que MD escreveu para que Alain Resnais realizasse aquele que foi para mim, durante algum tempo, o meu filme de eleição: Hiroshima mon amour. E quando há meia dúzia de anos fui ao Japão, e me passeei pelo local que foi vítima de uma das maiores tragédias da humanidade, não me saía da cabeça: «Tu n'as rien vu à Hiroshima!»




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O anúncio da morte britânica é manifestamente exagerado



«Desisto de tentar escrever sobre a atualidade do Brexit. Nessa matéria, espero que seja concedido o adiamento a Theresa May e que esta se consiga sentar com Jeremy Corbyn para os dois chegarem a um acordo. Os dois precisam, porque este processo está a erodir todo o sistema político britânico. Só quando esta fase estiver ultrapassada é que o Reino Unido poderá voltar a debater de forma mais clara o seu futuro. O que implica saber que futuro será esse. Estou convencido, mas posso estar enganado, que o Brexit é inevitável. Com acordo, sem acordo, com um mau acordo. Até estou convencido, mas posso também estar enganado, que se houvesse um novo referendo o “leave” voltaria a vencer. Os arrependidos que existiam seriam facilmente substituídos por aqueles que se sentiriam insultados com o desrespeito pelo resultado do referendo anterior. Não se impressionem muito com as manifestações em Londres. Como se percebeu no referendo, Londres não é a Inglaterra. É Londres.

Falemos então do futuro. É impressionante como as ideias mais absurdas se conseguem instalar como evidências indiscutíveis. E a que está instalada é esta: o Reino Unido irá entrar, depois do Brexit, num buraco negro. Já aqui caricaturei: será uma nova Coreia do Norte, fechada ao mundo; as noites de Londres serão tão tristes e perigosas como as de Caracas, os fluxos comerciais irão aproximar-se dos de Cuba. Retirem o exagero a isto mas não a histeria.

É estranho que esta saída do Reino Unido da órbita terrestre não se tenha começado a sentir de forma aguda na iminência de um desenlace que parece cada vez mais inevitável. Ao contrário do que seria normal em vésperas de uma catástrofe anunciada, a economia não veio por aí abaixo depois do referendo. E o saldo migratório, tendo caído para cidadãos comunitários (mas continua a ser positivo, mostrando que o Reino Unido ainda é mais atrativo para os europeus do que a Europa é atrativa para os britânicos), até melhorou para os cidadãos extracomunitários. O mundo que vive fora da Europa parece continuar a acreditar que há futuro para os britânicos.

O equívoco resulta de haver muita gente que acredita que a União Europeia subsistui os seus estados membros e que a atratividade de cada um deles depende exclusivamente da sua integração neste espaço. Esta convicção pode ser verdadeira para estados pobres (e mesmo isso mereceria um debate cuidadoso), não o é seguramente para países como o Reino Unido. Custará a acreditar em Bruxelas, mas a história dos europeus não começou com a assinatura do Tratado de Maastricht. Mesmo antes do Tratado de Roma havia Europa.

O Reino Unido tem um antigo império. E isso conta muito. Será difícil para um alemão percebê-lo, mas nós compreendemos bem. Somos um país irrelevante e conseguimos, apesar de tudo, manter relações comerciais relevantes com as ex-colónias. Incluindo ex-colónias com muitos recursos, como Angola. Imaginem um país como o Reino Unido, com os laços políticos, económicos, culturais e estratégicos que foi mantendo. Depois há a língua. Que continuará a ser tão relevante que até se manterá inevitavelmente como a língua franca na União depois deles saírem de lá. Com a desculpa que um país de menos de cinco milhões (a Irlanda) a fala. A centralidade de Londres, que não resulta apenas do poder de Londres, é de tal forma evidente e duradoura que se estranha que alguém acredite que desaparecerá de um dia para o outro.

Houve um tempo em que se falava da transferência da City para Frankfurt, Paris ou Luxemburgo. Mesmo que haja uma quebra inicial, ainda alguém acredita nisso? Alguém acha que para o poder financeiro russo ou asiático isso é, pelo menos em muito tempo, uma possibilidade? E acham que os Estados Unidos vão dispensar acordos comerciais com o seu aliado de sempre? Acreditam que manter uma relação próxima com Londres será um capricho de Donald Trump e que os seus sucessores vão ignorar os ingleses para não melindrar os alemães ou franceses? E os 53 países da Commonwealth vão cortar as relações preferenciais que mantêm com os britânicos? E o inglês vai deixar de ser a língua mundial? Acham que vamos passar a ver séries francesas, a ouvir música alemã e a rir-nos com o humor holandês? Acham que Londres deixará de ser, só porque o país abandonou o mercado único, uma das principais capitais culturais e financeiras do mundo? Em que mundo de fantasia vive esta Europa para julgar que a tábua rasa que tentou fazer da História, sem sucesso, acontecerá com a Inglaterra.

Não tenho dúvidas que as coisas serão bastante difíceis para os ingleses. Também tenho poucas dúvidas, apesar do discurso autossuficiente com um boa dose de ressentimento que se ouve na Europa, que as coisas também serão difíceis na União. Até porque o peso relativo da Alemanha vai aumentar e com ele a sua tentação imperial. Mas parece-me que o mais provável é o Reino Unido sobreviver a isto melhor do que por aí se escreve. E isto não quer dizer que eu ache que o passo que os ingleses estão a dar seja o mais certo. Quer apenas dizer que o anúncio do colapso inglês parece-me manifestamente exagerado.

A ideia de que o Reino Unido iniciou uma inexorável caminhada para o abismo que determinará o fim da sua centralidade resulta de cegueira europeia sobre o que está a acontecer no mundo. A decadência do Reino Unido, a acontecer, corresponderá à decadência de toda a Europa. Não começou com o Brexit. Sempre que alguém vem de uma viagem à China explica onde está a origem dessa decadência e como ainda estamos no começo.

Podemos dizer que o Reino Unido ficará menos preparado para este embate fora da União do que estaria dentro dela. Não tenho suficiente confiança em quem dirige os destinos da UE para achar que isso seja verdade. Sei que ao sair da UE o Reino Unido não se enfiou num buraco escuro longe do mundo. Porque nem a sua centralidade financeira, política e cultural se devia à UE, nem é provável que alguma vez se viesse a dever. Não sei, suspeito que ninguém sabe ao certo, o que acontecerá ao Reino Unido fora da União Europeia. Sei que o discurso apocalíptico que domina a inteligência das capitais europeias é revelador do estado de negação em que vivemos sobre a real relevância que ainda temos.»

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3.4.19

Brexit?


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Extrema-direita: não brinquemos, ela anda por aí mais a sério




«João Martins, 44 anos, traz da sua juventude uma convivência com cabeças rapadas e uma condenação de 17 anos de cadeia (cumpriu metade da pena mais um ano, tendo saído por "bom comportamento") pelo homicídio de Alcindo Monteiro, em 1995, no Bairro Alto.

Tido como o ideólogo destes grupos, principalmente o Portugueses Primeiro, o protagonismo de Martins tem sido notado pelas autoridades que o apontam como "líder emergente" da extrema-direita. Desde Mário Machado, o ex-líder dos skinheads, também condenado no caso do Bairro Alto, que não havia outra personagem com este perfil e capacidade de recrutamento.

Casado, com dois filhos, tem insistido em que o passado ficou para trás e que já cumpriu a sua pena. Os seus dotes de orador e o seu conhecimento aprofundado da ideologia nacionalista podem ser trunfos para o PNR.

"Se, no passado, estes grupos assumiam discursos declaradamente racistas e xenófobos, nos últimos tempos a narrativa é de aclamação da história e da identidade portuguesas. O resultado é que há muita gente, que antes refutava o seu discurso fascista, que se começou a aproximar. Mas na essência são a mesma coisa e não perderam os ideais racistas e xenófobos", sublinha uma fonte policial.

O Observatório Antifascista assinala que "a P1 dedica-se sobretudo a atividades culturais, como conferências e ações de cariz social, lavando a imagem da extrema-direita. A associação pode ser encarada, na prática, como braço cultural do partido de extrema-direita. Desconhece-se se mais membros estarão formalmente ligados ao PNR, mas sabe-se que a associação, ainda que com poucos membros, é um dos polos de recrutamento para a extrema-direita".»
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Brasil – Falem dos evangélicos, falem…




«“E tem um imbecil que nos anos 70 cantou que é proibido proibir. Gostaria de dar veneno de rato para ele”. E citou demonstrando ignorância sobre a história da música brasileira, já que a canção é e 68. A missa tinha um tom comemorativo ao Golpe Militar de 64 e contou com a presença de Joseita Brilhante Ustra, viúva do coronel Brilhante Ustra, coronel do Exército Brasileiro, ex-chefe do DOI-CODI do II Exército (de 1970 a 1974), um dos órgãos atuantes na repressão política, durante o período da ditadura militar no Brasil(1964-1985).»
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O perigo do populismo que vem da direita



«Parece haver uma espécie de consenso nacional de que o populismo, por cá, não vingou. Tirando alguns pequenos epifenómenos, como o de Marinho e Pinto há cinco anos - que implodiu rapidamente -, nenhum dos chamados partidos populistas teve, até hoje, expressão eleitoral, ao contrário do que aconteceu noutros países europeus, e isso descansa-nos. Mas é um erro pensar assim.

Se o populismo não vingou, até agora, em Portugal, isso deve-se sobretudo a dois grandes fatores: à inversão do ciclo económico e à solução governativa da geringonça que, se tivesse corrido mal, corria mesmo muito mal. Mas tendo corrido bem - na medida em que aguentou uma legislatura -, acabou por dar alguma sustentação aos chamados partidos do regime, sobretudo ao PS. Entre a reposição de rendimentos, uma economia a crescer, o desemprego a cair, o diabo do populismo não teve grandes hipóteses de furar. O que não significa que ele não esteja aí... à espreita.

Há várias evidências de que esta ameaça se mantém viva. Bastaria estar atento às redes sociais - o ecossistema favorito deste tipo de movimentos populistas - para perceber a rapidez com que eles se multiplicam e a linguagem cada vez mais irascível que usam. É o ódio que lhes alimenta os likes e as partilhas. Mas é a cobardia que melhor os define.

Há, no entanto, outros riscos, que são exatamente os mesmos que existiam há quatro anos, quando António Costa virou o tabuleiro político em Portugal e se fez primeiro-ministro, com a ajuda do PCP e do Bloco. Ao trazer, pela primeira vez, estes dois partidos para "dentro do sistema", Costa conseguiu evitar fenómenos populistas vindos, sobretudo, da extrema-esquerda - sim, que o populismo está longe de ser um exclusivo da direita. Não por acaso, o Bloco perdeu recentemente 25 militantes, em desacordo com a linha que o partido tem vindo a seguir. E as dificuldades internas que Jerónimo de Sousa tem enfrentado, por ter dado a mão ao Partido Socialista, também não serão por acaso.

A verdade é que a geringonça, mesmo tendo cumprido e ultrapassado as primeiras expectativas, parece não ter conseguido recuperar a confiança do eleitorado nos chamados partidos do sistema. Basta olhar para as sondagens e perceber que, apesar de todo o dinheiro que foi devolvido às famílias, dos empregos criados, dos números do défice, a maioria absoluta do PS parece cada vez mais difícil. Basta olhar para a base eleitoral do BE, do PCP, do PS, do PSD e do CDS, e constatar que ela é praticamente a mesma de há quatro anos. Basta olhar para a abstenção e confirmar que, se não perderem eleitorado, os partidos do regime terão muitas dificuldades em conquistar novos votos.

Uma das ameaças tem que ver, precisamente, com o xadrez político que sair das próximas eleições. Se levarmos a sério as declarações de Catarina Martins e de Jerónimo de Sousa, de que a geringonça, neste modelo, é irrepetível, um PS a governar em minoria - e a ter de negociar à esquerda e à direita - aumenta o potencial de risco de instabilidade política. E essa pode ser uma primeira brecha para o populismo.

O outro risco - que, associado ao anterior, pode tornar-se desastroso - tem que ver com uma eventual inversão do ciclo económico. Que ninguém sabe quando acontecerá, mas toda a gente sabe que virá. Uma nova crise económica, mesmo que vinda de fora, num país onde a dívida ainda é assustadoramente grande, onde tantas reformas ainda estão por fazer e onde o número de grandes empresas é cada vez menor, pode ter efeitos políticos devastadores.

Por fim, o terceiro grande risco vem do centro-direita. Podemos começar por lembrar que foi o PSD de Passos Coelho que criou André Ventura. E agora que a criatura quer comer o criador é também com ele que o partido vai ter de não só disputar o eleitorado abstencionista, mas tentar, ao mesmo tempo, não perder votos.

A implosão do PSD, enquanto partido agregador deste espectro político, tem múltiplas razões, quase todas elas já abundantemente analisadas. Do discurso do diabo que não veio à total ausência de discurso, foi um tiro. Daí às convulsões internas, divisões, deserções, sejam elas de dentro para fora ou feitas internamente, o PSD tem vindo, progressivamente, a perder a mão de um espaço político que era seu e não se tem revelado capaz de travar esta tendência, quanto mais de a evitar.

Talvez essa seja uma das grandes missões de Rui Rio. Será também essa, porventura, a ambição de Pedro Santana Lopes, com o Aliança. E é, seguramente, esse o objetivo enunciado pelos vários movimentos que têm nascido como cogumelos dentro do próprio PSD, mesmo que alguns deles não estejam a conta-nosr tudo.

A verdade, porém, é que, no centro-direita, continua a falhar o essencial: uma estratégia para o país, um discurso e um líder suficientemente carismático para recuperar a confiança do eleitorado.

A continuar assim, há uma porta que fica cada vez mais escancarada aos populistas. Abutres que se alimentam dos fracos, dos famintos, dos descontentes e dos revoltados. E se é verdade que o populismo pode vir de qualquer lado - ou de lugar nenhum, como se viu no Brasil -, não é menos verdade que, em Portugal, o risco, neste momento, é muito maior no centro-direita.»

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2.4.19

A dura realidade dos factos


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Uma bela homenagem a Marielle




«Uma homenagem a Marielle, mas também uma forma de apoiar a luta contemporânea contra a violência e a opressão antidemocrática no Brasil e em todo o mundo.»
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Banco de Portugal: sem responsabilidade?


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02.04.1976 - 43 anos e uma Constituição



Em 2 de Abril de 1976, os deputados da Assembleia Constituinte, eleitos em 25 de Abril de 1975, deram por concluída a elaboração da actual Constituição. Esta foi então aprovada com os votos a favor dos partidos representados no Parlamento, com a excepção dos 16 deputados do CDS que votaram contra.

Rever imagens:



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1.4.19

Dilma Rousseff e as comemorações da ditadura militar




«Dilma foi presa em 16 de janeiro de 1970 e torturada pelos militares durante 22 dias com palmatória, socos, choques elétricos e "pau de arara". Bolsonaro evocou estes episódios, em abril de 2016, quando da sessão de impeachment de Rousseff, ao anunciar o seu voto: "Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim."»
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Desde 01.04.1996 sem Mário Viegas



Mário Viegas nasceu em 1948 e morreu, muito novo, em 1 de Abril de 1996.

Fundou companhias de teatro, actuou em vários países, participou em mais de quinze filmes e em duas séries televisivas inesquecíveis: «Palavras Ditas» (1984) e «Palavras Vivas» (1991).

Impossível não recordar a sua leitura do Manifesto Anti-Dantas, de Almada Negreiros:



Ainda actual o Manifesto Anti-Cavaco, lançado por Mário Viegas durante a campanha eleitoral para as legislativas de 1995, em que foi candidato independente na lista da UDP. (Candidatou-se também à Presidência da República.)



E... a nêspera, claro.


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Marketing popularucho



Será que não se percebe que as pessoas não são todas estúpidas e que começam a ficar fartas da política espectáculo? Porquê estragar uma excelente medida com um marketing popularucho?
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Bits, átomos e genes



«O século XX foi profundamente marcado por um conjunto significativo de descobertas e invenções, entre as quais são de destacar o motor de combustão interna, o rádio, o transístor, a energia nuclear, os antibióticos, a imagiologia e a radioterapia, entre tantas outras. É muito provável que o século XXI nos traga pelo menos tantas transformações tecnológicas como as que trouxe o século anterior. Porém, elas terão uma natureza algo diferente. É certo que continuamos a ter um conhecimento incompleto de muitas leis da Física e que importantes avanços poderão vir a ser feitos nesta área. Porém, não é de crer que o aumento do nosso conhecimento sobre as leis básicas da Física venha a ter o mesmo impacto na vida do dia-a-dia que as invenções e descobertas do século XX tiveram, porque muitas das situações onde o nosso conhecimento da Física é incompleto correspondem a condições extremas, longe das que observamos no nosso planeta. Zach Weinersmith resumiu, humoristicamente, o estado da Física no seguinte parágrafo, traduzido livremente:

“Aristóteles percebeu tudo mal mas foi corrigido por Galileu e por Newton. Veio Einstein e estragou tudo outra vez. Hoje, percebemos praticamente tudo, excepto as coisas pequenas, as coisas grandes, as coisas quentes, as coisas frias, as coisas rápidas, as coisas pesadas, as coisas escuras, a turbulência e o conceito de tempo.”

Embora não sejam de esperar descobertas de novas leis fundamentais da Física com impacto tecnológico imediato, assistiremos nas próximas décadas a alterações muito profundas, causadas principalmente pelo desenvolvimento de três grandes áreas do conhecimento: tecnologias de informação e comunicação (bits); materiais e nanotecnologias (átomos); biologia, medicina e biotecnologia (genes).

A invenção do transístor, em 1947, que poderá vir a ser reconhecida como a mais revolucionária de sempre, permitiu criar a sociedade da informação do fim do século XX, e está a potenciar a quarta revolução industrial a que assistimos. Tecnologias como telemóveis, televisões, internet, carros autónomos, inteligência artificial, internet das coisas, cidades inteligentes e cadeias de blocos (blockchain) são todas elas o resultado do nosso cada vez melhor domínio do que é a informação, cuja unidade fundamental é o bit (abreviatura da expressão inglesa “binary digit”). Toda a informação que usamos é, em última análise, representada por bits, processados por computadores, transmitidos por redes e guardados em memórias e discos. A nossa crescente capacidade para obter, processar e usar informação de forma inteligente será, seguramente, um dos motores das transformações tecnológicas que vamos observar nos próximos anos.

Por mais poderosos que sejam os computadores e as redes, que processam e transmitem informação, continuará a ser necessário actuar sobre o mundo físico. Resolver os desafios energéticos, ecológicos, ambientais e económicos dependerá, criticamente, da nossa capacidade para desenvolver novos materiais e nanotecnologias e de os usar de forma criativa, sustentável e produtiva para sustentar uma civilização cada vez mais exigente. Richard Feynman, em 1959, proferiu uma famosa palestra onde a mensagem principal era algo como “lá em baixo, bem no fundo, há montes de espaço livre”. Feynman referia-se às enormes possibilidades que se abrem à tecnologia quando for possível manipular átomos, a nível individual, criando novos materiais com propriedades diferentes e aplicações revolucionárias, que permitirão capturar, armazenar e transformar energia mais eficientemente, controlar a poluição, limitar o aquecimento global e desenvolver novos produtos, de uma forma que até agora era simplesmente impossível.

A terceira vertente de desenvolvimento tecnológico a que assistiremos está relacionada com o conhecimento cada vez mais profundo dos sistemas biológicos, que permitirão avanços profundos na medicina, na biologia e na biotecnologia. Desde 1953 que sabemos que toda a vida no planeta resulta da acção dos genes, estruturas que codificam a informação genética dos seres vivos na espiral de DNA, descoberta por Watson e Crick, com base em dados obtidos por Rosalind Franklin. O conhecimento cada vez melhor dos mecanismos que as células usam para sobreviver, crescer e multiplicar-se permitirá desenvolver novos tratamentos para muitas patologias (entre as quais o cancro e as doenças cardiovasculares e neurodegenerativas), criar novas drogas e conceber novos produtos, aumentando a esperança de vida, que já cresceu 150% nos últimos dois séculos, e melhorando a sua qualidade.

Bits, átomos e genes: apenas o domínio crescente de cada um destes domínios, e das suas interacções, permitirá à ciência do século XXI desenvolver as tecnologias que irão transformar a nossa sociedade, talvez de uma forma tão profunda como as duas primeiras revoluções industriais. Lamentavelmente, o desenvolvimento destas tecnologias exige investimentos significativos nas infra-estruturas e nas instituições que têm a capacidade para criar o mundo do amanhã. Os grandes blocos comerciais, incluindo a China, o Japão e os Estados Unidos, têm feito significativos investimentos nestas áreas. Também a Europa tem planos para o desenvolvimento destas áreas, mas os principais investimentos em laboratórios e instalações experimentais são feitos pelos próprios países, e não pela União Europeia, que gere um orçamento comparativamente pequeno.

A difícil situação económica que Portugal tem atravessado, porém, tem-nos impedido de acompanhar os investimentos que outros países têm feito em ciência e em tecnologia. De acordo com os números da OCDE, o investimento anual no ensino superior e ciência, por cada estudante, ajustado pelo coeficiente da paridade do poder de compra (PPP), é em Portugal apenas 75% do valor da média dos países da OCDE. Para comparação, no ensino secundário, este valor aproxima-se da média da OCDE, sendo superior a 90% desta média. Esta estatística, ajustada pelo PPP, esconde, de facto, uma assimetria muito, muito, maior e muito séria, porque a competição entre países na área da ciência é feroz. Os países mais desenvolvidos da Europa e do mundo investem de facto muito mais na ciência e no ensino superior do que nós, tanto em valor absoluto como em proporção do PIB, porque percebem que o desenvolvimento da tecnologia é o factor decisivo na competitividade futura das nações. O orçamento anual de qualquer uma grandes escolas de engenharia mundiais, como o MIT, o Imperial College, a ETH Zurich ou a TU Munique, é muito superior a todo o orçamento do ensino superior e da ciência, em Portugal.

Devia ser um desígnio nacional manter a competitividade internacional das nossas instituições de ensino, investigação, desenvolvimento e inovação, competitividade que resulta em grande parte dos investimentos em recursos humanos feitos nas últimas décadas por força da visão de José Mariano Gago. Mas, para podermos manter no futuro a competitividade internacional que nos custou tanto a atingir, é necessário investimento, público e privado, tanto nas pessoas que fazem ciência e desenvolvem tecnologia, como nas infra-estruturas que permitem fazê-lo, universidades e institutos. Onde o Orçamento do Estado não chegar, será necessário que exista investimento privado, tanto de empresas como de particulares, para que o país não perca esta corrida pelo domínio dos bits, dos átomos e dos genes.»

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31.3.19

Ladrar contra o Brexit



Estão à deriva, mas não perderam a ironia.



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É isto que Bolsonaro quer «festejar»





E, no entanto:
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Sem comentários


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A Zippy, o Brunei e os sagrados corações



«No mesmo mundo em que nesta semana o Brunei muda a lei para começar a lapidar até à morte homossexuais e adúlteras, no Facebook português assistimos a uma flash mob na página da marca de roupa Zippy por causa do lançamento de uma linha ungendered, ou seja, "sem género", para crianças, com acusações de "agenda LGBTI", "erotização das crianças", "ativismo radical", "tentativa de mudar a biologia" (juro) e desmaios perante a hipótese de "pôr meninos a usar saias" (não sendo o caso da coleção, estranha-se que gente que se arroga "da família" não tenha em casa fotografias de antepassados; basta recuar umas décadas para constatar que neste mesmo hemisfério e país - obviamente noutros, e sem ser preciso lembrar os padres, há homens que usam saia diariamente - meninas e meninos usavam vestidos e não consta que tenha havido drama por isso).

A coincidência destes dois acontecimentos é tanto mais interessante quando a mob que ataca a marca de roupa o faz na perspetiva da vitimização, alegando que a existência daquela coleção é um sinal de uma "ofensiva" - a terrível ofensiva daquilo a que chamam "ideologia de género" e que, já se sabe, "quer destruir a família". Não é demais sublinhar que num mundo em que a verdadeira ideologia de género - aquela que visa impor rígidos papéis de género a raparigas e rapazes e uma única orientação sexual, a hetero - literal e ostensivamente mata, existem almas a, sem pudor, atribuir a quem combate essa ditadura intuitos persecutórios e exterminadores.

Há mesmo alguém, entre aquelas dezenas de comentários furibundos, que escreve: "Não nos vão impedir de pensar como Deus."

Esta extraordinária frase, que mereceria por si só uma monografia, tem tanto de potencial cómico como mortífero. Se o comum é que quem crê na existência de uma divindade lhe atribua, para além de omnisciência, uma autoridade indisputada e total sobre tudo, aqui vemo-nos perante a arrogância de se dizer que não só se conhece o pensamento da divindade como que se é seu legítimo intérprete - e portanto agente, ou mão de deus. Tal qual os governantes do Brunei ao decretarem a morte - e a morte pela multidão, pública, lenta e o mais dolorosa possível - a todos os que infrinjam aquilo que ditam ser contrário ao "pensamento de Deus".

É portanto esse "pensamento divino" que determina quais as "condutas sexuais corretas", logo "naturais". E é por serem errados e portanto antinaturais, e terem de sofrer por isso, mas também por constituírem uma espécie de potencial contaminante dos "corretos" que os homossexuais e as adúlteras têm de ser apedrejados até morrer; porque a forma horrível e espetacular como serão exterminados, simbolizando a repugnância castigadora da divindade, deve ser um exemplo para todos. Claro que, perante este raciocínio, ocorre perguntar: se há os "naturais" e os "não naturais", de onde vêm, senão da "natureza", os segundos, e porque é que é preciso fazer deles exemplo? Será que quem o faz acredita que se não assustar os "naturais" eles se convertem ao "não natural"?

Deste lado do mundo, a perspetiva que anima a pequena multidão de arremessadores de pedras à marca de roupa é igualmente paradoxal: não basta que, num mercado com múltipla oferta, não comprem para os seus filhos, sobrinhos e netos; a linha de roupa tem de ser exterminada porque é um exemplo perverso, um contaminante, um vírus, um perigo à solta. Não se pode deixar aquela roupa existir e é mesmo preciso exigir à marca abjuração, de baraço ao pescoço: "Um pedido de desculpas e defenderem publicamente a família matriz judaico-cristã no mínimo", reclama uma das comentadoras.

O paradoxo é totalmente exposto neste outro comentário: "As crianças nascem rapazes e raparigas, e não vai ser uma moda estapafúrdia que vai mudar a biologia, a ciência e a evolução antropológica do ser humano." De facto, do ponto de vista de quem considera que tudo é regido por um ente superior e que existe uma separação intransponível, biológica e divinamente determinada entre raparigas e rapazes, não faz o menor sentido achar que "uma moda estapafúrdia" mude alguma coisa. Que raio de deus ou natureza se deixaria derrotar por calções e T-shirts coloridos ou um logo com um arco-íris? Que deus ou natureza precisa de um índex de roupa, de lapidações e de terror, de toda uma máquina repressiva e excludente ou seja, de cultura -, para se impor?

Nem de propósito, nesta mesma semana um colégio católico, o do Sagrado Coração de Maria, anunciou no Facebook um ciclo de debates para alunos do secundário com quatro perguntas. Todas merecem análise, mas o espaço e o tema implicam relevar esta: "Será que nascemos geneticamente gays ou é algo que resulta de uma conjuntura externa?"

Devido à polémica, o post foi retirado; o colégio veio depois explicar que as perguntas tinham sido formuladas de "forma extremada" com base em "problemáticas de atualidade". Ora os únicos círculos em que a origem da homossexualidade é uma "problemática", e "de atualidade", são aqueles nos quais, precisamente, a homossexualidade é problemática e portanto há quem se preocupe em perceber de onde vem e porquê - e como, claro, pode ser "debelada" ou "curada". Sem se dar conta de que fazer esta pergunta expõe a verdadeira dúvida: "Será que nascemos geneticamente heterossexuais ou é algo que resulta de uma conjuntura externa?" Porque é isso que realmente esquenta estas cabeças, ou jamais se preocupariam com linhas de roupa ou ações de educação para a igualdade protagonizadas por jovens LGBTI nas escolas. O seu terror é que se deixarem as crianças em paz - se lhes derem liberdade e as deixarem pensar pelas suas cabeças - elas sejam o que quiserem. É o que se chama, creio, uma crise de fé.»

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