«O século XX foi profundamente marcado por um conjunto significativo de descobertas e invenções, entre as quais são de destacar o motor de combustão interna, o rádio, o transístor, a energia nuclear, os antibióticos, a imagiologia e a radioterapia, entre tantas outras. É muito provável que o século XXI nos traga pelo menos tantas transformações tecnológicas como as que trouxe o século anterior. Porém, elas terão uma natureza algo diferente. É certo que continuamos a ter um conhecimento incompleto de muitas leis da Física e que importantes avanços poderão vir a ser feitos nesta área. Porém, não é de crer que o aumento do nosso conhecimento sobre as leis básicas da Física venha a ter o mesmo impacto na vida do dia-a-dia que as invenções e descobertas do século XX tiveram, porque muitas das situações onde o nosso conhecimento da Física é incompleto correspondem a condições extremas, longe das que observamos no nosso planeta. Zach Weinersmith resumiu, humoristicamente, o estado da Física no seguinte parágrafo, traduzido livremente:
“Aristóteles percebeu tudo mal mas foi corrigido por Galileu e por Newton. Veio Einstein e estragou tudo outra vez. Hoje, percebemos praticamente tudo, excepto as coisas pequenas, as coisas grandes, as coisas quentes, as coisas frias, as coisas rápidas, as coisas pesadas, as coisas escuras, a turbulência e o conceito de tempo.”
Embora não sejam de esperar descobertas de novas leis fundamentais da Física com impacto tecnológico imediato, assistiremos nas próximas décadas a alterações muito profundas, causadas principalmente pelo desenvolvimento de três grandes áreas do conhecimento: tecnologias de informação e comunicação (bits); materiais e nanotecnologias (átomos); biologia, medicina e biotecnologia (genes).
A invenção do transístor, em 1947, que poderá vir a ser reconhecida como a mais revolucionária de sempre, permitiu criar a sociedade da informação do fim do século XX, e está a potenciar a quarta revolução industrial a que assistimos. Tecnologias como telemóveis, televisões, internet, carros autónomos, inteligência artificial, internet das coisas, cidades inteligentes e cadeias de blocos (blockchain) são todas elas o resultado do nosso cada vez melhor domínio do que é a informação, cuja unidade fundamental é o bit (abreviatura da expressão inglesa “binary digit”). Toda a informação que usamos é, em última análise, representada por bits, processados por computadores, transmitidos por redes e guardados em memórias e discos. A nossa crescente capacidade para obter, processar e usar informação de forma inteligente será, seguramente, um dos motores das transformações tecnológicas que vamos observar nos próximos anos.
Por mais poderosos que sejam os computadores e as redes, que processam e transmitem informação, continuará a ser necessário actuar sobre o mundo físico. Resolver os desafios energéticos, ecológicos, ambientais e económicos dependerá, criticamente, da nossa capacidade para desenvolver novos materiais e nanotecnologias e de os usar de forma criativa, sustentável e produtiva para sustentar uma civilização cada vez mais exigente. Richard Feynman, em 1959, proferiu uma famosa palestra onde a mensagem principal era algo como “lá em baixo, bem no fundo, há montes de espaço livre”. Feynman referia-se às enormes possibilidades que se abrem à tecnologia quando for possível manipular átomos, a nível individual, criando novos materiais com propriedades diferentes e aplicações revolucionárias, que permitirão capturar, armazenar e transformar energia mais eficientemente, controlar a poluição, limitar o aquecimento global e desenvolver novos produtos, de uma forma que até agora era simplesmente impossível.
A terceira vertente de desenvolvimento tecnológico a que assistiremos está relacionada com o conhecimento cada vez mais profundo dos sistemas biológicos, que permitirão avanços profundos na medicina, na biologia e na biotecnologia. Desde 1953 que sabemos que toda a vida no planeta resulta da acção dos genes, estruturas que codificam a informação genética dos seres vivos na espiral de DNA, descoberta por Watson e Crick, com base em dados obtidos por Rosalind Franklin. O conhecimento cada vez melhor dos mecanismos que as células usam para sobreviver, crescer e multiplicar-se permitirá desenvolver novos tratamentos para muitas patologias (entre as quais o cancro e as doenças cardiovasculares e neurodegenerativas), criar novas drogas e conceber novos produtos, aumentando a esperança de vida, que já cresceu 150% nos últimos dois séculos, e melhorando a sua qualidade.
Bits, átomos e genes: apenas o domínio crescente de cada um destes domínios, e das suas interacções, permitirá à ciência do século XXI desenvolver as tecnologias que irão transformar a nossa sociedade, talvez de uma forma tão profunda como as duas primeiras revoluções industriais. Lamentavelmente, o desenvolvimento destas tecnologias exige investimentos significativos nas infra-estruturas e nas instituições que têm a capacidade para criar o mundo do amanhã. Os grandes blocos comerciais, incluindo a China, o Japão e os Estados Unidos, têm feito significativos investimentos nestas áreas. Também a Europa tem planos para o desenvolvimento destas áreas, mas os principais investimentos em laboratórios e instalações experimentais são feitos pelos próprios países, e não pela União Europeia, que gere um orçamento comparativamente pequeno.
A difícil situação económica que Portugal tem atravessado, porém, tem-nos impedido de acompanhar os investimentos que outros países têm feito em ciência e em tecnologia. De acordo com os números da OCDE, o investimento anual no ensino superior e ciência, por cada estudante, ajustado pelo coeficiente da paridade do poder de compra (PPP), é em Portugal apenas 75% do valor da média dos países da OCDE. Para comparação, no ensino secundário, este valor aproxima-se da média da OCDE, sendo superior a 90% desta média. Esta estatística, ajustada pelo PPP, esconde, de facto, uma assimetria muito, muito, maior e muito séria, porque a competição entre países na área da ciência é feroz. Os países mais desenvolvidos da Europa e do mundo investem de facto muito mais na ciência e no ensino superior do que nós, tanto em valor absoluto como em proporção do PIB, porque percebem que o desenvolvimento da tecnologia é o factor decisivo na competitividade futura das nações. O orçamento anual de qualquer uma grandes escolas de engenharia mundiais, como o MIT, o Imperial College, a ETH Zurich ou a TU Munique, é muito superior a todo o orçamento do ensino superior e da ciência, em Portugal.
Devia ser um desígnio nacional manter a competitividade internacional das nossas instituições de ensino, investigação, desenvolvimento e inovação, competitividade que resulta em grande parte dos investimentos em recursos humanos feitos nas últimas décadas por força da visão de José Mariano Gago. Mas, para podermos manter no futuro a competitividade internacional que nos custou tanto a atingir, é necessário investimento, público e privado, tanto nas pessoas que fazem ciência e desenvolvem tecnologia, como nas infra-estruturas que permitem fazê-lo, universidades e institutos. Onde o Orçamento do Estado não chegar, será necessário que exista investimento privado, tanto de empresas como de particulares, para que o país não perca esta corrida pelo domínio dos bits, dos átomos e dos genes.»
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