«No final de Junho, Angela Merkel deu uma interessante entrevista a seis jornais europeus que revela o profundo domínio dos temas europeus, bem como o à vontade – quase descontracção – com que encara a crise causada pelo vírus SARS-CoV-2, a enésima crise da sua carreira como chanceler da Alemanha.
Na entrevista, Merkel deixa transparecer que está confiante que a União Europeia e a Zona Euro serão capazes, como no passado, de responder de forma satisfatória a mais esta crise. Reconhece de modo pragmático e correcto que esta é uma enorme crise e que são necessárias medidas extraordinárias de solidariedade. Por isso, argumenta, propôs em conjunto com o presidente Macron um fundo de recuperação europeu de 500 mil milhões de euros de transferências (e não empréstimos), que seria financiado pelo Orçamento da União Europeia.
Essa proposta está na génese do Fundo de Recuperação Europeu de 750 mil milhões de euros que, no entanto, viu a componente de transferências diminuída e a componente de empréstimos aumentada. E, mesmo assim, a Holanda quer atrasar uma decisão sobre esse fundo de recuperação europeu.
No entanto, a experiência de Merkel na gestão de crises e o facto que essas crises foram, de forma mais ou menos satisfatória, ultrapassadas, poderá levá-la a subestimar a gravidade da crise actual.
Ainda no âmbito dessa entrevista, referindo-se ao problema suscitado pela decisão do Tribunal Constitucional da Alemanha (TCA) – ao deliberar que se o BCE não provar satisfatoriamente, até 5 de Agosto, que os respectivos programas de expansão quantitativa cumprem o teste de proporcionalidade económica, o Bundesbank se deve retirar desse programa –, nota que os Estados-membros nunca aceitaram transferir todas as competências e poderes para a União Europeia. O Tribunal Europeu apenas é a última instância judicial para as competências e poderes que foram explicitamente transferidos dos Estados-membros para a União Europeia. Nas restantes matérias, o Tribunal Europeu – eu diria, felizmente – não é o tribunal superior mas sim os tribunais constitucionais de cada Estado-membro.
E Merkel remata a sua avaliação do conflito legal que resulta da decisão do TCA dizendo “é essa a natureza da besta”, isto é, é essa a natureza da União Europeia tal como foi construída pelos Tratados Europeus.
MEGA (idiotas)?
A Wikipedia em português descreve a liga hanseática como “uma aliança de cidades mercantis — alemãs ou de influência alemã — que estabeleceu e manteve um monopólio comercial sobre quase todo o norte da Europa e Báltico, em fins da Idade Média e começo da Idade Moderna (entre os séculos XII e XVII). Abrangeu cerca de 100 cidades, com Lübeck como centro. De início com carácter essencialmente económico, desdobrou-se posteriormente numa aliança política”.
A nova liga hanseática é uma aliança de Estados-membros da Zona Euro e da União Europeia (Holanda, Bélgica, Irlanda, Dinamarca, Suécia, Finlândia, Letónia, Lituânia e Estónia), que inclui os países ditos frugais (leia-se, sovinas), com representação formal em Bruxelas.
A nova liga hanseática conseguiu uma enorme (mas pírrica) vitória ao eleger para a presidência do Eurogrupo o irlandês Paschal Donohoe, vencendo a candidata espanhola, Nadia Calviño, que parecia inicialmente a favorita e que contava com o apoio dos maiores países da Zona Euro (Alemanha, França, Itália, Espanha), bem como de Portugal, da Grécia, da Finlândia e de Malta. Um dos dez países que tinha prometido o voto a Nadia Calviño não votou nela na primeira ronda de votos, tendo esta perdido na ronda final contra Paschal Donohoe, que recebeu o apoio da maioria dos países (pequenos) daquela nova liga.
No dia 7 de Julho, de forma inacreditável, um tweet dessa nova liga hanseática (NLH) advoga uma escolha sábia na eleição da presidência do Eurogrupo. Parafraseando a sigla dos apoiantes do Presidente Trump (“Make America Great Again”, ou MAGA), símbolo da profunda divisão em que os EUA estão mergulhados, coloca uma fotografia de um boné com a sigla MEGA (Make Eurogroup Great Again), e as escolhas que essa presidência irá defender: défices públicos de 3%; empréstimos com condicionalidade estilo troika através do Mecanismo Europeu de Estabilidade; o pacto de estabilidade (e crescimento) europeu (SGP) – leia-se continuação do espartilho orçamental e regras orçamentais arbitrárias a la carte duramente aplicadas aos Estados-membros devedores da Zona Euro – ; “Asset Quality Review”, i.e., uma análise aos activos do sector bancário (dos Estados-membros do sul); uma reforma das cláusulas de acção colectiva para garantir que os Estados-membros credores controlam a reestruturação de dívida dos Estados-membros devedores e para aumentar a pressão sobre o mercado de dívida soberana destes últimos; mais reformas ditas estruturais; e resiliência, seja lá o que isso quer dizer.
Os acrónimos tecnocráticos herméticos e incompreensíveis para a generalidade da população (“3%”, “ESM”, “SGP”, “AQR”, CAC”, “Reform”, “Resilience”), i.e., as causas advogadas pela NLH, no detalhe, têm profundas implicações. Na realidade, afiguram-se quase racistas, revelando ignorância, indiferença pelo sofrimento causado, e desconfiança de tudo quanto provém dos Estados-membros do sul da Zona Euro, o grupo de países que foram no passado designados “PIGS” (porcos). Quase parece que se pretende levar os PIGS para o matadouro.
A Zona Euro e a União Europeia estão num diálogo de surdos e assusta porque as prioridades da NLH sinalizam muito: a NLH não parece ter a noção de quão duras e retrógradas são as medidas que advogam, nem a insensibilidade que é utilizar o chapéu MEGA para defender a eleição do seu representante para a presidência do Eurogrupo (a Suécia e a Dinamarca não fazem parte da Zona Euro). Não parecem compreender que retiram mais benefícios da Zona Euro e da União Europeia do que os Estados-membros do sul.
Donohue defenderá taxas de impostos baixas para as empresas, será contra a taxação de multinacionais dos sectores digitais (que têm as suas sedes para efeitos fiscais na União Europeia precisamente na Irlanda) e tenderá a defender alguns pequenos países que constituem paraísos fiscais no seio da Zona Euro: Irlanda, Luxemburgo e Holanda.
Um mau princípio de uma presidência do Eurogrupo que se afigura será muito atribulada e que se arrisca a ser a última?»
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