15.7.20

Presidenciais: clivagem errada



«Pedro Nuno Santos disse uma coisa escandalosa das várias coisas aparentemente escandalosas que tem dito: que sendo uma pessoa de esquerda não vai votar num candidato de direita para a Presidência da República. A mim isto parece-me evidente, tendo como exceção um qualquer momento em que a democracia estivesse em perigo e isso obrigasse ao voto para evitar, do seu ponto de vista, o mal menor. Não é o caso.

Imagino que António Costa ainda não aderiu à classificação política que reduz as escolhas de políticos a pessoas competentes e incompetentes. Esse simplismo, além de ser especialmente absurdo no cargo de Presidente da República, despolitiza a política e transforma as eleições em concursos públicos para recrutamento de pessoal. Se pensasse dessa forma, teria de se desfiliar do PS, por não ser essa a lógica da agregação partidária. Nós juntamo-nos a outros em partidos pelo que temos em comum política e ideologicamente com essas pessoas. Competentes e incompetentes, sabemos bem, existem em todos os lados. Assim sendo, tem de ser outro o critério que levará Costa, Carlos César, Fernando Medina ou Ferro Rodrigues a escolherem o voto em Marcelo Rebelo de Sousa.

O que move Costa, antes de tudo, é saber que Marcelo já ganhou as eleições. Não quer estar associado a uma derrota num momento que se adivinha difícil. E prefere ter o Presidente agarrado a si até lá. Por mais que este pragmatismo seja apreciado nos meios mediáticos, é bom recordar que o cemitério da política está cheio de pragmáticos que tropeçaram nos seus próprios cálculos. O longo prazo exige sempre um pouco mais do que isso.

Há, em muitos dos que rodeiam Costa e não fazem apenas contas ao próximo ano, um racional ideológico na escolha de Marcelo Rebelo de Sousa como candidato. Tem a ver com o lugar onde acham que hoje se faz a clivagem política. Uma corrente do PS, de que Augusto Santos Silva é o ideólogo mas não o operacional, acha que ela se faz entre cosmopolitas moderados e populistas radicais. Isso implica uma aliança entre tudo o que está dentro daquilo a que muitos chamam “sistema”.

Foi esta clivagem que Emmanuel Macron explorou em França, sorvendo socialistas e direita republicana em simultâneo e deixando de fora esquerda radical e extrema-direita. Com isto, Macron desestruturou todo o sistema partidário e preparou o caminho do futuro para a senhora Le Pen. É verdade que as autárquicas foram um revés para os dois, mas elas esclarecem pouco.

Quando alguém determina que a prioridade é combater a extrema-direita não enfraquece a extrema-direita. Reforça-a. Sempre que colocamos a clivagem fundamental (não quero dizer a mais acentuada, mas a mais relevante) entre nós e um adversário não o enfraquecemos, reforçamo-lo. Porque essa clivagem lhe oferece o estatuto de alternativa. E é por isso que desistir da clivagem entre a esquerda e a direita, que apesar dos repetidos anúncios de morte ainda é a mais mobilizadora e clara, é desistir do combate entre alternativas dentro do sistema democrático e entregar de bandeja à extrema-direita o lugar de alternativa dos descontentes. Fazer isto quando esse espaço ainda é incipiente em Portugal mas desbrava caminho sem resistência é um hino à estupidez.

O apoio explícito ou implícito do PSD e do PS a Marcelo tem vários problemas imediatos. O excesso de poder que um Presidente com mais de 70% dos votos acumulará perante um governo minoritário. Se Costa espera lealdades não conhece o seu parceiro circunstancial. E devia conhecer, porque são parecidos.

Acima de tudo, este apoio transforma o "sistema" numa ilha cercada por descontentes sem alternativas viáveis. E esse "sistema" tende a ser percecionado como "a democracia". O renascimento do bloco central institucional consegue fazer o infeliz pleno de deixar a esquerda órfã de representação política e atirar, por deslocamento oportunista do candidato muito para fora do seu espaço natural, franjas da direita para Ventura. E isso não é contraditório com votações esmagadoras em Marcelo. Porque a política não se esgota na aritmética eleitoral. Ela tem o dia seguinte, como se verá quando o balão de Macron rebentar e sobrarem escombros e a extrema-direita intacta para os ocupar.

Quando Pedro Nuno Santos diz que se não houver candidato do PS ele votará no do BE ou no do PCP, não está a afastar-se do PS. É o oposto. Está a dizer que o PS está a desistir de liderar o seu espaço. E que é nesse espaço que ele continua. As identidades de pertença, em política, contam muito. Como se vê pela vida fugaz de projetos que não as têm – PAN, MPT, PDR, PNS, PRD... Contam tanto que até podem exigir derrotas.»

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