Para celebrar os 40 anos da Revolução de Abril e os 15 anos da sua edição portuguesa, Le Monde Diplomatique elaborou (no nº90, Abril de 2014) um vasto dossier dedicado à liberdades constitucionais, no qual colaborei com o seguinte texto:
Liberdade de expressão e informação
No dia 25 de Abril de 1974, o primeiro direito a ser exercido pelos portugueses, mesmo antes do triunfo da Revolução estar garantido, foi a liberdade de expressão – nas ruas, na televisão, na rádio e nos primeiros jornais. Todo um povo liberto, enfim, de décadas de silêncio de chumbo.
Portugal juntou-se então, de pleno direito, à comunidade dos países defensores do artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, onde «liberdade de expressão» e «liberdade de opinião» foram consagradas em 1948, e à Europa que as ratificou, dois anos mais tarde, no artigo 10 da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. Teria de esperar por 1976 para que a sua nova Constituição as explicitasse também.
Embora correspondam a dois princípios diferentes, liberdade de expressão e liberdade de opinião estão profundamente interligadas e a primeira condiciona fortemente a segunda, já que a sua ausência impede o acesso legítimo à informação, indispensável para a formação adequada de opiniões.
Quando se fala em liberdade expressão, elemento basilar de qualquer democracia até por ser corolário do direito à própria vida privada, não se pode ignorar que o mundo do século XXI está muito longe de a respeitar e que são grandes as manchas negras no mapa das regiões e dos povos para as quais ainda não deixou de ser apenas uma miragem, num horizonte que parece dificilmente alcançável. É verdade que o progresso de todos os meios de comunicação torna cada vez difícil erguer barreiras à circulação da informação, e impedir reacções rápidas e eficazes às mesmas, mas a prepotência do exercício do poder continua a impor a sua força.
E mesmo onde ela parece inquestionável, e cada vez com menos limites, está permanentemente ameaçada por um escrutínio sistemático e por um sistema de vigilância monumental, para os quais o mundo parece ter acordado recentemente com estrondo. As revelações sobre as práticas da National Security Agency (NSA), dos Estados Unidos e de muitos dos seus aliados, quanto a vigilância, em grande escala, de países, organizações e cidadãos, põe gravíssimos problemas neste domínio, na medida em que governantes violam a vida privada das pessoas e empresas fornecem dados que se tinham comprometido a proteger.
Quanto à relação entre liberdade de expressão e liberdade de opinião, se em regimes totalitários a ausência da primeira impede uma formação correcta da segunda, mesmo em democracias tão mediatizadas como aquelas em que vivemos existem fortes pressões de toda a espécie, talvez hoje mais fortes e mais graves do que no passado, que impedem o exercício desejável de ambas. Se é certo, por exemplo, que a massificação do acesso à internet dá poder a um número sempre crescente de pessoas e às suas redes, numa dimensão que seria impossível prever há poucos anos, não deixa de ser verdade que ela acaba por condicionar os órgãos de comunicação social, sobretudo aqueles que mais impacto têm nos cidadãos, como é o caso das televisões. A pressa e a leveza com que quase tudo é abordado, e muitas vezes reduzido a puros sound bites, acabam por influenciar muitíssimo a opinião pública, aquela que está para além das elites, sempre minoritárias, que são capazes de filtrar o que lêem, vêem e ouvem. Em A Tirania da Comunicação, Ignacio Ramonet fala de uma «censura democrática» que se introduz subrepticiamente nos países livres onde se respeita o direito de expressão e de opinião. Ela não se concretiza em cortes ou proibições, mas sim «na acumulação, na saturação, no excesso e na superabundância de informações» que permitem artifícios, mentiras e silêncios, que toldam a transparência do que é transmitido. A informação é tanta que pode ser dissimulada ou truncada, sem que se chegue a perceber o que falta, e torna-se mesmo naturalmente incontrolável (1). A título de exemplo, refira-se o discurso sobre a inevitabilidade do austeritarismo e do carácter sacrossanto do Tratado Orçamental, com que, nos últimos anos, somos bombardeados diariamente por um grande número de comentadores e jornalistas: a mensagem passa para a opinião pública, é assimilada por grande parte desta e torna-se banal. O mesmo está a acontecer com o uso e abuso da proclamação da necessidade de «consensos», custe o que custar, sem a preocupação de os caracterizar e de definir estratégias e conteúdos. A expressão é livre, a opinião é condicionada. Ou seja: os órgãos de comunicação social estão a estreitar quantitativamente o leque do que oferecem em termos de diversidade ideológica e ao fazê-lo, apressada e deliberadamente, exercem a tal «censura democrática» que Ignacio Ramonet refere e orientam a formação de opinião em determinada direcção, reduzindo a efectiva liberdade da mesma. No actual quadro político, são preferencialmente veículo de um neoliberalismo exacerbado, escondido em soluções apresentadas como únicas, óbvias e virtuosas.
Finalmente, se é fundamental defender acerrimamente estas conquistas tão essenciais para a vida de qualquer democracia, há que recordar que não há direitos sem baias, e que, se a nossa Constituição defende intransigentemente a liberdade de expressão, explicita também, no artigo 37 já referido, que «as infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social». É sabido que, em Portugal, há muitos processos que chegam aos tribunais porque cidadãos, organizações, ou o próprio Estado, se sentem lesados pelo que consideram mau exercício de liberdade de expressão. Mas como funciona, de facto, o nosso poder judicial, neste domínio? Numa conferência realizada em Lisboa, em 2011, sobre «A Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem», Francisco Teixeira da Mota lembrou que «o Estado português foi condenado 13 vezes pelo Tribunal Europeu de Direitos do Homem (TEDH) por violação do direito à liberdade de expressão», entre 2000 e 2010, essencialmente em casos de condenações «de jornalistas ou políticos à volta de críticas políticas e de expressões violentas e contundentes utilizadas, como aldrabão ou grotesco». E citou o mesmo TEDH que reafirmou que «a grande questão na liberdade de expressão é que deve permitir a circulação de informações tanto correctas como erradas, tanto inteligentes como estúpidas, tanto bonitas como feias, tanto agradáveis como incómodas» (2). Portanto, os nossos políticos que se cuidem: podemos considerá-los «grotescos» ou «palhaços» – e dizê-lo.
Neste 40º aniversário de Abril, celebremos as liberdades que conquistámos. Mas, sobretudo, lutemos pela reconquista das que fomos perdendo e pela defesa daquelas que nos querem tirar.
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(1) Ignacio Ramonet, A Tirania da Comunicação, http://pt.scribd.com/doc/2230907/IGNACIO-RAMONET-tirania-da-comunicacao, p.13.
(2) http://www.publico.pt/sociedade/noticia/portugal-condenado-13-vezes-no-tribunal-europeu-de-direitos-do-homem-por-violacao-de-liberdade-de-expressao-1495011
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