«Há duas semanas, assinalei aqui os cinquenta dias da guerra com uma pergunta: “Estamos mesmo com a Ucrânia?” Infelizmente, os acontecimentos dos últimos dias mostram que não estamos. De joelhos perante o agressor, não podemos estar ao lado do país invadido.
O The Russian Energy Export Tracker, disponível no site do finlandês Center for Research on Energy and Clean Air, rastreia o transporte de combustíveis fósseis em navios de carga e via gasoduto para nos permitir acompanhar as exportações russas. Ontem a meio da tarde, o tracker dizia que, desde 24 de fevereiro, a União Europeia já pagara à Rússia 46.667.715.000 euros. O contador continuava a mexer, mas o meu texto tinha de seguir viagem.
O valor é obsceno quando comparado com dois outros. O primeiro: a Rússia exportou um total de 63 mil milhões de euros desde o início da guerra até 27 de abril, pelo que a parte da UE no financiamento da guerra de Putin é sem paralelo com qualquer outro país ou bloco económico: pagámos 71% do sangue ucraniano. O segundo: a UE anunciou três pacotes de 500 milhões de ajuda militar à Ucrânia, a 28 de fevereiro, 23 de março, e agora a 13 de abril. Um total de 1,5 mil milhões, ou o equivalente ao que pagamos a Putin em apenas dois dias pela energia.
Daniel Yergin, historiador económico especialista em energia, explicou recentemente ao colunista Ezra Klein, do New York Times, que tanto a anexação da Crimeia como a invasão da Ucrânia coincidiram com períodos de preços elevados da energia. Preços elevados significam escassez de energia, ou seja, períodos nos quais a oferta disponível no mercado está a ter mais dificuldade em satisfazer a procura, o que aumenta a dependência energética. São momentos em que a genuflexão se acentua.
A Rússia é o maior fornecedor de combustíveis fósseis à União Europeia: em 2021, pagámos a Putin mais de 100 mil milhões de euros. Além disso, é entre 2,5 a 3 vezes mais importante do que os países que se lhe seguem em termos de peso dos fornecimentos. Em 2020, a União Europeia importava da Rússia 26,9% do petróleo. O segundo fornecedor mais importante era o Iraque, com apenas 9%. Importava igualmente 46,7% do carvão da Rússia. O segundo fornecedor mais importante eram os EUA, responsáveis por 17,7% do carvão utilizado na UE. Quanto ao gás, à frente estava a Rússia, com 41,1% e atrás a Noruega, com 16,2%.
Genuflexão europeia só é mesmo fletida quando verga a Alemanha, que importa 65% do seu gás da Rússia. Há países ainda mais dependentes (Chéquia e Hungria, com 100%), mas que importam muito menos e não têm o peso da Alemanha nas instituições da União. A Alemanha é responsável por um quarto dos pagamentos europeus à Rússia por conta dos combustíveis fósseis. Não pode ser só por ingenuidade que se chega a este ponto. A genuflexão alemã inclui a cabeça de Gerhard Schroeder, que se tornou assalariado de Putin escassos 17 dias depois de deixar de ser chanceler alemão em 2005. Os seus vários cargos em empresas energéticas russas rendem-lhe 1 milhão de euros por ano.
A administração Trump tinha imposto sanções às empresas europeias que participassem na construção do gasoduto Nord Stream 2, avisando que a Alemanha se arriscava a ficar “cativa” da Rússia. Em face da resistência de vários Estados-membros que também tinham reservas quanto a esta ideia alemã de meter o lobo na toca do coelho, Merkel tinha afirmado perentoriamente que o seu país não iria ficar dependente do gás russo. Visto a esta distância, tem a sua piada. É que o NordStream 2 foi parado em fevereiro e ia duplicar a capacidade de importação. Se estamos como estamos só com o Nord Stream 1, imaginem se o segundo estivesse a funcionar.
O que nos traz aos pagamentos em rublos. A utilidade dos euros para a Rússia diminuiu bastante com as sanções, devido à decisão de muitas empresas ocidentais de deixar de ter comércio com a Rússia. Mesmo se fosse só por isso que Putin queria rublos, não era razão para lhe fazer a vontade. Mas a verdade é tragicamente outra. Putin está a pôr as companhias europeias de energia a fazer o trabalho que o seu banco central está impedido de fazer para segurar o valor da sua moeda. A usá-las como marionetas para desfazer o impacto das sanções da UE. Senão, vejamos.
Nas semanas que se seguiram à invasão da Ucrânia, a moeda russa perdeu valor, tendo atingido um mínimo a 7 de março, quando os 100 rublos que no início de fevereiro valiam pouco mais de 1 euro atingiram o valor de 61 cêntimos – o mais baixo em mais de duas décadas. Desde meados de abril que o rublo recuperou o seu valor pré-guerra. Ontem, os tais 100 rublos já valiam 1,31 euros.
Vários países – EUA, Japão, França, Alemanha, Reino Unido, Áustria e Canadá – congelaram as reservas do Banco Central russo nos seus países, o que representa quase metade dos 585 mil milhões detidos pelo Banco da Rússia em países estrangeiros. Assim, a Rússia ficou impedida de vender essas reservas e comprar rublos, o que lhe permitiria segurar o valor da sua moeda.
Como explicou o Think Tank Bruegel num artigo recente, uma interpretação abrangente das sanções impostas pela União Europeia ao Banco da Rússia pode impedir a Rússia de ter acesso a qualquer ativo estrangeiro na sua posse, o que inclui os pagamentos em euros feitos ao Gazprombank. Para pagar em rublos, o importador europeu tem de abrir uma conta denominada em rublos no Gazprombank, para além da conta em euros que já detém. Para pagar à Gazprom, o importador deposita o pagamento em euros e ordena ao banco que os converta em rublos. O Gazprombank levanta depois os rublos do Banco da Rússia, utilizando a conta em euros como garantia. E usa estes rublos para pagar à Gazprom – que é como quem diz, ao Estado russo – que vendeu o gás. Assim, não há transações em euros com o Banco da Rússia; as operações em rublos entre o Gazprombank e o banco central estão fora do âmbito das sanções.
A UE, muito devido ao peso da Alemanha e à sua resistência às sanções, anda empenhada em fazer figura de parva. Primeiro, mantiveram o Gazprombank no sistema SWIFT para garantir que os pagamentos de gás natural não iam ser afetados. Depois, anunciaram o embargo ao carvão, que representa pouco mais de 5% das importações de combustíveis fósseis russos. Um arranhãozinho. Há um mês atrás, Putin assina o decreto que, na prática, exige às energéticas europeias que desfaçam as sanções que a UE lhe impôs e a união esperneia, faz umas declarações, diz que é ilegal porque os contratos não preveem pagamentos em rublos e tal, mas nada faz que doa mesmo.
Como se não bastasse, Putin resolveu mesmo cortar o fornecimento a dois países – Polónia e Bulgária – na quarta-feira. Se a UE quisesse guardar alguma réstia de credibilidade, retaliaria banindo as importações dos restantes países imediatamente. Ao invés, as companhias energéticas alemãs, austríacas, húngaras e eslovacas começaram a fazer o necessário para abrir contas em rublos na filial suíça do Gazprombank e fazer a vontade a Putin. Vamos lá ver se nos entendemos: a ideia das sanções é mostrar a Putin que temos uma arma económica para usar contra ele. Assim, de joelhos, só lhe mostramos que é ele que manda em nós.»
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