27.4.22

A memória das guerras prescreve?

 


«“A guerra é uma caçada em que os homens são simultaneamente os caçadores e a caça”
Curzio Malaparte (in Kaputt, 1944)

A sirene é estridente e o veículo de emergência médica avança em grande velocidade para salvar uma vida humana. O 112 transporta a esperança da sobrevivência. Médicos e enfermeiros tudo farão para a salvar. Face a uma pandemia, tentamos evitar as mortes e outros efeitos sociais. Reconhecemos o esforço sem descanso da ciência e das instituições, incluindo as forças armadas, que se empenharam nesse objectivo. A vontade atendeu a um imperativo: evitar a dor de um ou de milhares. Em 2022, após milénios de vivência, não faltam exemplos da vontade de adiar a morte apesar de esta ser a inevitabilidade mais certa que cada humano carrega desde que nasce.

Mas mantém-se, em 2022, uma inexplicável e paradoxal situação não civilizada: as violências armadas, as guerras entre humanos, organizadas por grupos, países ou Estados. Onde se mata e morre. Existem há milénios, mas não é conhecido quando tiveram início, talvez esteja associada à caça como Malaparte pensou. Mas eis o que a experiência nos diz: a História parece apreciar as guerras, é muito masculina e, com o desenvolvimento da técnica, são cada vez mais mortíferas e ameaçadoras. O ateniense Tucídides, considerado o primeiro historiador da guerra, descreve a submissão ao mais forte e diz-nos que a guerra resulta de honra, medo ou interesses. Talvez ainda o seja, mas a guerra foi sendo justificada ao longo do tempo e o conceito de “guerra justa” continua a ser pertinente. As guerras não são actos isolados, têm uma dinâmica, inserem-se em processos históricos e marcam os futuros. Uma boa notícia pouco conhecida: no Índice Global da Paz, Portugal mantém-se em 4.º lugar entre 163 países. Que se mantenha.

A avaliação do número de vítimas mortais das guerras que ocorreram durante milénios é impossível. No século XX foram cerca de 160 milhões. Na I Guerra Mundial 20 milhões; na segunda 60 milhões; e já no século XXI (até 2018) dois milhões. Só as epidemias matam mais. A percentagem de vítimas civis tende a aumentar: 14% na Grande Guerra; 67 a 70% na II Guerra Mundial; e estima-se em 90% nos conflitos posteriores. Felizmente, a exaltação da violência da guerra é agora muito contida, mas não foi assim no séc. XX e os civis sofreram como nunca antes. Os bombardeamentos aéreos a cidades tiveram como um dos objectivos desmoralizar a população pela destruição e número de vítimas.

Em Portugal, em 2022, quem tenha filhos e netos tem vivido com guerras no mundo, algumas vividas com o corpo, outras sentidas como um zumbido. Em 2022, uma nova guerra foi desencadeada pela Rússia na Ucrânia. Outras sirenes tocam. Dor e violência em países que foram dos que mais sofreram com conflitos no séc. XX. Não se compreende e parece que a memória prescreve ou atemoriza e as guerras continuam a parecer inevitáveis. Serão mesmo?

Os poetas e os filósofos não necessitam de estatísticas para lembrarem a guerra. A criança loura jaz no meio da rua… (Tomamos a Vila depois de um Intenso Bombardeamento, de F. Pessoa), O general entrou na cidade ao som de cornetas e tambores… Mas porque não há “vivas” nem flores? ... (O General, de J. Gomes Ferreira), Pensem nas crianças… (A Rosa de Hiroshima, de V. de Moraes). L. Tolstoi mostra em Guerra e Paz como se detonam guerras (ao tempo as Napoleónicas) com a exaltação da honra e do patriotismo e outros escritores descreveram o horror em cidades bombardeadas por aviões, como se Pompeia fosse (e.g. W. G. Sebald, autor de História Natural da Destruição). Resposta definitiva não tenho para o que Carl Jung designou de “epidemia psíquica” que se manifesta por vezes em delírio, como o de confundir paz com armistício e cobardia ou considerá-la ao serviço de um adversário. Acreditamos em executores do Mal que nos ameaçam permanentemente, na Terra e no Espaço. Mas também nas nossas mentes. O herói guerreiro é um dos doze arquétipos psicológicos que herdamos, segundo Jung. Donde a paz parecer não ser um estado natural e exigir uma permanente preparação para a guerra, para um vírus cuja vacina é armamento.

Em 1932, Einstein escreveu a Freud para lhe perguntar se era possível controlar a evolução da mente de modo a eliminar a pulsão da destrutividade. Em resposta, Freud escreveu que os instintos humanos balançam entre dois modos: o que tende a preservar e a unir, com amor; e o que tende a destruir e matar. Segundo Freud, as guerras só poderão ser evitadas com uma autoridade mundial (o mesmo escreveu B. Russell em 1972) e os impulsos agressivos devem ser desviados para que não se concretizem numa guerra. Como fazer? O filósofo I. Kant fez seis propostas, em 1795, no texto “A Paz Perpétua”. Uma das propostas: os “exércitos permanentes devem, com o tempo, desaparecer totalmente” para evitarem ameaçar com a sua prontidão (actualmente só dez pequenos países é que não possuem exército), mas reconhece que “uma coisa inteiramente diferente é defender-se e defender a Pátria dos ataques do exterior”. Lembramos a Ucrânia. Tal como Freud, Kant afirma que “a guerra não precisa de um motivo particular pois parece estar enxertada na natureza humana”. Precisamos de guerras para sobreviver? Os ministérios da Guerra passaram a ser de Defesa, mas a memória das barbáries do séc. XX tem contribuído para a paz no séc. XXI? É o momento certo para reflectirmos e tentar responder.

A ciência e a técnica (agora tecnologia) foram tendo a pretensão de tornar a guerra inútil ou impossível. Mas ambas tornaram-se aliadas e indispensáveis à guerra. Novas bombas, minas, mísseis, drones, robots e armas inteligentes autónomas estão aí. Uma indústria, um comércio a nível mundial que não rejeitamos e por vezes apreciamos: a Internet resulta da “guerra fria” e o microondas na cozinha vem da segunda guerra mundial. A guerra comunicacional mudou muito e parece acompanhar a guerra na Ucrânia em directo, entre verdades e não-verdades, por vezes com uma candura desconcertante. O tempo dirá os efeitos. O tempo da guerra é tempo propício para pensar num futuro de mais paz. É o que se fez durante a segunda grande guerra.

“As Guerras são inevitáveis?”, eis o tema de dois inquéritos de opinião nacional realizados em 1943 pela Universidade de Denver para avaliar a posição dos EUA na paz pós-guerra: 60% considerou que as guerras futuras seriam inevitáveis! Mas, após 1945, a ONU tem-se esforçado por ser um garante da paz através da sua Carta, das suas agências e da diplomacia. Em 2022 existem tribunais internacionais e um conjunto de instrumentos de direito humanitário relativos a crimes de guerra (sem prescrição) e a restrições ao uso de algumas armas, mas falta uma jurisdição mundial efectiva (aceite por todos os países) que seja dissuasora e com a capacidade de resolução justa de conflitos, sem guerra. Como acontece num Estado de direito relativamente aos homicídios! As armas nucleares detidas por nove países são ainda a principal e demoníaca dissuasão de guerras em que esses países se confrontem. Até quando?

A moral, a ética e a educação dos jovens para a erradicação dos conflitos armados parece ser fundamental. Perfilado, o tenente teu filho, despede-se – a última linha da última carta na obra As Cartas de Estalinegrado (as cartas dos soldados alemães que iam morrer): deveria ser lida pelos adolescentes? Ou então o livrinho A Guerra, de J.J. Letria, muito bem conseguido, para mais jovens. Guerra à Guerra era o título do livro, com fotografias assustadoras, de Ernest Friedrich publicado em 1924 e de um museu em Berlim para esse efeito. O autor foi perseguido, considerado um pacifista derrotista, e o seu museu transformado em local de torturas do grupo nazi SA. Eu tenho a esperança que a memória do horror na Ucrânia e de outras guerras possa contribuir para a paz perpétua como estado natural, em 2122 ou 2222 ou 2322. Uma utopia?»

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