Só mais algumas considerações.
Tratou-se de um evento substancialmente diferente do seu correspondente em Lisboa, que teve lugar no passado dia 20 de Março.
Desde logo para mim: enquanto que em Coimbra eu só conhecia uma pessoa (o José Dias), em Lisboa tanto os dois apresentadores (Nuno Teotónio Pereira e José Manuel Galvão Teles) como a maioria esmagadora das pessoas que constituíam a plateia tinham sido protagonistas das histórias comigo vividas e contadas no livro, ou com elas muito aparentadas.
Além disso, o próprio esquema da sessão foi diferente já que, em Coimbra, se dedicou uma hora a perguntas e respostas o que, na prática, proporcionou uma troca de impressões muito interessante e sem peias, que até testemunhos pessoais incluiu. Saí de lá mais esclarecida, nomeadamente sobre algumas diferenças de comportamento, tipicamente geracionais, entre os chamados «católicos progressistas» da década de 60 e os seus correspondentes deste início do séc. XXI. Talvez com uma linguagem um tanto cifrada para quem nunca andou pelas catolicidades (as minhas desculpas pela parte que me toca...), mas tratou-se de um serão muito gratificante.
Quanto às intervenções iniciais, a do José Dias, mais ou menos improvisada, teve o seu cunho pessoal característico, muito incisivo e com grande sentido de humor. Recordou vivências passadas, nomeadamente algumas especificamente relacionadas com Coimbra.
Rui Bebiano leu um texto que, pelo seu valor e precisão, aqui deixo na íntegra.
Intervenção na apresentação de «Entre as Brumas da Memória - Os Católicos Portugueses e a Ditadura», de Joana Lopes
Rui Bebiano
Todas as revoluções mostram o tempo que as antecedeu como um tempo de combate directo entre o bem e o mal, e a nossa historiografia do imediato pós-Abril não constituiu uma excepção. Durante um colóquio sobre o fascismo em Portugal organizado em Março de 1980, diversos intervenientes destacaram o conteúdo de classe e o carácter monolítico do regime salazarista. A oposição, pelo seu lado, surgia também essencialmente como um bloco, constituído, refiro a expressão tantas vezes repetida, pelos «comunistas e outros democratas». Num país retratado a preto e branco, parecia fácil distinguir os bons e dos maus.
Hoje sabemos que não era tanto assim. A partir do final da 2ª. Guerra Mundial, o poder passou a sofrer diversas clivagens, algumas delas irreversíveis, ao mesmo tempo que a oposição, após o desaparecimento dos «republicanos» da primeira geração, ia integrando grupos crescentemente diversificados. O PCP permanecia, sem sombra de dúvida, o mais activo, o mais organizado, e aquele em relação ao qual a repressão se mostrava menos condescendente, mas outros sectores de opinião iam ganhando autonomia e capacidade de intervenção. A sociedade, essa também se tornava cada vez mais complexa, particularmente no que respeita à definição da classe média em crescimento, de uma cultura juvenil que rejeitava os valores e a estética do regime, de um número crescente de trabalhadores que desprezavam o discurso corporativista, e de estudantes e intelectuais, muitos deles sem partido ou sequer militância, que em comum tendiam a demonstrar uma rejeição visceral do modelo político e cultural do Estado Novo.
A partir dos inícios da década de 1990, começou, todavia, a conhecer-se um pouco melhor esse país que se ia erguendo à margem do Portugal de Salazar e dos chamados «valores de Braga». Esse «outro Portugal» para o qual Deus, a Pátria, a Família, a Autoridade, o Trabalho, não constituíam valores absolutos, mas estavam condicionados a um tempo de mudança que transcendia até próprias fronteiras do país. A fase de decadência do Estado Novo, afirmada ao longo do período que mediou sensivelmente entre os anos de 1958 e de 1974, teve como pano de fundo o cenário complexo e em permanente construção que se afastava de uma vez por todas desse «doce viver habitualmente» que Salazar ambicionara instalar para todo o sempre.
Uma parte muito importante desse mundo é abordada – pela primeira vez de uma forma sistemática – neste livro de Joana Lopes. Refiro-me àquele sector que a esquerda de formação marxista designava então como os «católicos progressistas» – termo que os próprios rejeitavam por definir uma concepção do tempo histórico que não partilhavam – e cuja actividade, pela intervenção das censuras, permanecia invisível para a larga maioria dos portugueses.
Pelos inícios da década de 1970 – não se importarão que agora integre aqui um breve testemunho pessoal – eu pertencia a um grupo de jovens activistas da esquerda radical, que se julgava bastante bem informado e acreditava conhecer perfeitamente o país e os seus ritmos de mudança, mas para o qual, no entanto, os nossos «católicos progressistas» não passavam de um punhado pessoas, sem dúvida simpáticas, talvez tão idealistas como nós, mas que considerávamos um pouco excêntricas, sem os pés assentes na terra, e, acima de tudo, sem uma percepção clara dos caminhos do país e do mundo, que ainda considerávamos dotados de um sentido histórico inevitável.
E, todavia, este livro vem hoje mostrar-nos o quanto enganados andávamos nós.
Desde logo por revelar uma dimensão da esquerda católica que contraria a falsa ideia de acordo com a qual os seus activistas não passavam de um punhado de pessoas que apenas apareciam, como flores decorativas, em um ou outro momento do combate anti-salazarista. Olhamos para este livro e vemos como nele se aborda, por exemplo, o posicionamento dos católicos portugueses perante a presença de Paulo VI na Índia e em Fátima, na altura para consternação destes sectores renovadores, ou a intensa participação em episódios como a fundação da revista O Tempo e o Modo, a criação das cooperativas Pragma e Confronto, o debate em redor do encerramento do Concílio, o lançamento das publicações de opinião crítica Direito à Informação, Concilium, Cadernos Socialistas No. 3, Tribuna Livre e Cadernos GEDOC, a «tomada a partir de dentro» da Acção Católica, a participação portuguesa no II Congresso Mundial para o Apostolado dos Leigos, a comemoração do Dia da Paz em 1968, a agitação em redor do caso Padre Felicidade Alves, a revitalização do Centro Nacional de Cultura, a participação nas listas oposicionistas da CDE e da CEUD em 1969. Para além da vasta actividade em colóquios e reuniões de reflexão disseminada por diversos núcleos de padres e de leigos. Para não falar da resistência diária contra aqueles que, constituindo a maioria da hierarquia da Igreja católica portuguesa e mantendo uma relação de cumplicidade com o poder e com o catolicismo pós-tridentino, se manifestavam abertamente contra os ventos que sopravam do Concílio Vaticano II, sobretudo contra esse aggiornamento que pretendia afirmar um espírito de abertura à mudança, ao outro e à modernidade.
Observamos tudo isto e vemos como, afinal, os católicos que se opunham ao regime eram bem mais numerosos e encontravam-se envolvidos em iniciativas bem mais centrais e decisivas, e dotadas também de um maior vigor cultural, do que a informação censurada e o sectarismo de alguns deixavam perceber, mesmo a sectores com os quais o seu combate partilhava alguns dos objectivos.
Ao mesmo tempo, foi também absolutamente central o espaço ocupado por esta oposição católica na divulgação de informações e de pontos de vista relacionados com a actividade dos movimentos emancipalistas das ex-colónias e com a guerra colonial. Aqui, aliás, o seu papel terá sido mesmo decisivo e julgo poder afirmar que a construção de um movimento de resistência à guerra colonial junto dos estudantes universitários e dos intelectuais teria sido muito mais difícil sem o apoio, e muitas vezes a informação obtida por vias que se encornavam vedadas à maioria, que chegavam através da rede de ligações internacionais que esta esquerda católica então mantinha. Recordo apenas a importância dos Cadernos Necessários, publicados no Porto mas que circularam de mão em mão por todo o país, bem como os já mencionados Cadernos GEDOC, o Direito à Informação e o Boletim Anti-Colonial.
Outro aspecto saliente prende-se com a importância decisiva que, na construção de uma corrente crítica da posição dominantemente conservadora da igreja católica portuguesa e no seu distanciamento em relação ao regime tiveram as mulheres. O que é particularmente notável conhecendo nós o papel subalternos originalmente atribuído pelo cristianismo às mulheres e, em especial, o lugar de dependência que, na sociedade portuguesa de então, a esmagadora maioria delas ainda detinha. Bem sei que o essencial desta actividade se distribuía pelas regiões de Lisboa e do Porto, e que tal seria muito mais difícil, por exemplo, em Coimbra, onde, em 1961, em redor da «Carta a uma Jovem Portuguesa» se teceram considerações que ainda chocaram profundamente os sectores conservadores mas que seriam perfeitamente banais, mesmo nessa época, numa cidade como Lisboa. Ainda assim, é assinalável este destaque da participação feminina, da qual, naturalmente, Joana Lopes representa um excelente exemplo.
Aquilo que ela faz neste livro, a partir da sua própria memória, das recordações das pessoas que contactou e da investigação que foi desenvolvendo, foi, pois, relembrar a actividade intensa e subavaliada destes sectores.
Diz-nos a autora, logo de início, que considera não ser este um livro de História («não sou historiadora nem pretendo parecê-lo», escreve a dado passo), mas apenas «um livro de histórias». Não posso discordar mais da sua despretensão. Porque, de facto, procedeu a um levantamento completo das grandes causas e dos momentos centrais da luta, difícil e prolongada, na qual participou. Um trabalho que não se encontrava feito, que passa agora a estar disponível para todos os interessados, e que retira do silêncio aquilo que durante tempo de mais se manteve opaco. E a História, relembrando uma evidência, é feita em primeiro lugar de fragmentos do passado.
Por outro lado, ao assumir o carácter pessoal de muitos dos testemunhos dos quais se serviu, praticou um esforço de recuperação memorialista que é, cada vez mais, indispensável para o conhecimento da nossa história recente. Neste sentido – e integrando também, naquilo que este livro pode oferecer, os documentos transcritos em anexo – oferece-nos um conjunto de ferramentas de uma enorme utilidade. Como tive já a oportunidade de escrever, Joana Lopes pode não ser historiadora de profissão, mas este é, sem sombra de dúvida, um livro para a História.
Não quero terminar sem declarar uma expectativa. A história da esquerda radical em Portugal encontra-se ainda por fazer. Só agora estão a começar a aparecer os primeiros estudos, e ainda assim apenas no que diz respeito ao período que antecede o 25 de Abril. Os «anos de brasa» de 1974-1975 e o período de recuo no terreno das grandes utopias igualitárias que se lhe seguiu, continua, em larga medida, por redescobrir. E, todavia, muitos projectos, muitos caminhos, muitas discussões acaloradas, muitas reuniões até altas horas, muitas expectativas e desilusões se viveram então. Eles são parte integrante da nossa história recente e, tal como a parte do passado que este livro tão bem tratou, também eles devem escapar ao esquecimento. Sabendo nós quantos católicos e ex-católicos participaram desse universo – uma concepção igualitária, redentora e messiânica da sociedade havia-os aproximado de posições mais radicais – e sabendo nós também, pois di-lo neste livro, que Joana Lopes foi também um deles, não terá ela vontade de nos ajudar a restabelecer esse elo?
Este volume, nada nostálgico, mas emotivo, e por vezes optimista, agora incontornável para quem pretenda conhecer a complexidade da oposição política e cultural nos últimos quinze anos do Estado Novo, parece prometer-nos mais.