5.10.24

05.10.2012 – Castelos chineses e de pernas para o ar

 


Uma bela imagem de tempos de troika.

5 de Outubro em tempo da Pneumónica

 


Em outubro de 1918, Lisboa não tinha madeira para tantos caixões.

Uma longa descrição impressionante!

«A 5 de Outubro, a revolução republicana festejou-se dentro de portas. O Governo de Sidónio Pais proibiu manifestações e quaisquer ajuntamentos, "em atenção ao luto de muitos portugueses", como fez publicar nos jornais, e para evitar a propagação do vírus. Não se fez a tradicional parada militar na Avenida da Liberdade e mesmo a anunciada soirée no Coliseu dos Recreios, a favor da Assistência aos Mutilados da Guerra e com um programa condizente (exibição de filmes propagandísticos sobre a Primeira Guerra Mundial e um concerto da banda da Guarda Nacional Republicana), foi cancelada no dia 4. Em alternativa, Sidónio aceitou que se realizasse uma tourada no Campo Pequeno, à qual assistiu no camarote, a uma distância higiénica. (…)

A 7 de Outubro, no dia em que Thomaz de Mello Breyner escreveu no seu diário "vamos a ver se escapo", Espanha fechou as fronteiras e só autorizava a entrada no país àqueles que tivessem certificados sanitários previamente avaliados pelo cônsul espanhol em Lisboa. Ricardo Jorge, diretor-geral da Saúde, não gostou da atitude dos espanhóis, mas não se deteve em rebatê-la, preocupando-se antes em procurar locais de acolhimento para as centenas de doentes que entravam todos os dias nos hospitais. Foram também centenas os que morriam quase diariamente. Num só dia, fizeram-se 250 enterros; descobriram-se famílias inteiras mortas nas suas casas; a Direção-Geral dos Hospitais Civis de Lisboa pediu à câmara para que abrisse uma vala comum no cemitério dos Prazeres.»


Fonte: DN, 05.10.2018

Viva!

 



A redução da política às corridas de cavalos

 


«Um dos aspectos mais empobrecedores do comentário político – e por cá há mais comentário do que análise – é o tratamento da política como uma espécie de corrida de cavalos. Quem ganha e quem perde, quem sobe e quem desce, quem tem positiva ou tem negativa, quem tem boas notas e quem tem negativa. Muitas vezes este tipo de pódio para apostas é reforçado pela atribuição de notas como se fosse um exame escolar, um dos vários mecanismos de infantilização que circula numa sociedade em que se é “jovem” aos 35 anos. Do ponto de vista mediático esta simplificação resulta, mas, como hoje o contínuo político-mediático tirou autonomia à decisão política, é relevante analisar as perversidades que isso introduz no debate público, ou seja, na democracia.

Marcelo Rebelo de Sousa foi o introdutor deste tipo de comentário político, dando notas e tendo um papel activo naquelas secções dos jornais com setas para cima e para baixo. Esta simplificação analítica vinha em pacote com secções como “Gente” e com a cenarização, que introduzia uma ficcionalização da política, mas permitia uma enorme vantagem comunicativa.

A outra escola do jornalismo português, a do Independente, era precursora da deslocação para a direita de muita da comunicação social, mas com um forte elitismo cultural e uma afirmação de superioridade social. Estes dois últimos aspectos decaíram com o fim do jornal, mas o primeiro acentuou-se. A junção destas duas escolas acentuou o domínio da direita na comunicação social, trazendo a valorização do protagonismo individual e uma ecologia de temas que valorizava a competição, o psicologismo e o sucesso, em detrimento das questões sociais. A moda e o espírito de rebanho, muito influentes no jornalismo menos qualificado, fizeram o resto. Os pobres, o mundo do trabalho, as desigualdades eram os “feios, porcos e maus” da moda, face aos influencers e aos meninos bonitos das empresas, como Zeinal Bava.

O mecanismo das corridas de cavalos é de um enorme simplismo, porque nem sempre quem “sobe” ganha, ou quem “desce” perde, e nem sempre quem “sobe” ou “desce” está verdadeiramente a “subir” ou a “descer” fora do mundo mediático. A complexidade da acção política, a complexidade da sociedade, as diferentes “recepções” dos sucessos ou falhanços, desaparecem da interpretação, cada vez mais de forma e menos de substância.

As duas escolas tendiam a reduzir a política àquilo a que se chama protagonismo, que valoriza as personalidades, a liderança, e diminui e menoriza a acção colectiva. Aliás, de uma ponta à outra, este tipo de mecanismos competitivos do comentário favorece o individualismo e apaga a complexidade da acção humana e o “ruído do mundo” weberiano. O mundo das redes sociais assenta neste tipo de visão, a que acrescenta uma enorme capacidade de insulto, calúnia e uma indústria da maledicência, ou seja, é eficaz para o “mal”, a que se soma uma incapacidade analítica e um papel quase inexistente do “bem”.

A forma como todo o processo do Orçamento tem vindo a ser tratado é um exemplo deste tipo de mecanismos. Pode-se, como é evidente, fazer um balanço de ganhos e perdas, e é evidente que o PS perdeu porque ficou sem margem de manobra e foi obrigado, entre uma chuva de insultos, a tomar posições que não desejava (escrevo ontem, nunca se sabe o que pode mudar hoje).

Temos os homens e as mulheres, mas falta a paisagem. Embora se fale do “interesse nacional”, toda a gente percebe que é pura retórica e que essa coisa abstracta está de fora não só da actuação dos políticos como da cobertura mediática, que é o que verdadeiramente lhes interessa por razões eleitorais e de formação (a actual geração de dirigentes políticos nasceu e cresceu no contínuo político-mediático). O que falta no julgamento analítico do que se passa com o Orçamento inclui, para começar, o próprio Orçamento em si, que não se reduz às duas medidas polémicas. Quanto do que lá está corresponde a visões diferentes e, no limite, antagónicas da política, supostamente separada pela ideologia, sim, pela ideologia? Eram estas as medidas de identidade para o PSD e para o PS e em que modo a sua alteração, ou recusa, altera o sentido político e ideológico do documento? Quem beneficia ou perde com elas? Como fica a economia, a sociedade, a democracia e por fim, a política neste processo?

Tudo isto apareceu fragmentariamente, mas sempre ofuscado pelas personagens, Montenegro, Pedro Nuno Santos, o Presidente. Mesmo o PS e o PSD, já para não falar do Chega, do PCP, do BE, do Livre, do PAN, personagens menores, ao lado da CGTP, UGT, CIP e CAP, estão no cenário, mas não na acção. Terá sido mesmo assim? Duvido, o interior do PS teve um papel, representados por comentadores sem excepção moles perante o Governo, os “interesses” organizados estão sempre presentes, mas são cavalos invisíveis, que têm tanto mais poder quanto menos se fala deles.

Esta corrida acabou? Não me parece. Mas vai haver outras, pode-se sempre apostar e são um bom entretenimento.»


4.10.24

Jarros

 


Jarro de vidro camafeu. Cerca de 1900.
Thomas Webb & Sons.


Daqui.

Luis Sepúlveda

 


Seriam 75, hoje. Maldita Covid que o levou menos de dois meses depois de esta fotografia ter sido tirada.

O Sonho de Abril do Pina foi uma Barbearia

 


Sobre três homicídios em Lisboa, ler este texto de António Brito Guterres.

04.10.2009 - O dia em que Mercedes Sosa morreu

 


Mercedes Sosa nasceu no Noroeste da Argentina, em San Miguel de Tucumán, cidade onde em 1816 foi declarada a independência do país.

Quando a Junta Militar de Jorge Videla subiu ao poder e se foi tornando cada vez mais agressiva, Mercedes, considerada peronista de esquerda, foi detida durante um concerto em La Plata, em 1979, refugiou-se depois em Paris e em Madrid e só regressou a Buenos Aires, e ao magnífico Teatro Colón, em 1982.








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Precisa-se: nova figura de estilo sobre o Orçamento do Estado

 


«Ainda faltam quase dois meses para a votação final do Orçamento do Estado e eu já estou farto do Orçamento do Estado. A culpa é tanto de quem negoceia o Orçamento do Estado como de quem comenta a negociação do Orçamento do Estado. Quem negoceia apresenta todos os dias as mesmas estrategiazinhas, habilidades tácticas, vitimizações; quem comenta recorre a toda a hora às mesmas metáforas para analisar as estrategiazinhas, as habilidades tácticas e as vitimizações. Quem negoceia está disponível para discutir com sentido de Estado, maturidade e responsabilidade, até porque sabe que a vontade do povo é evitar novas eleições, mas infelizmente esbarra na inflexibilidade de todos os outros.

Quem comenta vê nas negociações uma telenovela com demasiados episódios, um casamento disfuncional, um jogo de póquer, e um daqueles filmes em que dois pilotos conduzem o seu carro na direcção um do outro para ver qual deles resiste mais tempo a dar uma guinada no volante. Fala-se muito da nossa pobreza económica mas raramente se refere a nossa pobreza estilística. As figuras de estilo ajudam a compreender a realidade, mas estas metáforas recorrentes não têm contribuído para ficarmos a perceber melhor o Orçamento do Estado. Talvez também não ajude o facto de o Orçamento do Estado ainda não ter sido apresentado. Tendo em conta que ainda falta quase uma semana para a sua apresentação, e uma vez que estamos em Portugal, o mais provável é que o Orçamento ainda não exista, sequer. Tenho esperança, por isso, de que as divergências se atenuem. É natural que as pessoas discordem umas das outras a propósito de coisas que não existem — como a história das guerras religiosas demonstra. Mas quando o Orçamento existir é possível que a discórdia esmoreça. Aliás, há um ponto no qual toda a gente parece estar de acordo. Quem será o maior beneficiário do Orçamento do Estado? Os jovens? Os reformados? As empresas? A resposta certa é, evidentemente, o Chega. Se PS e PSD se entenderem, ganha o Chega, que passa a ser o grande partido da oposição. Se PS e PSD não se entenderem, ganha o Chega, que passa a ter o poder de condicionar o Governo. Dos jogos do campeonato do mundo de futebol costuma dizer-se que são onze para cada lado e no fim ganha a Alemanha. No Orçamento do Estado é parecido: cada lado apresenta números e no fim ganha quem aprecia os anos 30 da Alemanha.»


Dêem os submarinos ao homem!

 


3.10.24

Debate na AR

 


Luís Montenegro dever ter tido uma má professora na 4ª classe. Depois do SERÁ-LHE de algum tempo, hoje saiu «a senhora deputada 𝐃𝐈𝐙𝐄𝐑-𝐌𝐄-𝐈𝐀».

Hoje há mais um assalto

 

«Um combate de boxe tem vários assaltos. E quando não há grande diferença entre os dois lutadores, é habitual que um ganhe alguma vantagem num determinado período, para no seguinte já ser o adversário a desferir o golpe mais vistoso. (…)

No assalto mais recente, foi o socialista quem se saiu melhor. Entrou no ringue em S. Bento, descartou o melhor que pôde os golpes do social-democrata (o chamado IRS Jovem e o corte transversal do IRC), contra-atacando com o que entende ser um melhor destino para mil milhões de euros. (…)

O que nos traz para o assalto de hoje, em que Luís Montenegro precisa de ganhar vantagem no combate pelo Orçamento. Resta saber se tentará forçar um KO (apresentando uma contraproposta que Pedro Nuno Santos não consiga encaixar) ou se opta por uma tática mais defensiva, à espera de uma vitória por pontos que garanta a sobrevivência do Governo.»


O velhíssimo legado de Costa para as Presidenciais: contas frugais, ordem da caserna

 


«Se há coisa que estamos a perceber por estes dias, com um foco permanente de intriga e destabilização em Belém, de que pode resultar a terceira dissolução do parlamento num só mandato, é que, no nosso sistema, o Presidente da República conta. E conta ainda mais quando as maiorias absolutas parecem cada vez menos prováveis.

A sondagem da Aximage sobre as presidenciais vale o que vale. Há, à esquerda e à direita, candidatos que se sobrepõem no mesmo espaço político, dividindo votos. Há candidatos improváveis e faltam os que nem nos passam pela cabeça.

Sem a possibilidade de António Guterres concorrer, por estar retido no fim do mandato de secretário-geral das Nações Unidas, não nos sobram figuras com estatuto para ocupar o lugar. Nem um militar que teve um papel central a revolução e na estabilização e que foi uma referência moral para o País, como Ramalho Eanes; nem uma figura com a centralidade política e histórica de Mário Soares; nem alguém com o perfil ético e o passado antifascista de Jorge Sampaio; nem alguém que tenha sido primeiro-ministro durante uma década marcante para a política portuguesa, como Cavaco Silva.

Odeio fazer esta conversa que pode parece saudosista, mas estamos a rapar o tacho. O melhor que temos são políticos que se destacam como comentadores e tecnocratas sem densidade política. Alguma coisa está a acontecer à nossa democracia para Santana Lopes ter mais currículo do que qualquer outro dos candidatos.

Mas há dois nomes que gostava de destacar, por parecerem inusitados mas serem bastante reveladores: os de Mário Centeno e Henrique Gouveia e Melo, que estão, aliás, bem colocados na sondagem.

É curioso que, oito anos depois do PS conquistar o governo e de uma aliança inédita à esquerda ter rompido um tabu de quase meio século, o candidato mais bem colocado à esquerda seja alguém sem currículo político anterior à sua chegada ao Ministério das Finanças, onde se destacou pela ortodoxia orçamental. A defesa das contas desequilibradas não é, como temos visto, característica da esquerda. Insistir em Sócrates, ignorando o contexto internacional, é má-fé. Mas mal está a esquerda quando a bandeira de que mais se orgulha, aquela que pode esfregar na cara da direita, é um excedente orçamental no meio de um Estado Social em crise e os recordes negativos em investimento público.

Já o primeiro lugar destacado para Gouveia e Melo é um excelente barómetro do estado da nossa democracia. O almirante não tem qualquer currículo político. Nenhum. A sua principal coroa de glória foi a competência na gestão da sua própria imagem numa função estritamente operacional, que normalmente deveria ser discreta, durante a pandemia.

Quando o cerco da oposição e do pior que existe nas corporações (com destaque para a inenarrável ex-bastonária dos enfermeiros) apertou, António Costa escolheu um militar, sabendo que o ancestral respeitinho pelas fardas teria efeito na comunicação social e na direita. Gouveia e Melo não tinha interesse político e isso protegia-o.

Como mostrei na altura, as ultrapassagens das filas de espera e pequenos escândalos, inevitáveis em momentos destes, não deixaram de acontecer ou diminuíram, até que o número de vacinas chegadas ao país não provocasse qualquer carência. Deixaram é de ser notícia. E o excelente ritmo de vacinação, que já era melhor do que os nossos parceiros europeus antes de chegar a marinha, também. Porque temos um Plano Nacional de Vacinação recente e muito eficaz e um bom Serviço Nacional de Saúde. Tão bom que vai resistindo ao desinvestimento e às campanhas privadas para o denegrir. Só que os portugueses preferem um Dom Sebastião a instituições que funcionam bem e foram erguidas por eles próprios. O gosto pelo homem providencial faz parte da nossa identidade.

Gouveia e Melo não tem apenas falta de currículo político, que também faltava a Sampaio da Nóvoa, por exemplo. Ninguém faz ideia o que pensa sobre os poderes constitucionais do Presidente e a forma como os deve usar. Ninguém conhece as suas posições sobre política internacional (para além de questões especificas ligadas à sua função), política económica, funcionamento da democracia. Se é de esquerda, de direita, de centro. Ninguém sabe o que pensa sobre qualquer coisa politicamente relevante. Nem podia saber, porque a sua carreia o impede de ter uma voz política ativa. E essa parece ser uma das suas vantagens. Neste tempo de crise de confiança, os cidadãos gostam tanto mais de um político quando menos souberem o que ele pensa. A “postura” basta.

De Gouveia e Melo, sabemos que é vaidoso e que tem usado, de forma inédita, um cargo de chefia militar para se promover, rumo ao porto da política. Teríamos de recuar aos anos 70 para ver militares a ocuparem a cargos políticos de topo. Diríamos que é de outro tempo. Mas, segundo a sondagem, o facto de Gouveia e Melo ser militar é valorizado pelos eleitores. Ele não é bom candidato apesar de ser militar, como seria normal no tempo civilista que vivemos. Ele é bom candidato porque a farda lhe dá autoridade, apesar de nem sequer estarmos a falar de um herói de guerra, como aconteceu depois da II Guerra em várias democracias.

Mas a ideia de que termos um chefe de Estado militar seria coisa estranha para a Europa pode resultar de algum otimismo em relação ao futuro. Podemos ser apenas vanguardistas. O saudosismo por este tipo de autoridade vai muito para lá das nossas fronteiras e da extrema-direita, que normalmente aprecia este perfil. Vivemos um tempo de recuo. Em todo o lado.

A parte mais interessante de tudo isto, é que um e outro, Centeno e Melo, eram desconhecidos até António Costa os ter ido buscar á Academia e às Forças Armadas. Nos dois casos, pediu-lhes emprestada autoridade. A Mário Centeno, a autoridade técnica perante uma Europa que desconfia de governos mais à esquerda. A Gouveia e Melo, a autoridade política de alguém vindo fora dela, com a farda que oferecesse confiança a um povo que acha que o assalto de Tancos foi culpa de um ministro, não das Forças Armadas.

Olhando para os resultados do conjunto dos candidatos (segundo, terceiro e quarto são de direita), até se percebe que o almirante entra bem no eleitorado de esquerda. O que torna ainda mais relevante a ironia destas serem as duas personagens que Costa deixa como legado. Um representa as contas frugais, o outro a ordem da caserna. Faz pensar que a mitologia do poder mudou pouco, seja qual for a liderança.»


Três anos de moedas

 



2.10.24

Copos

 


Copo prateado «Glass Scarabees», besouros esmaltados com cabeça de rinoceronte e vidro opalescente soprado.
René Lalique.

Daqui.

02.10.1968 – México: «Não queremos olimpíadas, queremos revolução»

 


No dia 2 de Outubro de 1968, na Plaza de las Tres Culturas (Tlatelolco), ao Norte da cidade do México, terminou um movimento dos estudantes mexicanos que durou 146 dias. Aproveitando a realização dos Jogos Olímpicos na capital do país, tinham procurado chamar a atenção do mundo para a corrupção do poder e o autoritarismo do Partido Revolucionário Institucional, no poder durante mais de setenta anos. «Não queremos olimpíadas, queremos revolução», gritava-se entre muitos outros slogans.

Acabou por ser o único movimento estudantil da época que terminou com uma matança brutal. Ainda hoje não se sabe exactamente o número de mortos que varia entre os 44 «documentados» e os mais de 300 reivindicados pelas famílias. E os responsáveis continuam impunes.




Dez dias depois começaram os Jogos Olímpicos que viriam a ficar na História pelo célebre Black Power Salute.


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José Cardoso Pires chegaria aos 99


 

Cardoso Pires nasceu em 02.10.1925 e morreu em 1998. 

Não vou recordar tudo o que dele é conhecido como um dos nossos grandes, grandes escritores do Século XX, mas sim que tive a sorte de o conhecer e que, pelo mais puro dos acasos, almoçámos juntos perto do Largo do Carmo, no dia 25 de Abril de 1974. 

Podia descrever os sustos que apanhávamos, nesta casa, quando ele (que nunca se entendeu bem com automóveis) saía a guiar o carro a 20 km à hora, depois de larguíssimas horas de conversa e de uns tantos copos de wkisky; como se comia bom peixe num barracão que já não existe, em plena praia da Caparica, «Tricana» de seu nome; como nunca esquecerei o andar onde se exilava para escrever, frente ao mar, e como me impressionavam as longas tiras de papel onde escrevinhava palavras, pequenas frases e trocadilhos, que iam saindo de conversas mais do que banais, para mais tarde os utilizar. E mil outras recordações que me reaparecem hoje num filme a preto e branco, neste triste Outono  que vamos vivendo.


Israel: nunca a liberdade de um corrupto custou tantas vidas

 


«Há décadas que a guerra entre Israel e a Palestina não é uma guerra de fronteiras. É uma guerra colonial. Porque a relação é colonial. Basta olhar para o que se passa na Cisjordânia. Como é habitual nas relações coloniais, a insurgência é terrorista, a violência do Estado contra ela é defesa legitima em nome da segurança das populações. Atentados palestinianos são terror, que nenhuma pessoa civilizada pode deixar de condenar. Pagers a explodir em supermercados e a matar civis e crianças que estejam perto do operacional, são uma operação que, independentemente de algumas críticas éticas, não se pode deixar de admirar pelo engenho. O colono é racional na sua guerra à distância, o colonizado é selvagem na sua barbárie sangrenta.

Conheço o Líbano, assim como conheço Israel, Gaza e a Cisjordânia. Até assisti, pela triste coincidência de estar na Síria em 2006, à chegada de milhares de aterrados fugitivos da última guerra entre o Líbano e Israel. Tem, como toda a região, demasiada história para tão pouco espaço. Ficando-me pela história recente, a sua diversidade religiosa correspondeu sempre a uma estratificação social que ajuda a explicar o crescimento do Hezbollah entre os xiitas. E a corrupção endémica foi pasto para um Hezbollah que cumpriu o papel de um Estado social, confessional e autoritário em boa parte do território. A ocupação do sul do país, por Israel, entre 1982 e 2000, fez o resto.

A estes grupos religiosos corresponderam, de forma menos linear do que se pensa e com alianças improváveis, a influências externas – do Irão, da Arábia Saudita, da Rússia, dos Estados Unidos ou de Israel – que deixaram marcas em guerras civis por procuração. Com a proteção ativa de soldados israelitas, as milícias maronitas (cristãs) mataram mais de mil civis (incluindo crianças) palestinianos, em 1982, nos campos de refugiados de Sabra e Chatila, num massacre que pode ser comparado ao que sucedeu a 7 de outubro, não tendo levado a igual reação militar e internacional. Mesmo nestes meses, o número de mortos libaneses é muitíssimo superior às baixas israelitas. 

Usando o argumento da inviabilidade do Estado do Líbano, que Israel sempre aproveitou e alimentou, o ministro da Diáspora e do Combate ao Antissemitismo defendeu que parte do sul do país deveria ser anexada porque as fronteiras existentes não fazem sentido. Este é o padrão: usando o argumento da segurança, criam-se “zonas tampão” que depois são anexadas e por fim povoadas, num processo de contínua expansão. Foi feito nos Montes Golã, que era território sírio, e é feito diariamente na Cisjordânia.

É interessante, por isso, ouvir líderes israelitas e seus aliados falarem de um país que luta pelo seu direito à existência (que tem) e de como outros não aceitam a solução dos dois Estados, enquanto Israel expande o seu território e torna cada vez mais inviável a existência do Estado da Palestina. Quem acredita em dois Estados promove a construção de colonatos, radicando 700 mil colonos em terra alheia? O risco existencial real, aquele que é palpável, é da Palestina. É um caso em que a retórica choca de frente com a realidade.

O ministro dos Negócios Estrangeiros da Jordânia (país que tem mantido boas relações com Israel), Ayman Safadi, respondeu, na última sexta-feira, à afirmação de Netanyahu de que Israel estava cercado por inimigos: "57 países árabes-muçulmanos querem paz; dentro do contexto do fim da ocupação de Israel e da criação de um Estado Palestiniano". Mas não é isso que Nethanyau procura. A sua resposta à proposta de cessar-fogo no Líbano, apresentada por Biden e Macron, foi matar Nasrallah e invadir o Líbano. Não faltam planos de paz. Nethanyau não tem nenhum. Porque recusa, de facto, uma solução de dois Estados. E, assim sendo, depois de fazer a guerra, só tem mais guerra para oferecer.

Se Nethanyau quisesse a paz começava hoje uma negociação para garantir dois Estados, aceitando o desafio das nações vizinhas, em vez de provocar o caos à sua volta, passando de uma guerra para outra. Elas podem enfraquecer os inimigos por uns tempos, mas deixam um rasto de ressentimento cujos efeitos virão a ser sentidos por milhares de inocentes e, provavelmente, durante décadas. Enfraquecer a OLP deu a origem ao Hamas. Ocupar o sul do Líbano deu origem ao Hezbollah. Não é fácil imaginar que monstros nascerão deste ano de carnificina.

A guerra de Israel com o Líbano é a continuação do que se passa em Gaza. O silêncio do Ocidente, a que arrogantemente costumamos chamar “comunidade internacional”, perante o genocídio e a violação desabrida do direito internacional, que teve o seu momento máximo na presença de um criminoso de guerra no Congresso dos Estados Unidos, entrega a resistência moral à ofensiva israelita ao Irão e ao Hezbollah. A ausência de qualquer referencial moral – ele fica-se, por estes dias, pelos gritos solitários de António Guterres – dá força a política a um e a outro. Até porque, perante o comportamento de Israel, começa a ficar difícil falar de “terrorismo” para distinguir uns dos outros. As guerras em Gaza e no Líbano são a mesma. Não são, na forma como Netanyahu as faz, guerras pela segurança de Israel – os ventos semeados neste ano serão colhidos em mortíferas tempestades pelas próximas gerações de israelitas, palestinianos e libaneses, para ficar pelos diretamente envolvidos.

Esta também nunca foi uma guerra para recuperar os reféns, para os quais Netanyahu não se poderia estar mais nas tintas, como a maioria dos israelitas já percebeu. A cada possibilidade de um acordo negociado em Gaza, o governo israelita inventou novas condições para boicotar uma solução pacifica. E quando a guerra de Gaza perdeu a “animação” ofensiva, Netanyahu teve de abrir uma nova frente, porque a guerra é a sua fuga em frente.

Nem a operação dos pagers nem o assassinato de Nasrallah são reações a seja o que for. São operações precisaram de anos de preparação. Com cem mil militares, armamento e a natureza de um exército quase regular, o Hezbollah pode ter ficado enfraquecido, mas recuperará. Com a importância que Nasrallah tem no mundo xiita, o objetivo de Netanyahu era outro: puxar o Irão para um envolvimento direto guerra, coisa que tenta, uma e outra vez, nos últimos meses. E que esse envolvimento trouxesse os EUA para dentro do turbilhão. O que Netanyahu procurava era o caos que o salvasse.

Está a conseguir o que desejava, pondo o seu país, a região e o mundo em enorme perigo. Haverá uma resposta de Israel aos bombardeamentos de ontem e depois uma resposta do Irão e depois uma resposta... E a guerra vai-se alastrando. Netanyahu só precisa de cinco semanas disto, sonhando com a vitória de Trump, o amigo que partilha com Putin – os dois principais desestabilizadores deste tempo. Netanyahu não procura a segurança de Israel, foge da sua própria prisão. Porque sabe que basta uma pausa no período necessariamente excecional da guerra – a contestação da oposição voltou a amainar com esta nova frente –, para ele cair. E, caindo, espera-o o julgamento que tem evitado de todas as formas, incluindo uma reforma da justiça que os israelitas contestaram na rua. Nunca a liberdade de um corrupto custou tantas vidas. Nunca pôs em perigo um planeta inteiro.»


1.10.24

Dia Mundial da Música

 



E hoje até é terça-feira…

Crime no dia 29 de Setembro

 

«O Código Penal é claro. Participar em organizações ou atos que promovam a segregação ou atos de violência contra indivíduos ou grupos em função da sua origem étnico-racial, origem nacional ou religiosa, cor, nacionalidade, ascendência, território de origem ou religião é punível com pena de prisão de um a oito anos. A difamação e injúria de pessoas ou grupos em função das mesmas condições é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.

A manifestação promovida pelo Chega no dia 29 de setembro é, pois, um caso, a meu ver inequívoco, de instanciação destes crimes. A atividade intensa de alguns deputados do Chega nas redes sociais, com principal destaque para Pedro Frazão e Rita Matias, tem todas as características que cabem, salvo melhor opinião, na definição destes crimes. Não estamos no domínio da simples opinião ou da liberdade de expressão. Estamos no enquadramento cristalino da definição destes crimes inscrita no Código Penal.»

João Costa

Seis anos sem Charles Aznavour

 


Nada de menos inesperado do que foi receber a notícia de que tinha morrido alguém com 94 anos. Mas, sem saber exactamente porquê, há muito que mantinha uma enorme cumplicidade com Aznavour, reforçada, e muito, desde que visitei, há dez anos, a sua querida Arménia.

Nasceu e morreu em Paris, francês mas de origem arménia e terá sempre a «nacionalidade» dos seus pais emigrantes. É um ícone nacional, não só pelo seu êxito como cantor, mas também e talvez sobretudo, pela sua acção após o terramoto de 1988. Em 7 de Dezembro de 1988, às 11:41, a terra tremeu, causando dezenas de milhares de mortos e centenas de milhares de sem abrigo. Aznavour percorreu o país pouco depois, criou uma Fundação específica para o efeito, que reuniu mais de 150 milhões de dólares, tem estátuas (vi uma em Gyumri, a cidade mais arrasada em 1988 e onde a temperatura chega a atingir 45º negativos) e o governo doou-lhe uma casa que avistei em Yerevan, onde funciona a referida Fundação. Os arménios não esquecem.

Ficam aqui dois vídeos relacionados com a Arménia e «La Bohème», a canção preferida por Aznavour, como repetiu dois dias antes de morrer:






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Eu não sou racista, mas...

 


«Os imigrantes são o bode expiatório. Eles são responsáveis pelos preços exorbitantes das casas, pelo fecho das urgências de obstetrícia e pediatria, pelos índices explosivos de criminalidade, pelos incêndios das últimas semanas e por tudo o que vier a acontecer de mau daqui em diante. Mas não são todos. Uns são mais responsáveis do que outros.

Claro que ninguém quer deportar imigrantes alemães, ingleses ou norte-americanos, mas apenas aqueles que têm pele mais escura e uma cultura mais distante da nossa. São esses que representam a noção de perigo e de insegurança.

A extrema-direita substituiu o clássico anti-semitismo pela rejeição dos imigrantes. Já não compensa amaldiçoar os judeus, que até têm em Israel um governo recheado de racistas e supremacistas brancos.

O que pretende esta extrema-direita é concentrar-se na islamofobia, acrescentar-lhe um pozinho de cristianismo, e responsabilizar os imigrantes por todos os males sociais. “A raiva contra os imigrantes”, escrevia Soledad Gallego-Díaz no El País, “está a tornar-se tão normalizada como o anti-semitismo da década de 1920.”

É essa raiva que une a extrema-direita que governa Itália e Hungria, que faz parte de coligações na Croácia, Eslováquia, Finlândia e Países Baixos ou que sustenta o executivo sueco. E que pode vir a governar a Áustria, caso o FPÖ consiga formar ou participar num futuro executivo.

Duas semanas antes das legislativas deste domingo, na Áustria, a mesma Soledad Gallego-Díaz recordava que o FPÖ, liderado por Jörg Haider, que não escondia de ninguém a sua tendência nazi, só não participou de um governo austríaco de coligação, há 24 anos, porque a União Europeia ameaçou com restrições caso isso acontecesse.

O FPÖ de Herbert Kickl manteve o vocabulário nazi, venceu as eleições e a ameaça europeia não se repetirá caso seja governo. Uma das suas bandeiras é a “remigração”, a expulsão para os países de origem, versão do “vai para a tua terra”, que partilha com a AfD ou com o Chega.

A retórica da expulsão e deportação de imigrantes banaliza-se. Donald Trump (com origens austríacas) promete bater recordes nesta matéria; Rishi Sunak, o ex-primeiro-ministro do Reino Unido (de origens indianas), queria a tudo custo, e ao arrepio da lei, exportar os imigrantes indesejados para o Ruanda; a Alemanha fechou fronteiras em desespero com os últimos resultados do partido pró-nazi, e por aí fora.

A retórica banaliza-se e contamina uma esquerda oportunista, em países onde o tema é mais candente. Na Dinamarca, a primeira-ministra Mette Frederiksen lidera um governo de centro-esquerda que também tem um plano de deportação de imigrantes para o Ruanda — candidato ao estatuto de campo de concentração de cidadãos expulsos da Europa —, sem que isso lhe perturbe a popularidade.

Na Alemanha, Sahra Wagenknecht, filha de um iraniano e de uma alemã, que tinha militado no partido comunista da RDA, em vários grupos marxistas-leninistas e que esteve na origem da criação do Die Linke, fundou um partido com o seu nome e que é tão anti-imigração quanto a Alternativa para a Alemanha (AfD), mesmo que sem a componente racista.

Resultado: o BSW (Buendnis Sahra Wagenknecht) ficou em terceiro lugar nas eleições na Turíngia e na Saxónia, à frente do Die Linke.

Deportação, “remigração”, “nem mais um, nem mais um, nem mais um” – foi isso que ouvimos neste domingo, entre a Almirante Reis e o Rossio, em Lisboa, quando milhares de pessoas seguiram o oportunismo do Chega e fizeram eco das palavras de ordem anti-imigração e pela reconstrução de Portugal.

Ironicamente, fizeram-no no mesmo dia em que este jornal revelava que as contribuições dos cidadãos estrangeiros subiram 44% no ano passado, a mais elevada de sempre, que os empresários consideram que travar a imigração seria “devastador” para a economia ou que a criminalidade desceu nos municípios onde o número de imigrantes mais aumentou.

Vai ser necessário repetir até à exaustão que os imigrantes não roubam emprego — a economia precisa de mais imigrantes para crescer —, que não vivem à custa do Estado — contribuem mais do que beneficiam e acabam por ser vítimas da sua burocracia — e que não cometem mais crimes do que os nacionais.

Não é a imigração que está descontrolada. É o Estado que está aquém no seu papel de acolhimento e de integração, para o bem de todos, e um partido que se alimenta da mentira para ganhar votos à custa do ódio a terceiros.

Nestes tempos em que Hitler é uma tendência no TikTok, e em que os neonazis tentam torná-lo uma figura simpática, com vídeos gerados por inteligência artificial, é possível ser-se racista e xenófobo sem merecer qualquer condenação social ou política. Quem diria que um dia o discurso anti-imigração mais boçal seria eleitoralista?»


30.9.24

Mais um vaso

 


Vaso de vidro incolor com sobreposição rosa e violeta, gravado e polido a fogo e decorado com «Sweet Williams». Cerca de 1900.
Emile Gallé.

Daqui.

30.09.1935 – Porgy & Bess

 


Porgy & Bess estreou-se na Broadway, em Nova Iorque, há 89 anos, com um elenco formado unicamente por elementos afro-americanos – uma decisão mais do que ousada para a época, que retardou o seu êxito até 1976. 

«Summertime» é certamente o trecho mais conhecido da ópera, mas há muitos mais. 








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Entregar a liderança da oposição ao Chega?

 

«Não nos enganemos: um acordo entre socialistas e executivo no Orçamento iria necessariamente prejudicar o PS, tornando-o uma conveniente muleta do Governo.

O maior dos riscos seria o de entregar, efectivamente, a liderança da oposição ao Chega, que passaria quatro anos (se o PS desse a mão ao Governo durante toda a legislatura) a gritar contra “os partidos do sistema” que se “mancomunam” e outras magnificências deste calibre.»


Se Montenegro não deixar cair o IRS Jovem, quer ir a eleições

 

@A. Cotrim

«Não há como não perceber a clareza com que Pedro Nuno Santos iniciou as negociações para o Orçamento de Estado. Começou por dizer, como é habitual em processos negociais, quais são as suas linhas vermelhas. Há duas medidas que não podem contar com a sua anuência: o novo modelo de IRS Jovem e descida cega do IRC. O PS é contra elas pela sua iniquidade, ineficácia e irreversibilidade.

O IRS Jovem é injusto entre gerações. Como defender que um trabalhador de 36 anos com as mesmas funções, competências e qualificações ganhe muito menos do que o seu colega com 35? As empresas resolverão esta injustiça, insustentável dentro da mesma organização, baixando o salário bruto de entrada, garantindo assim salários líquidos iguais para quem está na mesmíssima situação. O que quer dizer que, para a empresa, será financeiramente mais interessante ter um trabalhador com menos de 35 anos. O que fará dos 35 anos os novos 50, sendo sempre preferível substituir um trabalhador mais velho por outro mais novo, agravando um dos principais fatores para os jovens emigrarem: a falta de perspetiva de carreira.

O IRS Jovem também é socialmente regressivo entre os jovens, como explicaram várias consultoras. Abaixo de 1500 o sistema atual é melhor. A poupança para quem ganha pouco é mínima ou nula, a para quem ganha 6000 euros é de 20%. Seria das medidas mais regressivas que um governo alguma vez teria aplicado. Modelar isto? É ficar com o IRS Jovem que existe, que é a versão modelada do que se pretende – também com resultados nulos em relação à emigração, já agora.

É totalmente ineficaz para evitar a emigração. Os jovens emigram para países onde o salário liquido é bem maior do que o nosso salário bruto. Isto só se muda com a alteração do nosso perfil de especialização económica. Não se seguram jovens engenheiros apostando no turismo, onde se empregam imigrantes menos qualificados. Os jovens emigram por ausência de perspetivas de carreira, baixos salários ou inadequação das empresas à especialização deste tempo, não por causa do IRS. Emigram, aliás, para alguns países onde vão pagar mais IRS do que aqui.

Como explicou o Conselho de Finanças Públicas, é uma medida ruinosa, que conseguiria a proeza de, apesar da situação económica previsivelmente favorável, trazer de volta o défice, em 2026. E é uma medida muito provavelmente inconstitucional, pela desigualdade fiscal com base na idade e não na carreira cinsmtrubutiva.

Quanto ao IRC, a sua descida cega e sem objetivos não passa de uma fezada sem qualquer base, que resultará numa perda fiscal que só por coincidência corresponderá a um aumento da receita. Como já explicou Susana Peralta, o IRC baixou em 2014 e 2015, a receita só aumentou em 2015 e isso não aconteceu por causa da diminuição do IRC, mas apesar dela. Portugal saía de uma crise prolongada e as empresas a aumentarem os seus lucros, o que levou ao crescimento da receita fiscal. Não há nenhuma relação de causalidade verificável. E é muito dinheiro. E sempre que falam dos efeitos desta descida – da criação de emprego ao reinvestimento – dão razão à critica que lhe é feita: o IRC só pode ser eficaz se for direcionado.

Porque são linhas vermelhas? Por ser de muitíssimo difícil reversão. Isto é mais verdade no IRS Jovem do que no IRC. É politicamente impossível para qualquer governo voltar a triplicar os impostos para quem tenha menos de 35 anos, tenha sido essa redução sentida pelo trabalhador ou pela empresa. Pelo contrário, a pressão vai ser oposta: quando qualquer contribuinte passar dos 35 anos para os 36 o brutal salto fiscal vai-se sentir no seu bolso ou no da empresa. Os mais velhos vão começar a pressionar, por uma questão de justiça, para impostos iguais. Isso não se fará subindo brutalmente impostos dos mais jovens, só possível em momentos de enorme e crise, mas baixando os dos restantes. O que implica uma redução de tal forma significativa do IRS que o Estado Social se tornaria inviável e muitíssimo menos progressivo.

Esta medida é um Cavalo de Troia para uma mudança radical, permanente e estrutural do nosso sistema. Se o PS a viabilizar por cálculos circunstanciais estará a condenar o futuro do país e do Estado Social muito para lá deste governo. Seria irresponsável.

Apesar do efeito e natureza semelhantes, não estou convencido que o mesmo se possa dizer do IRC (que apenas beneficiará grandes empresas que não precisam de qualquer apoio público e não atrairá qualquer outra), pelo menos com a mesma intensidade. Nem que o PS tenha muito espaço de manobra político para fazer uma campanha em torno do IRC como razão para a queda do governo.

Embrenhado na tática, o governo haverá de propor um novo modelo do IRS Jovem, mantendo o essencial do que o torna impossível de aprovar. Ou tentará integrar parte das propostas apresentadas como proposta de destino a dar a este dinheiro, ignorando que se trata de uma alternativa. Quem esteja a olhar para isto de boa-fé perceberá que tudo é muito simples: se cair o IRS Jovem, dificilmente não teremos Orçamento de Estado. Se cair o IRC ele já está viabilizado. Se isso não acontecer, sabemos que a AD quer eleições.

Com a ideia absurda que o chumbo de um Orçamento de Estado passa a corresponder a uma moção de censura – só aconteceu em 2020, não exigindo uma segunda proposta e permitindo que Costa escolhesse o momento que voltava às urnas –, o Presidente cria uma situação de crise permanente. Vivemos metade do ano de 2022 com duodécimos e é falso que o PRR não possa ser executado.

Mais: se não houver OE, a marcação de eleições não resolve o problema. Elas ainda terão de se realizar e tem de se esperar pela posse de governo e pelo novo OE. Até lá, ficaremos em.... duodécimos. Não sendo provável que haja uma maioria absoluta (da AD ou com a IL), voltaríamos ao mesmo, só tendo perdido mais uns meses no meio. Se as preocupações do Presidente são reais, a melhor possibilidade que tem, em caso do chumbo, é trabalhar na negociação de uma nova proposta de OE, sem eleições. Tendo feito varias propostas, Pedro Nuno Santos só fez de duas, entre as centenas que constarão no OE, determinantes. Nada, nem mesmo no SNS , que o governo quer mesmo privatizar, impede a viabilização. E o fim destas duas medidas até significaria mais margem orçamental para o governo decidir outras. Montenegro até sabe que só uma delas torna a aprovação do OE inviável. Nem o governo nem ninguém acredita que o programa do governo é impraticável sem o IRS Jovem. Dizer que esta medida não pode cair é que é ser inflexível.»


29.9.24

Termas




Banhos termais do Hotel Gellért, Arte Nova, Budapest, 1912-1918.

Daqui.

E quanto a IRS Jovem

 


«Sabes que o governo está em apuros quando tens a Ângela Silva e o Aguiar-Conraria a desfazer a proposta do IRS jovem.»

Créditos do vídeo e desta afirmação para Luís Vargas no Twitter.

Samora Machel

 


Seriam 91, hoje.

Um país sem teto

 


«Enquanto os líderes partidários se desencontram na discussão do Orçamento do Estado e os comentadores se desdobram em teorias sobre o próximo presidente da República, o país real saiu ontem à rua, provando que existem dois mundos no mesmo retângulo ibérico. Há um claro divórcio entre as prioridades de governantes e governados, que se desligam do teatro político e gritam por um teto, direito consagrado na Constituição.

De sociedade justificadamente preocupada com as pessoas em situação de sem-abrigo, passamos na última meia dúzia de anos a direcionar também a atenção para a imensa maioria que não consegue sair do abrigo da casa dos pais para poder constituir família, um obstáculo ingrato e injusto que, noutra dimensão, afeta na mesma medida os mais velhos, empurrados para fora das cidades, onde as rendas, as poucas que restam, são proibitivas, em contraste com a fartura de alojamento destinado a turistas.

Sucessivos governos, incapazes de resolver o problema, debitam medidas de apoio à natalidade, como se a tal maioria jovem arriscasse ao acaso e sem casa no sentido de resolver o problema demográfico de um país envelhecido. A mais recente tentativa de dar aos jovens condições mais favoráveis no acesso ao crédito ainda não saiu do papel e apenas serviu os interesses da especulação imobiliária - os últimos registos sobre o aumento dos preços da habitação comprovam-no. Dirão os liberais que é o mercado a funcionar. Talvez. Mas estamos perante uma situação limite. E é nestas alturas que devemos exigir a intervenção do Estado. Sem dogmas ideológicos. Com regulação. Se for preciso, através da imposição de tetos máximos nas rendas e no preço das casas, porque a alternativa, a ausência de esperança por um teto, é dramática.»