«Há décadas que a guerra entre Israel e a Palestina não é uma guerra de fronteiras. É uma guerra colonial. Porque a relação é colonial. Basta olhar para o que se passa na Cisjordânia. Como é habitual nas relações coloniais, a insurgência é terrorista, a violência do Estado contra ela é defesa legitima em nome da segurança das populações. Atentados palestinianos são terror, que nenhuma pessoa civilizada pode deixar de condenar. Pagers a explodir em supermercados e a matar civis e crianças que estejam perto do operacional, são uma operação que, independentemente de algumas críticas éticas, não se pode deixar de admirar pelo engenho. O colono é racional na sua guerra à distância, o colonizado é selvagem na sua barbárie sangrenta.
Conheço o Líbano, assim como conheço Israel, Gaza e a Cisjordânia. Até assisti, pela triste coincidência de estar na Síria em 2006, à chegada de milhares de aterrados fugitivos da última guerra entre o Líbano e Israel. Tem, como toda a região, demasiada história para tão pouco espaço. Ficando-me pela história recente, a sua diversidade religiosa correspondeu sempre a uma estratificação social que ajuda a explicar o crescimento do Hezbollah entre os xiitas. E a corrupção endémica foi pasto para um Hezbollah que cumpriu o papel de um Estado social, confessional e autoritário em boa parte do território. A ocupação do sul do país, por Israel, entre 1982 e 2000, fez o resto.
A estes grupos religiosos corresponderam, de forma menos linear do que se pensa e com alianças improváveis, a influências externas – do Irão, da Arábia Saudita, da Rússia, dos Estados Unidos ou de Israel – que deixaram marcas em guerras civis por procuração. Com a proteção ativa de soldados israelitas, as milícias maronitas (cristãs) mataram mais de mil civis (incluindo crianças) palestinianos, em 1982, nos campos de refugiados de Sabra e Chatila, num massacre que pode ser comparado ao que sucedeu a 7 de outubro, não tendo levado a igual reação militar e internacional. Mesmo nestes meses, o número de mortos libaneses é muitíssimo superior às baixas israelitas.
Usando o argumento da inviabilidade do Estado do Líbano, que Israel sempre aproveitou e alimentou, o ministro da Diáspora e do Combate ao Antissemitismo defendeu que parte do sul do país deveria ser anexada porque as fronteiras existentes não fazem sentido. Este é o padrão: usando o argumento da segurança, criam-se “zonas tampão” que depois são anexadas e por fim povoadas, num processo de contínua expansão. Foi feito nos Montes Golã, que era território sírio, e é feito diariamente na Cisjordânia.
É interessante, por isso, ouvir líderes israelitas e seus aliados falarem de um país que luta pelo seu direito à existência (que tem) e de como outros não aceitam a solução dos dois Estados, enquanto Israel expande o seu território e torna cada vez mais inviável a existência do Estado da Palestina. Quem acredita em dois Estados promove a construção de colonatos, radicando 700 mil colonos em terra alheia? O risco existencial real, aquele que é palpável, é da Palestina. É um caso em que a retórica choca de frente com a realidade.
O ministro dos Negócios Estrangeiros da Jordânia (país que tem mantido boas relações com Israel), Ayman Safadi, respondeu, na última sexta-feira, à afirmação de Netanyahu de que Israel estava cercado por inimigos: "57 países árabes-muçulmanos querem paz; dentro do contexto do fim da ocupação de Israel e da criação de um Estado Palestiniano". Mas não é isso que Nethanyau procura. A sua resposta à proposta de cessar-fogo no Líbano, apresentada por Biden e Macron, foi matar Nasrallah e invadir o Líbano. Não faltam planos de paz. Nethanyau não tem nenhum. Porque recusa, de facto, uma solução de dois Estados. E, assim sendo, depois de fazer a guerra, só tem mais guerra para oferecer.
Se Nethanyau quisesse a paz começava hoje uma negociação para garantir dois Estados, aceitando o desafio das nações vizinhas, em vez de provocar o caos à sua volta, passando de uma guerra para outra. Elas podem enfraquecer os inimigos por uns tempos, mas deixam um rasto de ressentimento cujos efeitos virão a ser sentidos por milhares de inocentes e, provavelmente, durante décadas. Enfraquecer a OLP deu a origem ao Hamas. Ocupar o sul do Líbano deu origem ao Hezbollah. Não é fácil imaginar que monstros nascerão deste ano de carnificina.
A guerra de Israel com o Líbano é a continuação do que se passa em Gaza. O silêncio do Ocidente, a que arrogantemente costumamos chamar “comunidade internacional”, perante o genocídio e a violação desabrida do direito internacional, que teve o seu momento máximo na presença de um criminoso de guerra no Congresso dos Estados Unidos, entrega a resistência moral à ofensiva israelita ao Irão e ao Hezbollah. A ausência de qualquer referencial moral – ele fica-se, por estes dias, pelos gritos solitários de António Guterres – dá força a política a um e a outro. Até porque, perante o comportamento de Israel, começa a ficar difícil falar de “terrorismo” para distinguir uns dos outros.
As guerras em Gaza e no Líbano são a mesma. Não são, na forma como Netanyahu as faz, guerras pela segurança de Israel – os ventos semeados neste ano serão colhidos em mortíferas tempestades pelas próximas gerações de israelitas, palestinianos e libaneses, para ficar pelos diretamente envolvidos.
Esta também nunca foi uma guerra para recuperar os reféns, para os quais Netanyahu não se poderia estar mais nas tintas, como a maioria dos israelitas já percebeu. A cada possibilidade de um acordo negociado em Gaza, o governo israelita inventou novas condições para boicotar uma solução pacifica. E quando a guerra de Gaza perdeu a “animação” ofensiva, Netanyahu teve de abrir uma nova frente, porque a guerra é a sua fuga em frente.
Nem a operação dos pagers nem o assassinato de Nasrallah são reações a seja o que for. São operações precisaram de anos de preparação. Com cem mil militares, armamento e a natureza de um exército quase regular, o Hezbollah pode ter ficado enfraquecido, mas recuperará. Com a importância que Nasrallah tem no mundo xiita, o objetivo de Netanyahu era outro: puxar o Irão para um envolvimento direto guerra, coisa que tenta, uma e outra vez, nos últimos meses. E que esse envolvimento trouxesse os EUA para dentro do turbilhão. O que Netanyahu procurava era o caos que o salvasse.
Está a conseguir o que desejava, pondo o seu país, a região e o mundo em enorme perigo. Haverá uma resposta de Israel aos bombardeamentos de ontem e depois uma resposta do Irão e depois uma resposta... E a guerra vai-se alastrando. Netanyahu só precisa de cinco semanas disto, sonhando com a vitória de Trump, o amigo que partilha com Putin – os dois principais desestabilizadores deste tempo.
Netanyahu não procura a segurança de Israel, foge da sua própria prisão. Porque sabe que basta uma pausa no período necessariamente excecional da guerra – a contestação da oposição voltou a amainar com esta nova frente –, para ele cair. E, caindo, espera-o o julgamento que tem evitado de todas as formas, incluindo uma reforma da justiça que os israelitas contestaram na rua. Nunca a liberdade de um corrupto custou tantas vidas. Nunca pôs em perigo um planeta inteiro.»