5.10.24

A redução da política às corridas de cavalos

 


«Um dos aspectos mais empobrecedores do comentário político – e por cá há mais comentário do que análise – é o tratamento da política como uma espécie de corrida de cavalos. Quem ganha e quem perde, quem sobe e quem desce, quem tem positiva ou tem negativa, quem tem boas notas e quem tem negativa. Muitas vezes este tipo de pódio para apostas é reforçado pela atribuição de notas como se fosse um exame escolar, um dos vários mecanismos de infantilização que circula numa sociedade em que se é “jovem” aos 35 anos. Do ponto de vista mediático esta simplificação resulta, mas, como hoje o contínuo político-mediático tirou autonomia à decisão política, é relevante analisar as perversidades que isso introduz no debate público, ou seja, na democracia.

Marcelo Rebelo de Sousa foi o introdutor deste tipo de comentário político, dando notas e tendo um papel activo naquelas secções dos jornais com setas para cima e para baixo. Esta simplificação analítica vinha em pacote com secções como “Gente” e com a cenarização, que introduzia uma ficcionalização da política, mas permitia uma enorme vantagem comunicativa.

A outra escola do jornalismo português, a do Independente, era precursora da deslocação para a direita de muita da comunicação social, mas com um forte elitismo cultural e uma afirmação de superioridade social. Estes dois últimos aspectos decaíram com o fim do jornal, mas o primeiro acentuou-se. A junção destas duas escolas acentuou o domínio da direita na comunicação social, trazendo a valorização do protagonismo individual e uma ecologia de temas que valorizava a competição, o psicologismo e o sucesso, em detrimento das questões sociais. A moda e o espírito de rebanho, muito influentes no jornalismo menos qualificado, fizeram o resto. Os pobres, o mundo do trabalho, as desigualdades eram os “feios, porcos e maus” da moda, face aos influencers e aos meninos bonitos das empresas, como Zeinal Bava.

O mecanismo das corridas de cavalos é de um enorme simplismo, porque nem sempre quem “sobe” ganha, ou quem “desce” perde, e nem sempre quem “sobe” ou “desce” está verdadeiramente a “subir” ou a “descer” fora do mundo mediático. A complexidade da acção política, a complexidade da sociedade, as diferentes “recepções” dos sucessos ou falhanços, desaparecem da interpretação, cada vez mais de forma e menos de substância.

As duas escolas tendiam a reduzir a política àquilo a que se chama protagonismo, que valoriza as personalidades, a liderança, e diminui e menoriza a acção colectiva. Aliás, de uma ponta à outra, este tipo de mecanismos competitivos do comentário favorece o individualismo e apaga a complexidade da acção humana e o “ruído do mundo” weberiano. O mundo das redes sociais assenta neste tipo de visão, a que acrescenta uma enorme capacidade de insulto, calúnia e uma indústria da maledicência, ou seja, é eficaz para o “mal”, a que se soma uma incapacidade analítica e um papel quase inexistente do “bem”.

A forma como todo o processo do Orçamento tem vindo a ser tratado é um exemplo deste tipo de mecanismos. Pode-se, como é evidente, fazer um balanço de ganhos e perdas, e é evidente que o PS perdeu porque ficou sem margem de manobra e foi obrigado, entre uma chuva de insultos, a tomar posições que não desejava (escrevo ontem, nunca se sabe o que pode mudar hoje).

Temos os homens e as mulheres, mas falta a paisagem. Embora se fale do “interesse nacional”, toda a gente percebe que é pura retórica e que essa coisa abstracta está de fora não só da actuação dos políticos como da cobertura mediática, que é o que verdadeiramente lhes interessa por razões eleitorais e de formação (a actual geração de dirigentes políticos nasceu e cresceu no contínuo político-mediático). O que falta no julgamento analítico do que se passa com o Orçamento inclui, para começar, o próprio Orçamento em si, que não se reduz às duas medidas polémicas. Quanto do que lá está corresponde a visões diferentes e, no limite, antagónicas da política, supostamente separada pela ideologia, sim, pela ideologia? Eram estas as medidas de identidade para o PSD e para o PS e em que modo a sua alteração, ou recusa, altera o sentido político e ideológico do documento? Quem beneficia ou perde com elas? Como fica a economia, a sociedade, a democracia e por fim, a política neste processo?

Tudo isto apareceu fragmentariamente, mas sempre ofuscado pelas personagens, Montenegro, Pedro Nuno Santos, o Presidente. Mesmo o PS e o PSD, já para não falar do Chega, do PCP, do BE, do Livre, do PAN, personagens menores, ao lado da CGTP, UGT, CIP e CAP, estão no cenário, mas não na acção. Terá sido mesmo assim? Duvido, o interior do PS teve um papel, representados por comentadores sem excepção moles perante o Governo, os “interesses” organizados estão sempre presentes, mas são cavalos invisíveis, que têm tanto mais poder quanto menos se fala deles.

Esta corrida acabou? Não me parece. Mas vai haver outras, pode-se sempre apostar e são um bom entretenimento.»


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