6.8.22

Casas «que ficam» (6)

 


Almada Negreiros, Casa onde nasceu, a 1.500 metros de altitude, na Roça Saudade da qual o pai era Administrador. Com dois anos, AN veio para Cascais e passou a viver com a família da mãe. S. Tomé (2019).
É hoje um misto de Casa Museu e excelente restaurante onde não faltam turistas e não só.




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06.08.1966 – «Salazar» foi o seu nome de baptismo

 



E, no entanto, com a sagacidade que o caracterizava, o presidente do Conselho de Ministros previu o que viria a acontecer alguns anos mais tarde. Antes do início das cerimónias da inauguração, ao ver o seu nome num dos pilares, terá perguntado: «As letras estão fundidas no bronze ou simplesmente aparafusadas? É que, se estão fundidas no bloco de bronze, vão dar muito trabalho a arrancar.»


No dia na inauguração, claro não se escapou a mais um discurso de Américo Tomás:



Atravessei a Ponte alguns dias depois de ter sido inaugurada, no velho carocha de um amigo, com um bote em cima, a caminho da Arrábida. Começava uma nova vida, chegava-se muito mais rapidamente ao paraíso das nossas férias, sem cacilheiros dependentes de nevoeiros, nem longas filas de espera quando era preciso embarcar também um automóvel.

Para quem vivia «do lado de lá», foi a facilidade quase inimaginável de alcançar Lisboa mais facilmente para chegar ao trabalho, ao liceu ou à faculdade ou simplesmente para passear. Não deve ser fácil para quem nasceu mais tarde imaginar Lisboa sem «a Ponte».
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Efemérides

 


1957: Rússia lança a cadela Laika para o espaço.
2022: Portugal lança um pato bravo para o espaço.

Pedro Abreu no Facebook
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06.08.1945 – Hiroshima: os relógios pararam às 8:15

 




Foi nesta data que a humanidade viveu um dos dias mais terríveis do século XX. Quem alguma vez passou por Hiroshima não saiu de lá como entrou, ficou certamente marcado para sempre como eu fiquei.

Se eu apenas pudesse guardar duas fotografias, dos milhares que fui tirando por esse mundo fora, escolheria estas. De má qualidade, sem dúvida, mas que me recordam dois objectos expostos no Museu de Hiroshima, que nunca mais esquecerei. Numa, um relógio que parou à hora exacta em que a bomba explodiu. A outra fala por si.

Para ver uma série de fotografias do actual «Parque Memorial da Paz de Hiroshima» e um vídeo, clicar AQUI.
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5.8.22

Casas «que ficam» (5)

 


Reis da Tailândia, Palácio de Verão de Bang Pa-In. Provincia de Ayutthaya, Tailândia (2012).

Começou a ser construído no século XVII, mas a maior parte dos edifícios que o constituem data do período que vai de 1872 a 1889. São vários, espalhados por jardins extremamente bem cuidados. Hoje é raramente utilizado pela família real tailandesa e nele têm lugar apenas alguns banquetes e outras cerimónias oficiais.

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Nancy Pelosi, pirómana virtuosa

 


«Não faltam crises ao pobre Presidente Joe Biden. A guerra da Rússia na Ucrânia é a mais delicada. E há o choque energético, a crise alimentar, a questão climática e a ameaça de novas crises, como a do nuclear iraniano. A senhora Nancy Pelosi, speaker da Câmara dos Representantes norte-americana, criou outra e mais grave com a sua visita a Taiwan, uma ilha com muito maior potencial explosivo do que a Ucrânia. O fim da visita não significa o encerramento da crise, antes marca o seu começo.

A última crise no Estreito de Taiwan, com dimensão militar, foi em 1995-1996 e durou oito meses. Teve como pretexto a autorização dos EUA ao então presidente de Taiwan para ir fazer uma conferência na sua antiga universidade americana. Era na altura a China muito mais débil e Washington respondeu com uma força aeronaval.

Terceira figura do Estado americano, Pelosi quis fechar o seu último mandato (os republicanos devem vencer as eleições intercalares) com chave de oiro. É inegavelmente coerente, crítica implacável de Pequim e amiga de Taipé. O seu ego apreciará o sucesso mediático e a ovação que a espera no Congresso. Vale a sua glória uma crise internacional? Nem Biden nem os conselheiros militares a conseguiram dissuadir. Agora, nem Biden nem Xi podem recuar sem perder a face.

Pequim não tem naturalmente nenhum direito para determinar quem tem autorização para visitar Taipé. Mas uma figura de Estado que lá vai deve pesar as consequências. Chama-se a isso ética da responsabilidade.

Ela escolheu o pior momento, abrindo uma frente de confronto com a China quando está a decorrer uma guerra na Europa. Ela sabia que seria uma afronta pessoal para Xi Jinping, quando Biden procurava melhorar as relações bilaterais. E estava certamente consciente de provocar uma reacção "musculada" de Pequim.

Em vésperas do X Congresso do Partido Comunista Chinês, em que deverá ser reeleito para um terceiro mandato, Xi debate-se com dificuldades internas, económicas e sociais. Para Pequim, a iniciativa de Pelosi foi uma deliberada "humilhação", sinal de que Washington vai aos poucos abandonando a doutrina de "uma só China".

Não haverá guerra. A China não está preparada para desafiar os Estados Unidos invadindo Taiwan. Estamos perante as primeiras represálias, mas a crise poderá durar meses ou até anos, previnem os analistas. Na opinião de Carlos Gaspar, esta quarta crise do estreito de Taiwan pode ser o início de uma contagem decrescente para a invasão.

Para já, a reacção de Pequim começa a ser muito parecida com um bloqueio de Taiwan, de imprevisíveis consequências. Até agora, a legitimidade do regime comunista assentava no seu sucesso económico e na ascensão social. Hoje, com Xi, o nacionalismo passou a ser um factor muito importante, o que condiciona o comportamento do partido.

A importância de Taiwan

Deixemos de lado as peripécias. Uma crise em Taiwan é muito mais perigosa do que a da Ucrânia.

Por um lado, coloca em confronto as duas maiores potências mundiais.

Por outro, a ilha tem uma importância estratégia única. Pela sua posição nas rotas navais por onde circula a energia para dois aliados ocidentais, Japão e Coreia do Sul. "É uma superpotência tecnológica que produz 60% dos semicondutores mundiais", escreve Federico Rampini, no Corriere della Sera. "A sua queda nas mãos do regime comunista seria fatal para os equilíbrios do Indo-Pacífico, onde se joga o futuro do planeta. Os Estados Unidos consideram aquela área o centro dos seus interesses vitais, mais do que a velha Europa."

Observa Tiejun Zhang, no Diplomat, citando o sinólogo Robert Ross: "A Ásia Oriental é bipolar, com os Estados Unidos como potência marítima dominante e a China como potência terrestre dominante, com Taiwan exactamente colocada entre estas duas esferas. A este respeito, quem controlar Taiwan ganhará vantagem sobre o outro."

Há, enfim, uma outra dimensão. A superpotência americana corre o risco de alargar excessivamente os seus alvos, do ponto de vista militar, político, logístico e diplomático, num movimento que excede os seus recursos económico-militares e pode levar ao declínio.

Assim vai a América. A última coisa que lhe faltava era a descoordenação na política externa perante o seu principal adversário. Como diz a Economist, "transformaram a ambiguidade estratégica em confusão estratégica".

A speaker Pelosi exibiu a virtude. Mas a situação de Taiwan é certamente mais perigosa e insegura do que antes da visita.»

Jorge Almeida Fernandes
Newsletter do Público, 04.08.2022
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Jô Soares

 


Que o cidadão Marcelo Rebelo de Sousa sinta o desaparecimento de Jô Soares é normal. Que o exprima na página oficial da Presidência, como «Presidente da República» Portuguesa, não tem cabeça nem pés para andar – penso eu de que…
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A morte (da ex-mulher) e os impostos

 

@João Fazenda

«A maior parte das pessoas apresenta uma factura para deduzir o IVA no IRS. Donald Trump apresentou o cadáver da ex-mulher para, segundo a revista “Fortune”, deixar de pagar seis categorias de impostos. Parece absurdo, mas não é. Pedir uma factura é simples e fácil; requisitar o corpo de um ex-cônjuge defunto revela uma obstinação que deve, de facto, ser premiada com mais do que uma isenção fiscal. O que se passou foi o seguinte: a primeira mulher do antigo Presidente dos EUA, Ivana Trump, sofreu uma queda em sua casa e morreu. Seguiram-se cerimónias fúnebres em Manhattan, mas o corpo foi enterrado em Nova Jérsia, no clube de golfe de Bedminster, detido por Donald Trump. Ora, em Nova Jérsia, propriedades registadas como cemitério não pagam impostos, e a lei não especifica o número de campas necessárias para que um cemitério seja um cemitério. Muita gente ficou incrédula com a desfaçatez de Donald Trump; pessoalmente, fiquei incrédulo com o facto de ele ter demorado tanto tempo a aproveitar esta oportunidade. Como é que não reparou mais cedo que poderia ganhar dinheiro com a morte de um ente querido? É isto um grande empresário? Que desilusão.

Até agora, os três filhos que Donald Trump teve com Ivana não disseram uma palavra sobre o facto de a mãe ser sepultada num campo de golfe para efeitos de isenção fiscal do pai. Talvez a outra hipótese fosse moer o corpo da falecida para fazer hambúrgueres, e eles tenham considerado que a sepultura no campo de golfe era, apesar de tudo, a forma menos indigna de o pai retirar benefícios financeiros do cadáver de Ivana. E agora Ivana repousará eternamente no prestigiado campo de golfe do Bedminster Club. Talvez, de vez em quando, uma bola perdida vá ter à sua campa, e um golfista azarado tenha de jogar a partir do seu túmulo. Os bancos de areia são obstáculos clássicos que os golfistas têm de ultrapassar, mas talvez as campas de ex-mulheres de Trump possam passar a ser também uma divertida dificuldade nos torneios do circuito da PGA Tour. Chamem-me romântico, mas não consigo deixar de me comover com esta união de dois ex-cônjuges, mesmo após a morte: Ivana foi para o paraíso, mas deixou Donald no paraíso fiscal. Quem não se emociona com isto tem o coração de pedra.»

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4.8.22

Casas «que ficam» (4)

 


Pedro, O Grande, Peterhof (Jardim de Pedro), a 30 km de S. Petersburgo, Rússia (2012).

Na primeira metade do século XVIII, a cidade de S. Petersburgo viu-se rodeada de palácios e parques sumptuosos, onde os czares e os seus próximos passavam os meses de Verão. O mais célebre é sem dúvida Peterhof, um extraordinário conjunto de edifícios e de jardins, mandado construir por Pedro, o Grande (entre 1714 e 1725).
Inspirado em Versailles, embora mais pequeno, mas com fontes e cascatas em maior número e mais espectaculares – o seu verdadeiro cartão-de-visita. Um canal liga o Grande Palácio ao Mar Báltico, mais concretamente ao Golfo da Finlândia. Os jardins são lindíssimos. (É proibido tirar fotografias no interior do Palácio…)

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Fotobiografia com selfies?

 


O homem diz que nunca escreverá Memórias, mas está certamente a preparar uma Fotobiografia só com selfies. Não há outra explicação!
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04.08.1578 – Lá se foi Alcácer-Quibir

 


Se alguém quisesse desenterrar a ideia peregrina de celebrar o «Dia da Raça», devia escolher a data de hoje. Sebastiânicos nascemos, sebastiânicos continuamos a ser – ficou no nosso ADN.

Mais a sério. Foi num 4 de Agosto, em 1578, que Portugal sofreu uma derrota em Alcácer-Quibir quando decidiu aliar-se a um sultão, Mulay Mohammed, e acabou por ser vencido por um outro, Mulei Moluco. Derrota pesada acima de tudo sobretudo porque nela se perdeu um rei sem descendentes, D. Sebastião.

Foi tal o desespero que o povo não quis acreditar na sua morte, ou ficou na expectativa que ressuscitasse, numa atitude heróica e trágica que o marcou para todo o sempre. Hoje continua, talvez inconsciente mas serenamente, à espera que regresse o tal salvador que o livrará de todos males.

Mas com música de S. Godinho, Adriano e Vitorino.






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Casas pouco engraçadas

 


"Era uma casa / Muito engraçada / Não tinha teto / Não tinha nada"

«Assim arranca uma música escrita pelo brasileiro Vinicius de Moraes. A letra veio-me à memória quando lia documentos oficiais que dão conta da pobreza e desigualdade registadas em Portugal. A casa é um bem fundamental e, na realidade, todos querem ter um teto, mesmo que estejamos a falar de espaços exíguos. O aspeto tristemente irónico dessa ambição reside no facto de a habitação se tornar depois num sorvedouro sem fim dos parcos rendimentos da "classe trabalhadora", isto é, daqueles que precisam de colocar o seu tempo e esmero ao serviço de terceiros.

Segundo o Inquérito à Situação Financeira das Famílias de 2020, 63,5% dos portugueses que vivem numa casa arrendada preferiam ter comprado e não o fizeram por não terem condições financeiras. Segundo a publicação Quadros de Pessoal 2020, do Ministério do Trabalho, quase 70% dos trabalhadores por conta de outrem ganham entre 635 euros e mil euros brutos por mês. Estamos a falar de um universo superior a três milhões de pessoas, enquanto que os patrões - estatuto que só por si não garante, obviamente, conforto financeiro - são menos de 150 mil. No entanto, não deixa de ser verdade que 10% das famílias mais abastadas detinham 51,2% da riqueza líquida total em 2020, não abundando aqui os trabalhadores por conta de outrem.

Os afortunados que conseguem pagar um crédito à habitação deparam-se posteriormente com os encargos crescentes devido à inflação. Há que pagar a energia (gás e eletricidade), a água, o IMI, o condomínio, as obras de manutenção, entre outras despesas. Não será por isso de estranhar que muitos agregados não liguem o gás ou se atrasem no pagamento das faturas da energia. Podem até ser casas muito engraçadas, mas os seus habitantes enfrentam um défice qualitativo de conforto.»

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Voilà

 


Le Monde, 03.08.2022
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3.8.22

Casas «que ficam» (3)

 


Simón Bolivar morreu, em 17 de Dezembro de 1830, na Quinta de San Pedro Alejandrino. Santa Marta, Colômbia (2012).

Bolívar esteve poucos dias nesta Quinta, onde esperava por um barco que o levasse a Espanha para ser submetido a tratamentos de males pulmonares. Mas é a tal ponto objecto de «culto», numa grande parte da América Latina, que a Quinta é ainda hoje local de visita obrigatória e a casa se mantém especialmente bem cuidada e rodeada de magníficas árvores e espaços verdes (onde se passeiam simpáticas iguanas…)


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O estranho caso das dívidas das viúvas

 

«A Caixa Geral de Aposentações está a fazer depender o pagamento de pensões de viuvez da cobrança de "dívidas" de dezenas de milhares de euros, sem as comprovar nem prestar qualquer esclarecimento sobre a formação. Isto apesar de a justiça já ter exigido explicações.»

Ler e pasmar. AQUI.
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Para a minha terra?

 


Quando brasileiros e uma mulher se engalfinharam há uns dias na Caparica por tiradas racistas desta última, o acontecimento até mereceu Nota na página da Presidência da República.

Mas, dia sim dia sim, entre Odivelas e o Lumiar, (não) vai o passo de um anão…
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Não há fábrica para fazer especialistas

 


«Finalmente, o decreto-lei do Conselho de Ministros, publicado a 15 de Julho, fala na verdadeira razão para a crise actual das urgências, entre elas as de obstetrícia – a demografia médica. Aquilo que foi relevado na comunicação social foi o quantitativo dos pagamentos das horas extras, como se a solução estivesse aí. Pouco se falou das conversações dos sindicatos com o ministério, sobre remunerações e carreiras. Com algumas honrosas excepções, esta é a inevitável leveza da informação.

Quando um especialista tenta explicar as razões que vêm do passado, em meio televisivo, é sempre interrompido em nome da contingência. Ou seja, no passado foram cometidos erros com repercussões importantes no futuro, que nunca serão criticados e muito menos julgados. Até 1999 houve aquilo a que os especialistas chamam “malthusianismo” na entrada para as Faculdades de Medicina e acabavam as licenciaturas cerca de três centenas a nível nacional. Em 2011, o Governo de José Sócrates conseguiu ainda por decreto-lei, e bem, que fossem assinados os últimos contratos de dedicação exclusiva de especialistas. Os mais novos têm agora 43 anos. Mais jovens do que esses, se ficaram no público e quiserem habitar em Lisboa (convém, por causa das urgências nocturnas), passaram à condição do quarto alugado ou da residência colectiva.

Foi também nesse Governo (ministro Correia de Campos) que se fundaram as Unidades de Saúde Familiar (USF’s), cujo pessoal é remunerado em função da produção quantitativa e qualitativa. No programa do actual Governo são prometidas mais. Esperemos que sim. Estas coisas, umas más, outras boas, têm datas e têm responsáveis. Para os hospitais privados não houve crise financeira, pois de 2007 a 2017 abriram mais 15 hospitais-empresa de saúde, para os quais saíram, durante o período de “ajuste financeiro”, mais de 300 milhões de euros do orçamento da Saúde. Trata-se de hospitais (camas), não inclui serviços clínicos externos.

A produção de especialistas tem que ser demorada

Voltemos à formação de especialistas. A licenciatura em Medicina é de seis anos lectivos. No período que se seguiu ao estrangulamento, seguiam-se dois anos de Internato Geral, após o qual havia o exame de entrada para a especialidade, conhecido por ter base no livro Harrison. A classificação seriava para opção. Iniciada a especialidade, esta leva seis anos, após os quais há o exame da especialidade, muito rigoroso.

Entre estes períodos há sempre intervalos administrativos, para classificações e colocações. Ou seja, começámos a ter especialistas, ainda provenientes do estrangulamento, portanto poucos, em 2015/2016. Começaram a aumentar lentamente. Em ginecologia/obstetrícia, atingiram-se os mínimos com idades entre 46 e 55 anos em 2021. Aumentaram um pouco os de 36 a 45 anos. Nesse ano, os “antigos”, com mais de 65 anos, eram sete vezes mais que os primeiros e cerca de quatro vezes mais que os segundos. Nos hospitais, a especialidade está dividida em ginecologia, por um lado, e obstetrícia, por outro. De modo que estes números são mais graves. E, como não há uma fábrica de fazer especialistas, é esta a realidade. E será nos próximos anos.

Quando oiço falar que a causa é a “gestão”, comparo-a com o comentário das senhoras chiques que, quando sabem da insegurança alimentar dos trabalhadores pobres, dizem que é uma questão de “boa gestão do que têm”. Claro que os pobres podem plantar couves no quintal, mas especialistas de viveiro não há. Pelo contrário. Há a caça ao especialista pelos hospitais-empresa, que podem pagar mais ou menos o dobro. Certas especialidades são mais cobiçadas: ginecologia/obstetrícia, anestesia, pediatria. Mas as outras também o são.

Na minha especialidade (endocrinologia, diabetes e nutrição), este ano, na região de Lisboa, fizeram exame e obtiveram o grau de especialistas cinco médicas. Só duas ficaram em hospitais públicos, as outras três foram captadas pelos privados. Anteriormente, outras tinham sido. Claro que a diabetes deve ser tratada sobretudo nos cuidados primários. Mas há determinadas áreas, como a perfusão contínua de insulina, que, excepto a Associação Protectora de Diabéticos de Portugal (APDP), dizem respeito a endocrinologistas hospitalares, tal como a estes diz respeito a preparação para a cirurgia bariátrica da obesidade, que tem anos de espera. A transexualidade só pode ser seguida em endocrinologia hospitalar. O serviço do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa não recebeu nenhum especialista este ano.

Dou estes quatro exemplos, mais conhecidos, para ilustrar, julgo que de maneira gritante, o escoamento dos especialistas. Esperemos que, das conversações com os sindicatos, saia luz verde. Ou pelo menos amarela…»

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2.8.22

Casas «que ficam» (2)

 


Ho Chi Minh viveu e trabalhou numa parte desta casa entre 1954 e 1958. Hanói, Vietname (2009).

Em Hanói, tudo gira em torno da memória de Ho Chi Minh, desde esta casa, mantida inalterada, ao enorme mausoléu com o propriamente dito em carne e osso, em múmia impressionantemente perfeita, rodeada de segurança e veneração - nem fotos, nem shorts, nem rir ou falar alto, nem mãos nas algibeiras…

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02.08.1929 – Zeca Afonso

 


Chegaria hoje aos 93 e podia divulgar aqui alguma das muitas heranças que nos deixou. Mas nesta data recordo sempre um texto que Manuel António Pina escreveu, no JN, em 24.02.2011:

Vampiros e eunucos

«Há 24 anos, feitos ontem, morreu José Afonso. Entretanto, vindos "em bandos, com pés de veludo", os vampiros foram progressivamente ocupando todos os lugares de esperança inaugurados em 1974, e hoje (basta olhar em volta) os "mordomos do universo todo/ senhores à força, mandadores sem lei", enchem de novo "as tulhas, bebem vinho novo" e "dançam a ronda no pinhal do rei", tendo, em tempos afrontosamente desiguais, ganho inaceitável literalidade o refrão "eles comem tudo, eles comem tudo/ eles comem tudo e não deixam nada".

Talvez, mais do que legisladores, artistas como José Afonso sejam, convocando Pound, "antenas de raça". Ou talvez apenas olhem com olhos mais transparentes e mais fundos. Ou então talvez a sua voz coincida com a voz colectiva por transportar alguma espécie singular de verdade. Pois, completando Novalis, também o mais verdadeiro é necessariamente mais poético.

O certo é que a "fauna hipernutrida" de "parasitas do sangue alheio" que José Afonso entreviu na sociedade portuguesa de há mais de meio século está aí de novo, nem sequer com diferentes vestes; se é que alguma vez os seus vultos deixaram de estar "pousa[dos] nos prédios, pousa[dos] nas calçadas". E, com ela, o cortejo venal dos "eunucos" que "em vénias malabares à luz do dia/ lambuzam da saliva os maiorais".

Lembrar hoje José Afonso pode ser, mais do que um ritual melancólico, um gesto de fidelidade e inconformismo.»
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Com tanto calor ou sem ele

 


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Pobre Segurança Pública

 


«Primeiro, e começando pelo fim.

Há polícias com ligações à extrema-direita, fascistas, nazis e racistas? Há. Há policias corruptos, incompetentes, desmazelados e que abusam da autoridade? Há. E estes, esses, sejam quantos forem, devem ser investigados, julgados e punidos. Ponto final. Os polícias e, já agora, todos os profissionais que estão ao serviço público e que também são fascistas, nazis, incompetentes, desmazelados e que abusam do poder que lhes foi delegado e da autoridade que lhes foi confiada. (Assim de repente, lembro-me de vários outros servidores públicos, só que estoutros com a diferença de se apresentarem com um Dr. ou Doutor antes do nome próprio).

Depois.

A larguíssima maioria dos agentes da polícia são gente decente, escrupulosos cumpridores da função que lhes foi confiada, mulheres e homens que zelam pela ordem pública, pelo bem comum, pela segurança coletiva. E que cumprem as normas, as regras e as leis.

Há dias, um polícia, ao ser homenageado publicamente por um ato de coragem - entrou numa casa em chamas para retirar um cidadão que, adormecido por drogas, iria ser consumido pelo fogo - gracejou com a plateia. Disse, basicamente, ter noção de que nem todos os que o aplaudiam naquele momento, naquela sala, gostavam de polícias. Mas, sublinhou, também, na grande maioria, não era por serem "criminosos", mas apenas por serem "infratores". Temos sempre este dilema com os polícias. Gostamos deles quando precisamos de um, detestamo-los quando nos apanham em excesso de velocidade, a conduzir embriagados, sem documentos ou sem seguro, quando estacionamos mal ou quando fazemos uma manobra considerada perigosa.

Nesta relação de amor/ódio com os polícias tendemos, na maior parte dos casos, a valorizar mais a parte do "ódio" do que a parte do "amor". "Quando precisamos de um polícia, nunca aparece nenhum. Mas se fosse para multar, já cá estavam". É mais ou menos isto que diz o senso comum. Por isso, como eles "só aparecem" nos momentos em que não os queremos ver, a tendência é para só nos lembrarmos do "polícia mau".

A vida destes homens e mulheres é tremenda.

Ganham mal, muito mal, tendo em conta o poder e a responsabilidade que lhes delegamos. Trabalham em condições miseráveis. As frotas são risíveis, o papel higiénico - e por vezes, o da impressora também - vem de casa. Há esquadras que são apenas lugares podres, bolorentos, húmidos, com infiltrações no inverno e um calor insuportável no verão. Muitas, vistas de fora, são apenas casebres em ruínas, mas onde o Estado delegou a autoridade da segurança e bem-estar de todos nós. Os polícias fazem turnos a mais, horas extra sem fim, são escalados para os chamados "gratificados", que são reforços de policiamento pedidos por particulares e pagos à parte, vão a jogos de futebol, acompanham claques, vigiam o trânsito, atendem a casos de violência doméstica, além dos roubos, dos furtos, das injúrias, desavenças entre vizinhos, discussões entre amigos que acabam mal por causa da bola e um sem número de outras "ocorrências" que lhes consomem tempo, energia, os escassos meios e, sobretudo, a paciência. Este lado de polícia "bom", o que chamamos quando é preciso, acaba por ser um saco de pancada da sociedade em geral. E, sim, os polícias não são psicólogos, psiquiatras e, muito menos, legisladores ou juízes.

A semana passada, o Ministro da Administração Interna encomendou aos autarcas - a quem mais haveria de ser? - que tentassem arranjar comida de graça e alojamento a bom preço para os agentes que estão deslocados de casa. Trata-se de fazer caridade, de remendar situações que não foram nunca resolvidas de forma estrutural, apesar do desfile sucessivo de ministros e diretores nacionais nas últimas décadas. Uma esmola.

Uma vez, entrei num dos alojamentos fornecidos pela instituição para polícias deslocados. No início pensei que estavam a brincar comigo e que estava, afinal, a visitar uma casa abandonada, onde viviam sem abrigo. A pouca mobília era velha, desconjuntada e parecia ter vindo do lixo. O soalho tinha buracos, estava podre e húmido. Os colchões espalhados pelo chão, tinham de estar desencostados das paredes, por causa da água da chuva que escorria sem parar. A "limpeza", só uma vez por semana. A cozinha era um inferno, com uma ligação de gás pirata e precária, pronta a explodir a qualquer momento. O espaço estava superlotado, não só com os homens que tinham, muitas vezes, de utilizar o sistema de cama quente, como nos submarinos, mas também pelos ratos que, animados por tamanha miséria, faziam companhia aos efetivos que descansavam (?) apenas umas horas e, pouco depois, fardados com brio e aprumo, estavam de volta ao fim da cadeia, a suportar as fragilidades da sociedade.

Não tenho qualquer respeito por polícias corruptos, racistas, incompetentes ou que abusam da autoridade e do poder.

Aos outros, à grande maioria dos que nos servem mesmo sem darmos por isso, o meu respeito, admiração e a devida vénia. São gente de coragem, de sofrimento e de resiliência. E mal pagos. E em risco. Não é, por isso, de estranhar, que pela primeira vez em muitas décadas, as vagas para novos policias não tenham sido preenchidas. Só por esse facto, "a tutela" já deveria estar preocupada. Esquadras com rodas que avariam no primeiro dia; esmolas nas cantinas municipais; subsídios ad-hoc; anúncio do reforço de meios e outras manobras administrativas e de propagada não resolverão, nunca, a questão estrutural. E já nem falo apenas de salários, meios, condições de trabalho e operacionalidade. Falo, também, de dignidade.»

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1.8.22

Casas «que ficam» (1)

 


[Retomo uma velha série, ligeiramente modificada.]

Gabriel García Márquez, Casa dos avós (hoje museu), onde nasceu em 1927 e viveu até aos 10 anos. Aracataca, Colômbia (2012).

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Aquele querido mês de Agosto

 


Ficou na memória a canção, mas ainda hoje vou rever o filme.

«Silly season»? Muito mais do que isso.




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Da importância de verbalizar o pensamento

 


«Com a polarização política que se vive atualmente, vai parecendo cada vez mais arriscado expressar pensamentos, sobretudo quando estes divergem dos do mainstream, o que é frequentemente o meu caso. Nada mais lesivo, porém, para a saúde de cada um e a da sociedade.

Falar é uma das atividades humanas mais complexas e a linguagem, que se traduz nos milhares de línguas existentes, é a característica que nos distingue das demais espécies. Falar não é só produzir sons mais ou menos articulados: muitos animais emitem sons articulados e isso não significa que falem. Falar implica necessariamente veicular conhecimento, através de um contínuo de sons articulados; falar é dar forma linguística aos pensamentos. Não é só por termos um aparelho fonador sofisticado que conseguimos falar. Falamos porque temos um cérebro mais desenvolvido do que o de outras espécies, que permite à espécie humana pensar.

Pensar é, diz-nos a Infopédia, "fazer uso da razão para depreender, julgar ou compreender; encadear ideias de forma lógica; raciocinar". Apesar de, segundo a definição anterior, o pensamento pressupor consciência, a verdade é que ele nem sempre é consciente. Muitos dos nossos pensamentos são processos intuitivos resultantes de evolução, que nos permitem tomar decisões como trincar uma maçã que cheira bem ou abrigarmo-nos porque começou a chover. Não é este, porém, o tipo de pensamento que nos distingue dos restantes animais, que, também eles, o desenvolveram para garantir a sobrevivência. O que nos distingue como seres humanos é o pensamento consciente, i.e., aquele que o dicionário citado definiu.

O pensamento consciente expressa-se em imagens, pensamento visual, ou em palavras, pensamento verbal. Pensamos em imagens, e.g., quando relembramos um momento em que fomos felizes através de uma imagem concreta, um instantâneo que o representa como uma fotografia. Os pensamentos em palavras, ou pensamentos verbais, são aqueles que somos capazes de dizer, expressar usando a nossa língua, no monólogo interior ou na comunicação com os outros. Para dizer um pensamento precisamos de ter/tomar consciência dele e de o veicular através de uma sequência de palavras com uma estrutura interna (a frase), que veicula um significado resultante das palavras e da estrutura (a semântica) e cumpre uma determinada função (pragmática), transformando-se em enunciado, que, por si só ou com outros enunciados, pode constituir um discurso e ser entendido pelo enunciador e pelos seus interlocutores, se os houver.

Para dizer um pensamento precisamos de o entender, porque o próprio ato de lhe atribuir uma forma linguística nos obriga a elaborá-lo, delimitá-lo, defini-lo. A relação entre dizer e entender não se faz, porém, só num sentido, do pensamento à palavra, mas tem efeito retroativo: um pensamento dito pode ser recriado, i.e., ao atribuirmos forma à substância, tornamo-la objeto passível de ser reelaborado, redefinido. Verbalizar o pensamento é essencial para melhor o compreender. Daí o sucesso dos confessionários e dos consultórios de psicoterapia e psicanálise.

Se a fala, que é instantânea e efémera, resulta de uma atividade tão complexa, já a escrita, que é elaborada, perene e pode ser fruída interminavelmente, constitui o apogeu da expressão do pensamento consciente. Por isso a escrita constitui uma das maiores invenções da Humanidade e o princípio mesmo da História.

Quem abdica de dizer o seu pensamento está a abdicar do entendimento do mundo, da liberdade e da cidadania.»

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31.7.22

31.07.2017 – Quando Jeanne Moreau deixou o «tourbillon de la vie»

 


Com uma carreira longuíssima de actriz, realizadora e cantora, iniciada em 1950, e uma filmografia impressionante com cerca de 130 nomes listados, trabalhou com uma lista notável de realizadores, entre os quais Luis Buñuel, Wim Wenders, Michelangelo Antonioni, Orson Welles, François Truffaut, Louis Malle, etc., etc.

Já agora, de sublinhar a sua participação em «Gebo et l’Ombre», de Manoel de Oliveira (2012), onde faz o papel de Candidinha.

Alguns vídeos AQUI.
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Itália: o fascismo bate à porta?

 


«Na quarta-feira de manhã, Berlusconi "apunhalou pelas costas" Giorgia Meloni, sua colega de coligação. "Meloni assusta e sob sua liderança podemos perder as eleições." O partido de Meloni, Irmãos de Itália (FdI, pós-fascista), é favorito nas sondagens: entre a direita, estas dão-lhe quase 25% das intenções de voto, contra 15% para a Liga de Salvini e 8% para a Força Itália (FI) de Berlusconi. Por isso ela exige ser primeira-ministra se a direita vencer. Ao fim do dia, numa cimeira tripartida, fizeram as pazes e evitaram a ruptura. Concordaram: "Quem designa o chefe do Governo são os italianos", ou seja, os votos. Em compensação. Meloni aprova a entrada de muitos centristas nas listas eleitorais. São boas palavras, porque a seguir voltarão as disputas. Berlusconi disse que quer 20% dos eleitos, o dobro do que as sondagens lhe dão. A comédia é inseparável da política à italiana.

A candidatura de Meloni continua a ser um espantalho, diz um politólogo, e a levantar grandes preocupações na Europa. Trata-se de governar a Itália numa das fases mais difíceis da sua história. O seu pecado é ser herdeira da tradição neofascista. Para uma parte da esquerda representa "o fascismo à porta". Para Berlusconi, ela está excessivamente à direita e com posições ultraconservadoras que afastam o eleitorado moderado. A imprensa internacional reagiu acidamente à hipótese de um Governo "neo-fascista" de Meloni.

Mas também o "Cavaliere" está inseguro. Votou a queda da Draghi em troca da promessa de ser eleito presidente do Senado, de onde foi expulso em 2013, depois da condenação judicial. Seria a segunda figura da República. A "traição" a Draghi e a aliança aos "soberanistas" não foram pacíficas nas suas hostes. Dirigentes históricos estão a abandonar a FI. Há especulações: estará a perder quadros e tem medo "da extinção da Força Itália".

No entanto, apesar da vantagem da direita nas sondagens, o desfecho das eleições de 25 de Setembro ainda não é seguro. O centro-esquerda ainda não definiu tácticas e alianças: todos estão à espera de decisão do Partido Democrático, (PD, de Enrico Letta)." Letta aposta numa nova bipolarização. Não diaboliza Meloni, trata-a como a adversária a abater. Comentou há dias: "Hoje é um dia importante para a história e para a política italiana porque Berlusconi e Salvini decidiram entregar-se definitivamente nas mãos de Meloni. (…) Será um confronto e uma escolha que os italianos deverão fazer entre mim e Meloni."

O "pacto celerado"

Entre Fevereiro de 2021 e a semana passada, a Itália foi um país admirado e que, de facto, liderou a Europa. A queda do governo Draghi é um golpe duríssimo no projecto europeu com repercussões até à Ucrânia. A França de Macron está politicamente enfraquecida, a Alemanha de Scholz parece estável mas com escassa iniciativa. Fora da União, a Grã-Bretanha anda à deriva até encontrar um líder. O Kremlin festeja.

Vladimir Putin explora as dificuldades europeias — do gás ao trigo — apostando em dividir a UE, o que não é uma miragem. O soberanismo de Meloni e Salvini assusta Bruxelas e encanta Moscovo. O jornalista Claudio Lopapa, do La Repubblica, fala num "pacto celerado" desta direita soberano-populista: "O objectivo é afastar o país o mais longe possível da Europa da ‘Next Generation EU’ e do modelo Ursula. E aproximá-la da Hungria de Orbán."

Salvini viu arquivada a sua esperança de chegar à chefia do Governo e exige agora o Ministério do Interior para "tratar da saúde" aos imigrantes: promete começar a campanha eleitoral na simbólica ilha de Lampedusa, no dia 5 de Agosto.

O Partido Popular Europeu (PPE) está decidido a barrar o caminho a Meloni. Usará o argumento do seu passado pós-fascista. Mas é um expediente, escreve no Corriere della Sera o politólogo Massimo Franco. "A verdadeira questão é a atitude perante a Europa e a guerra da Rússia. É a sintonia anti-Bruxelas que o húngaro Viktor Orbán partilha com o FdL, a Liga e a FI."

Da diabolização

Proclamou há dias Matteo Lepore (PD), presidente de Florença: "Temos o fascismo às portas. No nosso país o fascismo nunca morreu e eu não quero voltar a ver os fascistas no governo."

É a habitual estratégia de "diabolização" do adversário. De facto, é sinal de fraqueza. A esquerda italiana tem experiência do fenómeno. Ao berlusconismo contrapôs um antiberlusconismo militante e obsessivo, que acabou por não dar nenhum efeito. O Berlusconi de hoje é a eloquente prova disso.

Bill Emmott, antigo director da Economist e colunista no La Stampa, explica que o problema de Meloni não é o fascismo mas a hesitação em romper os laços com grupos de extrema-direita que deveriam ser dissolvidos. Mas o FdI aprecia os seus votos. O problema real é a "questão económica": o seu populismo económico preocupa Bruxelas e os investidores internacionais. Levando o raciocínio mais longe, o diário Il Foglio garante que o programa económico de Meloni "é um buraco 80 mil milhões de euros".

O La Repubblica tem sido um dos jornais que tende a diabolizar Meloni. Corrige o seu principal analista, Stefano Folli: "É compreensível que do centro-esquerda tenha voado acusações de ‘fascismo’ ao Irmãos de Itália: as contradições e as zonas cinzentas daquele partido são evidentes. Mas seria estranho e uma autoflagelação se toda a campanha do PD se jogasse neste registo."

O fascismo é um velho fantasma que incita à preguiça mental e ajuda a encobrir o que verdadeiramente está em jogo: a reemergência das autocracias, a unidade da Europa e a guerra russa na Ucrânia.»

Jorge Almeida Fernandes
Newsletter do Público
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O trabalho sempre no centro

 


«Vai-se dizendo que resulta dos impactos da pandemia de covid-19 e da guerra na Ucrânia a inflação galopante que está a comer-nos boa parte dos salários e a deteriorar as condições de vida. Simultaneamente, por efeitos da pandemia e da guerra, são escandalosos os lucros oficiais (os reais serão maiores) dos acionistas de empresas dos subsetores da energia, das farmacêuticas, de distribuidoras de produtos alimentares, de potentados de bens de consumo, de bancos, de grandes proprietários e especuladores imobiliários.

Há, sem dúvida, pequenos e médios empresários que estão a ser espremidos, mas quem não tem condições de imputar custos a alguém é o consumidor final. E essa é a condição de todos os trabalhadores por conta de outrem, a grande maioria de quem trabalha. Quem tem baixos salários e pensões cai na pobreza. O reverso é a ampliação do número de ricos e a chocante concentração da riqueza. Para estes, a guerra é excecional oportunidade de negócios e de apropriação da riqueza.

Não fiquemos quietos perante esta vergonhosa injustiça. Há que desmistificar as crises e exigir rigor nas políticas gizadas sob a invocação da guerra. Os seres humanos não podem ser meras peças do mercado e o "trabalho não é uma mercadoria". Este foi o alerta universal, assumido em maio de 1944, em Filadélfia, como princípio a respeitar para que o sofrimento da II Guerra Mundial não se repetisse e os países pudessem recuperar do descalabro.

Estou sempre a bater na mesma tecla porque é imperioso: se queremos pôr fim às guerras e promover a paz, uma sociedade mais justa, alternativas políticas ao belicismo, respostas adequadas aos grandes bloqueios ambientais e ecológicos, uma utilização das tecnologias e do conhecimento ao serviço do bem comum, então o debate sobre o lugar central do trabalho na organização da economia e da sociedade tem de ser acutilante.

Salários mais justos, recusa das precariedades, o direito de todo o cidadão a não depender da caridade alheia são elementos centrais para melhor distribuição da riqueza, para defesa de sociedades democráticas e da paz. Por outro lado, é indispensável a fidelidade refletida no equilíbrio da relação entre direitos e deveres. O direito do trabalho e os sistemas de relações laborais equilibrados têm, exatamente, essa missão.

Os tempos são de alerta. Katrina vanden Heuvel ("Público", 27/7) analisa as razões por que os democratas dos EUA "estão a perder a classe trabalhadora" e conclui que foram as opções de "centristas" defendendo "as políticas neoliberais - desregulamentação, livre comércio, privatização - que levaram a este resultado". Ora, à escala europeia e no plano nacional, prosseguem estas práticas. Alimenta-se o tigre para que ele seja bonzinho.

Não há espaço para ilusões. O neoliberalismo necessita de forças ultraconservadoras e fascistas na governação dos países. As democracias liberais, atoladas em contradições e em falsa invocação de valores, facilitam-lhes o caminho. Ora, historicamente, a ultradireita e o fascismo penetraram nas sociedades e chegaram ao poder apresentando-se com preocupações obreiristas mobilizadoras. Aí instalados, aniquilaram os direitos laborais e sociais e as organizações dos trabalhadores.

Os milhares de milhões de euros que o Estado está a arrecadar, para além do previsto no Orçamento do Estado, vieram essencialmente do IVA e do IRS, pagos em enorme parte por trabalhadores e reformados. Espera-se que não lhes sejam roubados.»

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