5.8.22

Nancy Pelosi, pirómana virtuosa

 


«Não faltam crises ao pobre Presidente Joe Biden. A guerra da Rússia na Ucrânia é a mais delicada. E há o choque energético, a crise alimentar, a questão climática e a ameaça de novas crises, como a do nuclear iraniano. A senhora Nancy Pelosi, speaker da Câmara dos Representantes norte-americana, criou outra e mais grave com a sua visita a Taiwan, uma ilha com muito maior potencial explosivo do que a Ucrânia. O fim da visita não significa o encerramento da crise, antes marca o seu começo.

A última crise no Estreito de Taiwan, com dimensão militar, foi em 1995-1996 e durou oito meses. Teve como pretexto a autorização dos EUA ao então presidente de Taiwan para ir fazer uma conferência na sua antiga universidade americana. Era na altura a China muito mais débil e Washington respondeu com uma força aeronaval.

Terceira figura do Estado americano, Pelosi quis fechar o seu último mandato (os republicanos devem vencer as eleições intercalares) com chave de oiro. É inegavelmente coerente, crítica implacável de Pequim e amiga de Taipé. O seu ego apreciará o sucesso mediático e a ovação que a espera no Congresso. Vale a sua glória uma crise internacional? Nem Biden nem os conselheiros militares a conseguiram dissuadir. Agora, nem Biden nem Xi podem recuar sem perder a face.

Pequim não tem naturalmente nenhum direito para determinar quem tem autorização para visitar Taipé. Mas uma figura de Estado que lá vai deve pesar as consequências. Chama-se a isso ética da responsabilidade.

Ela escolheu o pior momento, abrindo uma frente de confronto com a China quando está a decorrer uma guerra na Europa. Ela sabia que seria uma afronta pessoal para Xi Jinping, quando Biden procurava melhorar as relações bilaterais. E estava certamente consciente de provocar uma reacção "musculada" de Pequim.

Em vésperas do X Congresso do Partido Comunista Chinês, em que deverá ser reeleito para um terceiro mandato, Xi debate-se com dificuldades internas, económicas e sociais. Para Pequim, a iniciativa de Pelosi foi uma deliberada "humilhação", sinal de que Washington vai aos poucos abandonando a doutrina de "uma só China".

Não haverá guerra. A China não está preparada para desafiar os Estados Unidos invadindo Taiwan. Estamos perante as primeiras represálias, mas a crise poderá durar meses ou até anos, previnem os analistas. Na opinião de Carlos Gaspar, esta quarta crise do estreito de Taiwan pode ser o início de uma contagem decrescente para a invasão.

Para já, a reacção de Pequim começa a ser muito parecida com um bloqueio de Taiwan, de imprevisíveis consequências. Até agora, a legitimidade do regime comunista assentava no seu sucesso económico e na ascensão social. Hoje, com Xi, o nacionalismo passou a ser um factor muito importante, o que condiciona o comportamento do partido.

A importância de Taiwan

Deixemos de lado as peripécias. Uma crise em Taiwan é muito mais perigosa do que a da Ucrânia.

Por um lado, coloca em confronto as duas maiores potências mundiais.

Por outro, a ilha tem uma importância estratégia única. Pela sua posição nas rotas navais por onde circula a energia para dois aliados ocidentais, Japão e Coreia do Sul. "É uma superpotência tecnológica que produz 60% dos semicondutores mundiais", escreve Federico Rampini, no Corriere della Sera. "A sua queda nas mãos do regime comunista seria fatal para os equilíbrios do Indo-Pacífico, onde se joga o futuro do planeta. Os Estados Unidos consideram aquela área o centro dos seus interesses vitais, mais do que a velha Europa."

Observa Tiejun Zhang, no Diplomat, citando o sinólogo Robert Ross: "A Ásia Oriental é bipolar, com os Estados Unidos como potência marítima dominante e a China como potência terrestre dominante, com Taiwan exactamente colocada entre estas duas esferas. A este respeito, quem controlar Taiwan ganhará vantagem sobre o outro."

Há, enfim, uma outra dimensão. A superpotência americana corre o risco de alargar excessivamente os seus alvos, do ponto de vista militar, político, logístico e diplomático, num movimento que excede os seus recursos económico-militares e pode levar ao declínio.

Assim vai a América. A última coisa que lhe faltava era a descoordenação na política externa perante o seu principal adversário. Como diz a Economist, "transformaram a ambiguidade estratégica em confusão estratégica".

A speaker Pelosi exibiu a virtude. Mas a situação de Taiwan é certamente mais perigosa e insegura do que antes da visita.»

Jorge Almeida Fernandes
Newsletter do Público, 04.08.2022
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