9.7.22

Transportes noutros mundos (1-11)

 

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09.07.1935 – Mercedes Sosa

 


Mercedes Sosa faria hoje 87 anos. Nasceu no Noroeste dessa extraordinária terra que é a Argentina, em San Miguel de Tucumán, cidade onde também num 9 de Julho foi declarada a independência do país (em 1816).

Quando a Junta Militar de Jorge Videla subiu ao poder e se foi tornando cada vez mais agressiva, Mercedes, considerada peronista de esquerda, foi detida durante um concerto em La Plata, em 1979, refugiou-se depois em Paris e em Madrid e só regressou a Buenos Aires, e ao magnífico Teatro Colón, em 1982.







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Marcelo versus Tomás



 

Eu tenho resistido a comparar alguns discursos de Marcelo com os de Américo Tomás. Mas realmente…

«O Presidente José Eduardo dos Santos teve como interlocutores todos os presidentes da democracia portuguesa, que é um caso único. Foram muitas décadas de relacionamento entre Angola e Portugal, Portugal e Angola e, naturalmente, todos os governos que, entretanto, coincidiram com esses mandatos, o que significa que foi um protagonista decisivo desde o final dos anos 70 até à substituição pelo Presidente João Lourenço, em 2019.» (Expresso)

(P.S. – Ainda por cima, há um erro crasso nestas afirmações: JES foi presidente de Angola desde Setembro de 1979 e nunca lidou, portanto, com Spínola e Costa Gomes. Mesmo sem terem sido eleitos, foram PRs em democracia, não vivemos em ditadura até à eleição de Eanes.) 
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A grande ferida da Índia

 


«A Índia, a segunda mais populosa nação do planeta, continua a mudar aceleradamente. Temos seguido com alguma atenção as suas tomadas de posição sobre a guerra da Ucrânia e a sua ambígua colocação geopolítica, entre Estados Unidos, a China e a Rússia. A Índia é uma das chaves estratégicas do Indo-Pacífico, mas o seu futuro será essencialmente marcado pela luta interna que a dilacera.

A Índia continua o processo de transformação de uma democracia secular e plural numa "democracia étnica" e caminha para o confronto violento entre as duas maiores comunidades, hindus e muçulmanos. O regime de Narendra Modi e do Bahratiya Janata Party (BJP, Partido do Povo Indiano), que tomou o poder nas eleições de 2014, acelera o desmantelamento do modelo secularista indiano e a imposição daquilo a que chama hindutva (hinduanidade).

Trata-se de destruir a Índia laica, uma sociedade quase multicultural. Num prazo de 100 anos, o marginal fundamentalismo hindu transformou-se na ideologia dominante no país e que governa a grande maioria dos estados. Na base está uma concepção supremacista, a hindutva, que trabalha pela "construção de um Estado hindu (Hindu Rashstra), dotado de uma cultura hindu, com uma única língua, o hindi, e uma religião, o hinduísmo", escreve a partir de Benares, Índia, Sophie Landrin, enviada do Monde. "Segundo os seus doutrinários, só os hinduístas são indianos. Muçulmanos e cristãos não podem ser considerados indianos porque as suas religiões nasceram fora da Índia." A liberdade religiosa exercer-se-ia num plano privado, deixando ao hinduísmo o monopólio do espaço público.

A Índia move-se em direcção a uma nova forma de democracia, que considera a comunidade maioritária sinónimo da nação e na qual os muçulmanos e cristãos são cidadãos de segunda classe, que são assediados por bandos vigilantes, resume o indianista Christophe Jaffrelot, no recentíssimo Modi's India: Hindu Nationalism and the Rise of Ethnic Democracy (2021). >
A reforma de Modi, está a conduzir à centralização do poder em detrimento do modelo federal, enquanto surgem traços de autoritarismo. E as principais instituições, e sobretudo as da Justiça, são progressivamente esvaziadas de poder.

Os motins

Desde Fevereiro de 2020, que motins provocados pelo BJP fizeram uma cinquentena de mortos nos bairros mistos de Nova Deli. No Outono de 2021, o estado do Assam foi teatro de violência contra a minoria muçulmana. Nesta Primavera, assistiu-se a ataques e expedições punitivas nos bairros muçulmanos do Uttar Pradesh, Gujarat e de novo em Nova Deli, tendo sido alguns arrasados a buldózer.

As mesquitas tornaram-se o principal pretexto de conflito. Os fundamentalistas proclamam que muitas delas foram edificadas sobre templos hindus arrasados e por isso exige a sua substituição por templos seus. Há também casos ridículos como o do Taj Mahal, o mais conhecido e visitado monumento do país. Foi retirado de todos os guias de viagens oficiais, porque não é de origem hindu…

Resume a jornalista Landrin: "O cenário concebido pelos nacionalistas hindus desenrola-se em três tempos. Provocações, afrontamentos, sanções. Multidões cor de açafrão, armadas de sabres ou pistolas, frequentemente exteriores aos bairros, aproveitam as procissões religiosas para desafiar ou maltratar muçulmanos, até à entrada das mesquitas, cantando slogans hostis ou cânticos incitando ao assassínio de muçulmanos e dos que recusam a hindutva."

Há um elevado risco de generalização da "violência comunitária". Hoje, estas acções já não são apenas dirigidas pelos bandos armados fundamentalistas, mas também aparecem espontaneamente milhões de hindus, na cidade ou nos campos, a querem ajustar contas com os muçulmanos.

"Os muçulmanos estão confrontados com um futuro incerto, com o sentimento perturbador de terem um alvo afixado nas costas", diz ao Monde o politólogo Asim Ali, da Universidade de Nova Deli.

A solidariedade árabe é curiosa. Quando há uma ofensa ao Profeta, o mundo árabe indigna-se e Modi pede desculpa. Quando as vítimas são muçulmanas, "os irmãos" costumam olhar para o lado.

Na Índia, há 200 milhões de muçulmanos, afogados numa maioria de 80% de hindus. São comunidades que hoje vivem separadas. Não se deve confundir hinduísmo com hindutva, nem hindu com fundamentalista. Mas cresce a islamofobia.

A par da hindutva, discute-se também o fascismo que, nos anos 1920-30, influenciou o fundamentalismo hindu. Jaffrelot explica que o modelo de Modi não é o fascismo, não é um Estado totalitário. "É modelar a sociedade segundo os valores e símbolos hindus". O mesmo diz há anos o historiador Ramachandra Guha, para quem é perigoso confundir o passado com o presente. Indefectível crítico de Modi, diz que falar em fascismo "é sucumbir a um infeliz e prematuro alarmismo. A democracia sobreviverá." Se a Índia está a sofrer uma mudança drástica, por que não fará outra mais tarde?»

Jorge Almeida Fernandes
Newsletter do Público (07.07.2022)
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8.7.22

Transportes noutros mundos (11)

 


Nada mais adequado do que estes românticos barcos para um passeio no Rio Perfumado. Hue, Vietname (2009).
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Entretanto na AR

 


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Edgar Morin

 


Conheci-o como está nesta fotografia, tirada de um novo «site» do Centro Nacional de Cultura sobre Helena Vaz da Silva, numa das suas primeiras vindas a Portugal nos idos de 60, sempre presente num mundo a que eu também pertencia. Lembro-me de muitas reuniões e colóquios, e até de termos assistido, na TV e em grande grupo, a um decisivo desafio de futebol seguido por uma festa/bailarico – éramos assim…
Também, de ter convivido com ele no Algarve, em casa de amigos muito próximos, onde se refugiara para escrever. Há mais de meio século, sim, e continuo a lê-lo no Twitter, onde já lhe deixei hoje desejos de um feliz aniversário.
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O amplo consonso

 


«Depois de 50 anos de estudos, hipóteses e projectos, a localização do novo aeroporto de Lisboa foi finalmente decidida. Infelizmente, a decisão durou apenas umas 12 horas, e nós precisávamos do aeroporto durante um período um pouco mais alargado. Em vez de um aeroporto, o Governo anunciou a construção de dois. No dia seguinte, o mesmo Governo disse que, até ver, não seria construído nenhum. As pessoas que receavam que um Governo de maioria absoluta não tivesse uma oposição forte perceberam que tinham feito figura de parvas. O Governo governa e faz oposição. Nos outros partidos, ninguém fez maior crítica à inépcia do Governo do que o ministro que se fartou e resolveu decidir sozinho. E ninguém apontou mais erros ao ministro do que o primeiro-ministro quando o desautorizou. A oposição fica sem saber o que fazer. Como criticar o Governo por não decidir se o ministro decidiu mesmo? E como criticar o Governo por decidir precipitadamente se o primeiro-ministro revogou logo a seguir? Como acusar o ministro de falta de diálogo com a oposição se ele, ao que parece, nem com os companheiros de Governo dialoga? Se até o resto do Governo sabe das decisões pelo “Diário da República”, com que direito é que a oposição poderia exigir ser mantida ao corrente das decisões? É um método de governação em que o Governo faz tudo e ao mesmo tempo não faz nada. E por isso todas as críticas são legítimas, mas infelizmente também são todas infundadas.

O resultado é que a localização do novo aeroporto continua por decidir. Recordo que qualquer processo de decisão, em Portugal, compreende duas fases. Numa primeira fase, o problema é alvo de um debate alargado. Se não for alargado, o debate não serve. Depois do debate alargado, há que chegar a um amplo consenso. Como se sabe, há matérias que só podem ser decididas com base num amplo consenso. É, aliás, muito raro os consensos serem outra coisa além de amplos. Tenho verificado que, se não forem amplos, os consensos não satisfazem. O problema é que a amplitude do consenso pode sempre ser maior. Com jeito, um consenso amplo pode ficar ainda um pouco mais amplo. E por isso a busca de um amplo consenso transforma-se frequentemente numa desculpa sonsa para que nada se decida. Na maior parte das vezes, um amplo consenso é um amplo consonso.»

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7.7.22

Transportes noutros mundos (10)

 


A piroga é o meio de transporte para tudo, no belo Lago Inle, Birmânia (2009).
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Frida Kahlo

 


Teria chegado ontem aos 115, mas nem viu os 68.
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As minhas desculpas às gerações futuras

 


«Peço, modestamente, desculpas às gerações futuras pelo mundo caótico que lhes vamos deixar devido à destruição da natureza. Peço desculpas à grande parte da população mundial e às gerações passadas que sofreram com os efeitos da globalização, e que vivem em miséria para nós, ocidentais, podermos viver na opulência. Peço perdão aos milhares de seres vivos que desaparecem todos os dias, devido à nossa actividade predatória. (…)

Enfrentar esse desafio implicaria, antes de mais, incentivar uma diminuição drástica dos nossos consumos energéticos e materiais. Fabricar milhares de milhões de painéis solares e construir milhões de eólicas e carros eléctricos nunca vai ser a solução. Os decisores esqueceram-se de um pormenor importante: a transição “verde” que eles pretendem mobilizaria quantidades colossais de matérias-primas e energia. (…)

Mas, então, o que podemos fazer? Começar por identificar o principal “culpado”: o sistema socioeconómico ocidental globalizado, baseado na maximização do lucro a todo o custo e na busca obstinada pelo crescimento. O chamado capitalismo. A solução é substituir esse sistema por um sistema justo e em equilíbrio com o meio natural. Enquanto não atacarmos o cerne do problema, as soluções propostas estarão destinadas ao fracasso.»

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“Pouco fita a Europa, a não ser mortos”



 

«Foram pelo menos 37 mortos, embora algumas organizações de direitos humanos falem já de 45. São as vítimas do massacre de Melilla do passado 24 de junho, dia de São João. Morreram asfixiados ou esmagados entre os muros e as barras da fronteira, morreram depois de cair da cerca que separa o território marroquino do europeu, naquele enclave espanhol. Morreram depois de agonizar durante horas ao sol, sob o olhar da polícia, sem qualquer assistência. “Era tudo sangue, tudo sangue”, disse ao El Pais um dos trabalhadores chamados para limpar o cenário depois da chacina.

Nesse dia, cerca de 2 mil pessoas aproximaram-se do perímetro da fronteira para tentarem alcançar a Europa. 133 conseguiram, cerca de mil estão detidas, mais de 300 foram hospitalizadas depois do tratamento cruel e desumano das autoridades, que não lhes prestaram qualquer socorro, como era seu dever. Os mortos foram enterrados sem autópsias, sem identificação, sem informar as famílias - garantindo assim a impossibilidade de uma investigação séria sobre o que se passou.

Na sequência da tragédia, Pedro Sanchez, chefe do Governo espanhol liderado pelos socialistas, felicitou o trabalho da polícia marroquina. Foi um problema “bem resolvido”, declarou. As afirmações, somadas ao desprezo pelos direitos humanos por parte das polícias dos dois países, fizeram escândalo. Em março, Sanchez já tinha tomado uma decisão chocante, ao apoiar as pretensões do rei de Marrocos relativamente ao Saara Ociental, antiga colónia espanhola ocupada há décadas por Marrocos, que ali exerce violência e repressão política quotidiana contra a resistência Saharaui. Puro comércio de princípios, com decisões políticas para as quais os Direitos Humanos valem zero.

Na sequência da tragédia de Melilla, várias organizações, como os Médicos do Mundo, denunciaram tratar-se de “uma consequência direta da política europeia e espanhola de externalização das fronteiras, que transfere o controlo das suas fronteiras externas para países terceiros, em troca de uma substancial ajuda financeira”. Helena Maleno, da organização Caminando Fronteras, não hesitou em afirmar que “as relações entre Marrocos e Espanha estão manchadas de sangue.”

Se o primeiro-ministro espanhol não dirigiu uma única crítica a Marrocos, o primeiro-ministro português também nada disse sobre o seu congénere espanhol. Juntos na Cimeira da NATO em Madrid, na semana passada, Costa e Sanchez tiveram todavia uma proposta em uníssono: a de que a NATO (de que Portugal foi fundador por iniciativa de Salazar, não esqueçamos) dedique recursos e prioridade, para lá da Ucrânia, à “segurança do flanco sul da Aliança”, nomeadamente mobilizando recursos de defesa para combater “a pressão da imigração ilegal”, considerada pelos dois governos como uma “séria ameaça” à “segurança do sul europeu”.

Como outros governos europeus, também o nosso tem os direitos humanos na boca, mas engole em silêncio se as vítimas estiverem em Melilla ou em Ceuta. Portugal, que Pessoa apresentou como rosto da Europa, figura jazendo virada para o oceano, apoiada nos cotovelos, fitando o ocidente “com olhar esfíngico e fatal”, não tem vista, afinal, para estes crimes. “Não tem olhos, nem mãos,/nem fita nada, a Europa. Nem cotovelos tem/ que possam suportar justiças e bondade”, escreveu Ana Luísa Amaral, há alguns anos, num livro em que desmonta lucidamente tantas histórias por contar na nossa História e na nossa literatura. Como esta, agora. “Pouco fita a Europa, a não ser mortos”. E no nosso silêncio se putrefaz.»

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6.7.22

Transportes noutros mundos (9)

 


Não se vê, mas vão por aqui milhares de motoretas! É assim o trânsito (ou era quando lá estive…) em Hanói, Vietname (2009).
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Mia Couto

 


Chegou ontem aos 67. Já?
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Diálogo de férias 2022

 


- Então como foram as tuas férias?

- Óptimas e só na Europa! Andei de fila em fila, em vários aeroportos, conheci imensa gente, trocámos impressões sobre as filas que esperavam alguns para verem a catedral de Barcelona, a felicidade de outros que só tinham gastado duas horas para entrarem nos Jerónimos, a desilusão de uns tantos que nem conseguiram ter direito a estar numa fila para conhecerem a casa de Anne Frank.
Já era um pouco assim dantes. Mas depois de dois anos de pandemia, 2022 foi diferente e mais giro, estamos sempre a aprender. Em 2023, já teremos entranhado este novo modo de conhecer o mundo.
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Não se queixe, o caos do aeroporto é o sucesso do mercado

 


«O número de voos europeus cancelados em junho foi o triplo do que ocorrera antes da pandemia. Nos Estados Unidos, pior. Julho ultrapassará estes recordes e já nos dizem que agosto será uma aventura. Os aeroportos são um pandemónio, há quem durma várias noites seguidas pelo edifício, conseguir apanhar um voo confirmado tornou-se uma lotaria, a burocracia é uma réplica d' “O Processo” de Kafka, não sabe, não está, não diz a que pena foram condenados os pobres passageiros, que esperam até chegar a esmola do ocasional cumprimento do contrato.

Este é o resultado de um notável sucesso. O mercado, como agora delicadamente se chama às empresas que dominam o setor, cumpriu de modo exemplar o seu desígnio, manobrou para aumentar a margem de lucro da operação. De facto, durante a pandemia, outras empresas foram apoiadas para manter os postos de trabalho; em contrapartida, as companhias aéreas foram financiadas para despedir 20% dos seus trabalhadores. Ao mesmo tempo que garantiam que tudo voltaria ao normal depois da emergência sanitária, as administrações e os seus ministros davam luz verde a um dos mais radicais despedimentos coletivos num setor das últimas décadas. Acabada a restrição, fizeram a conta e decidiram restabelecer o nível anterior de oferta com menos funcionários, além de manterem os cortes salariais que tinham sido justificados pela conjuntura passada.

Esta decisão provocou duas consequências. A primeira, a origem essencial do caos atual, é que há falta de trabalhadores. Faltam pilotos, falta pessoal de cabine, faltam administrativos, faltam seguranças, faltam funcionários de limpeza, falta tudo. E não é fácil substituí-los, considerando as condições agora oferecidas, empregos sazonais, salários baixos, turnos imprevisíveis, pressão constante, hostilidade dos clientes sacrificados, incerteza. Assim, sob a pressão da gigantesca procura de multidões que recuperam a sua ânsia de viajar e chegado o tempo de férias, os serviços colapsaram sem piedade. E, como há um efeito de dominó num sistema tão complexo e interdependente, um atraso provoca outros e, quando já são muitos, a crise agiganta-se e torna-se imparável. Nenhum dos aeroportos europeus escapa a este cenário, de Heathrow a Frankfurt, e as mais solenes das companhias andam a fugir dos seus clientes despejados nos aeroportos.

A segunda consequência é que, confrontados com perpetuação dos cortes que lhes tinham sido anunciados como emergenciais e momentâneos, quem trabalha no setor pressiona as administrações, usando o poder negocial que agora aumentou. Com algum cinismo, as empresas reclamam dos trabalhadores a aceitação de regras excepcionais ao mesmo tempo que dizem aos clientes que está tudo normalizado e milhões de pessoas compram passagens. O melhor ano do turismo, vangloriam-se os governantes, enquanto explicam que os salários devem manter-se comprimidos porque haveria uma crise que a realidade e os seus próprios discursos desmentem. Algumas empresas começam a ceder, embora propondo aumentos abaixo da inflação e por vezes recusando a reposição dos acordos anteriores. As greves vão continuar.

Para os clientes, este é um cenário de horror. Era tão fácil comprar o bilhete online, fazer o check-in online, passar por portarias eletrónicas, seguir pelo centro comercial adentro e chegar ao avião, não era? O problema é quando se precisa de falar com alguém. As pessoas desapareceram deste paraíso digital. Não se pode telefonar, ficamos presos num labirinto de códigos e gravações; não se encontra ninguém que diga quando é o próximo voo, ou se a empresa cumpre a obrigação de fornecer entretanto o hotel (e há lugar em algum hotel?), os transportes e as refeições. Não existe vivalma, é como se o cliente tivesse aterrado num planeta deserto e só tivesse náufragos à sua volta. E isso permite que as empresas usem o truque da clandestinidade para o abuso: em Lisboa, perante o desaparecimento das companhias aéreas, a solução é dormir no chão; num aeroporto alemão, viajantes afortunados receberam uma senha de 4 euros para as refeições do dia. E experimente fazer uma reclamação, busca pela internet um sítio com um formulário, receberá depois uma resposta automática e vai com sorte, mergulhou num abismo que não sabe se alguma vez lhe responderá.

Diga lá que isto não é um sucesso do mercado? Os trabalhadores reduzidos a robôs, os clientes conduzidos como gado, os pagamentos já foram feitos, deixe estar que isto há-de passar.»

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5.7.22

Transportes noutros mundos (8)

 


Pousar de helicóptero para andar pelo Glaciar Mendenhall, Alasca, EUA (2008).
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Isto não se inventa

 


A realidade ultrapassa a imaginação possível.
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Ou a lógica é uma batata

 

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Costa, o político imprevisível

 



Não é a primeira vez que António Costa surpreende o país com uma solução completamente distinta daquela que se esperava. Aconteceu com a “geringonça”, um golpe de asa que poucos acreditavam poder ter sucesso (lembro-me bem das conversas que tive na altura com políticos de vários partidos e das dúvidas que havia, apesar das pistas que iam sendo dadas). Foi assim nos incêndios mortíferos de 2017, que teriam feito cair qualquer Governo, mas que só mais tarde (e por pressão presidencial) resultaram na saída da ministra da Administração Interna. Foi assim quando o depauperado SNS reverteu a desgraça da pandemia, havendo momentos em que Portugal chegou a ser um exemplo para outros países. E foi assim em muitas outras ocasiões críticas para o executivo: o assalto em Tancos, o tempo de serviço dos professores, o chumbo do orçamento, as eleições antecipadas. 

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Biden tem a solução para a falta de mão-de-obra

 


«Aeroportos e companhias áreas responderam com prontidão à acelerada redução de receitas que a pandemia implicou e reduziram substancialmente o número dos seus funcionários. O caos nos principais aeroportos, com especial impacto nas principais plataformas europeias de distribuição, replica o congestionamento em rede. Lisboa não é excepção.

As companhias foram mais diligentes a despedir do que a contratar, ou porque o queriam evitar ou porque foram incapazes de prever a avalanche que se aproximava da pista. O cenário torna-se ainda mais tortuoso quando as dificuldades se transformam no momento certeiro para fazer greve em nome da melhoria de condições laborais.

Mas, quer em Portugal, quer na esmagadora dos países europeus, ninguém se precaveu, também, para os congestionamentos que o fluxo de passageiros iria trazer ao controlo de entradas e saídas do país. Má gestão de recursos, condições salariais insatisfatórias e ausência de planeamento acabaram por impedir que as companhias tivessem capacidade de dar resposta a esta súbita explosão. No caso nacional, é notório que o crescimento turístico tem vindo a crescer a um ritmo superior ao registado na pré-pandemia, pelo menos desde a Páscoa, e em grande parte devido ao mercado interno.

Ninguém põe em causa a importância do turismo na economia portuguesa. Também é consensual que essa importância é desmesurada e que decorre da ausência de um plano estratégico de desenvolvimento económico digno desse nome. O turismo tem, desde logo, um efeito crucial no mercado de trabalho, ao representar mais de 5 por cento do total nacional.

O problema, toda a gente sabe, é este: horários prolongados e imprevisíveis, condições precárias, contratos sazonais, ausência de evolução na carreira e baixos salários (a remuneração média por trabalhador, neste sector, é inferior à média nacional). Bradar aos ventos, como faz parte do sector, de que não há trabalhadores disponíveis esconde a verdadeira questão: já não há trabalhadores disponíveis para aceitar aquelas condições. O mercado de trabalho está a mudar.

A crise do transporte aéreo, como lhe chama a presidente executiva da TAP, que a justifica pela ausência de trabalhadores a nível global, pode não estar solucionada antes do pico das férias. A falta de mão-de-obra na hotelaria portuguesa também não. A carreira não é atractiva e a alternativa pode ser recrutar fora do país, se este deixar de se empanturrar com burocracia. A outra solução é esta, e é de Joe Biden: “Pay them more” [Paguem-lhes mais]...»

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4.7.22

Transportes noutros mundos (7)

 


À espera de turistas para grandes passeios no Bósforo. Istambul, Turquia (2011).
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Pedro Nuno Santos

 


«Pedro Nuno Santos é uma das raras figuras nacionais do PS com uma trajetória político-ideológica. Chamem-lhe dogmatismo, se quiserem, ou coerência, se preferirem o elogio à crítica. Mas a verdade é que navega orientado por uma ideia: é preciso que o PS não tenha vergonha de ser socialista. Ideia esta que, por sua vez, combina com uma estratégia política que nunca escondeu: é preciso um governo do PS apoiado pela esquerda. E sendo que à ideia e à estratégia se associa um discurso económico-social sobre o país, no qual a noção de povo inspira simultaneamente justiça social e mobilização produtiva do Estado.

Haverá certamente razões para objetar ao comportamento do ministro na última semana, mas não nos iludamos. É por ele ter uma ideia que não falta quem lhe chame radical. É porque a ideia que tem envolve uma estratégia que não falta quem lhe critique a ambição. E é porque o seu discurso sobre o país mete as mãos na economia que não falta quem o considere irresponsável. Assim é e será enquanto continuarmos a dar por adquirido que responsabilidade é deixar os mercados entregues à sua vidinha, sem fazer grandes ondas; que a ambição é um exclusivo dos empresários e outros empreendedores de causas individuais que começam e acabam na sua própria pessoa; e que as ideias, estas, são matéria para mero consumo filosófico ou para mais um qualquer fórum republicano de reflexão.

Não sei se os danos de reputação sofridos recentemente pela figura de Pedro Nuno Santos são irreparáveis. Se forem, o principal prejudicado será o PS. Deixará terreno livre à sua esquerda, que é para o lado em que eu durmo melhor, mas tornará a vida mais fácil às novas direitas. É que as ideias, a estratégia e o discurso de Pedro Nuno Santos são também os que, no espaço do PS, mais capacidade terão de disputar terreno - se não a curto, pelo menos a médio e longo prazo - às novas direitas. O discurso económico de Pedro Nuno Santos é coletivista onde o da Iniciativa Liberal é individualista, mas em ambos os casos há a noção de que a economia se faz de moralismo quotidiano e de idealismo histórico. Quanto ao Chega, se encontra frontal oposição no socialismo desavergonhado de Pedro Nuno Santos, encontra igualmente aí uma esquerda que não tem medo de ser apodada de populista.» 

Zé Neves no Facebook
(Assino por baixo.)
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Aeroportos



 

Wow. Line for security @Schiphol in Amsterdam. Tents built outside cannot accommodate lines. You are seeing 60% of line.

Arvin George no Twitter
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O passismo voltou, que a gestão ao centro está ocupada

 


«Quem julga ter ouvido alguma clareza em relação a futuros entendimentos com o Chega estará à espera que o PSD-Açores, que passou alguns “muros” para “sobreviver politicamente”, perca em breve a confiança do PSD nacional. Ou então não ouviram o que julgaram que ouviram. O que ouviram foi uma desculpa para regressar ao nunca resolvido ressentimento dos passistas com 2015. Montenegro não queria falar do Chega, mas da “geringonça”. Logo no início da intervenção, não queria dizer ao que vinha, mas de onde vinha. E a incompreensão do que foi a “geringonça” é evidente quando pinta um retrato tremendo sobre a forma como os portugueses olham para os últimos seis anos, esmagadoramente desmentido pelos resultados eleitorais.

É justa a critica ao governo de gestão em que se está a transformar o executivo de um Costa esgotado de soluções depois revertido o que os partidos à sua esquerda o obrigaram a reverter. A questão é se um político com o perfil de Montenegro, formado na mesma cultura da vacuidade programática de Costa, faria diferente. É justa a critica à falta de investimento nos serviços públicos. Mas essa crítica não teve tradução no resto da intervenção do novo líder do PSD.

O guião foi o habitual: a esquerda tem ideologia, a direita tem soluções para as pessoas. Garantido o remate preguiçoso, Montenegro fez uma intervenção quase exclusivamente ideológica. Baseado num conceito de liberdade essencialmente anti-social-democrata – basta ouvir militantes e dirigentes a explicarem o que é ser social-democrata para perceber até onde pode ir a ignorância sobre o conceito que deu nome ao partido em que se filiaram –, o debate que Montenegro propõe fazer sobre políticas públicas é o de saber o que mais pode ser entregue ao privado. Mais nada de relevante existe no seu esboço programático.

Para o Serviço Nacional de Saúde, a cartilha é a de sempre, seja qual for o problema: é preciso recorrer ao privado contra o qual o Estado tem, apesar de gastar 40% dos seus recursos em saúde com ele, um preconceito ideológico. Nem uma proposta sobre a fixação de profissionais ou investimento no SNS. Porque, de uma forma mais clara do que alguma vez foi feito no PSD, a Montenegro parece querer, como a IL, transferir para o setor privado a generalidade da prestação de serviços de saúde, reservando ao Estado o papel de mero financiador. Se não é isto, o resto não esteve no seu discurso.

Até quando fala do ensino pré-escolar, defende que o “preconceito ideológico” não deve levar o Estado a querer concorrer com o privado. A questão já não é só a necessidade de recorrer ao privado, é abster-se de criar uma rede pública para não criar concorrência ao negócio. IL, cá está ela de novo.

Nas propostas do combate à carestia de vida e à inflação, os salários estiveram ausentes. Montenegro propõe um programa assistencialista. Com um programa de emergência que deve aproveitar os ganhos fiscais com a inflação, apesar de no mesmo momento propor baixar os impostos e dispensar esses ganhos fiscais. Como de costume, o PSD promete as vantagens dos impostos – a receita – sem as desvantagens dos impostos – a cobrança.

Ou talvez esteja a ser injusto. Como a IL, Montenegro acreditará que o milagre económico de baixar os impostos dará mais receitas ao Estado. Tudo o resto que disse sobre economia foi menos do que genérico. Baixar os impostos e a conversa genérica também vão conseguir reter os jovens no país.

Dirão que o PSD é um partido reformista. Não, não é. O PSD foi, a começar pela criação do SNS, contra muitas reformas importantes que se fizeram neste país. E volta a sê-lo. Opondo-se, com algumas boas razões, à farsa da descentralização em curso, já se percebeu como voltará a impedir, como no passado, uma das mais importantes reformas administrativas: a regionalização. Desta vez é por causa da Ucrânia. Apesar da proposta de referendo ser para 2024, Montenegro já sabe que daqui a dois anos não haverá condições para esse referendo, sem o qual a regionalização não se pode fazer.

Quando falo da IL, falo dos órfãos mais jovens e radicalizados do passismo, que abandonaram as fileiras da direita de sempre, vestiram umas farpelas modernas nos costumes a que dão importância nula, e criaram um grupo de visionários fanáticos. Pode ser que se safem fora da casa de partida, porque o entusiasmo da base do PSD com o novo líder pode ser apenas a certeza de que tão cedo não arranjam outro. Mas a sua agenda, almofadada com umas juras de amor vagas e inconsequentes ao Estado Social, estava toda no discurso de Montenegro.

Os nomes que o acompanham, sinal de uma lufada de ar fresco no partido, ilustram o regresso ao passado, a começar por Maria Luís Albuquerque. Montenegro é a versão sorridente e simplificada do Passos antes da troika, que já prometia uma guinada do partido à direita. O problema é que, como tantas vezes recordou Rui Rio, que as perdeu todas, as eleições não se vencem, perdem-se. E se Costa nos oferecer quatro anos de gestão corrente o poder pode cair no colo de qualquer um. Como os passistas bem sabem.

O passismo está de volta. Não vejo qualquer drama. Têm uma agenda ideológica clara, as provas dadas pelo passado e o centro ocupado por um PS que se prepara para quatro anos que já cheiram a pântano. Mas, por rigor, o PSD devia tirar o “social-democrata”, corrente ideológica de que é agora declarada adversária, da sigla.»

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3.7.22

Transportes noutros mundos (6)

 


Ver nascer o dia, num destes balões, por cima dos milhares de templos de Bagan, Birmânia (2009).
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03.07.1883 – Franz Kafka

 

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Exactamente

 

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Observar o Observador

 


«O Observador publicou um artigo de opinião, de Lucas Claro, com o título A Grande Substituição, e com conteúdo à altura do título, cuja leitura nem recomendo. Pretende o autor, segundo referiu, que se inicie em Portugal o debate à volta deste tema.

De que estamos a falar?

A mais fina flor da extrema-direita europeia e os supremacistas brancos nos Estados Unidos, de forma clara, têm chamado a atenção para um problema que os preocupa e que assusta o autor do artigo: pelo andar da carruagem, qualquer dia estamos todos misturados e perdemos a pureza dos nossos genes. Nas palavras de Lucas Claro: “(...) uma população que em momento algum foi consultada sobre se efetivamente desejava tornar-se uma minoria no seu próprio país.”

A que população se referirá o autor?

Não será certamente aos portugueses. Não parece estar aqui em causa o critério da nacionalidade. O autor aponta o número de estrangeiros que obtiveram a nacionalidade portuguesa durante o ano de 2020 (149.157) e mais adiante continua, implicitamente, a incluí-los no universo dos estrangeiros a residir em Portugal. Chama ainda a atenção para o facto de os sucessivos governos não serem claros relativamente ao número de estrangeiros a residir por cá. Uma espécie de: “eles não têm coragem de nos contar o perigo que corremos”.

A população que merece os cuidados dos adeptos desta teoria são os nacionais de origem certificada, os caucasianos, os tugas puro-sangue no nosso caso ou os eurodescendentes no caso dos Estados Unidos. Seria interessante averiguar se consideram um luso-descendente, com nacionalidade estadunidense, como estando incluído no grupo a preservar ou como fazendo parte da ameaça estrangeira.

O artigo tem mais pérolas como a de se referir ao Martim Moniz como “bairro histórico da nossa Capital” em vez de praça. Fala também em alfacinhas de gema. Certo. É uma pessoa que aprecia os portugueses, e os que vivem em Portugal, como se apreciam as peças de um carro: deve saber-se se são de origem.

Mas o artigo em causa tem uma relevância e só por isso vale a pena falar dele: traz para a imprensa uma teoria que, mais do que ser de extrema-direita, é efetivamente nazi e tem sido inspiração para atentados terroristas e massacres. Nada como avançarmos firmes, mesmo que seja na direção do abismo. Ficou escrito preto no branco. Corrijo: como é no Observador ficou branco no preto. Têm essa opção.

Aos portugueses que possam estar preocupados com a substituição da nossa estirpe ou com a sua diluição através de misturas ou cruzamentos com outras, tenho a dizer algumas coisas.

Reparem que aqueles que se consideram a pura representação dos nossos genes portugueses não são pessoas particularmente beneficiadas pela inteligência. Imaginem um país onde predominassem pessoas como o autor do artigo em causa. É que mesmo sem saber quem é, ou o que faz, deve temer-se o pior.

Temos várias minorias neste país. Desses, a única que realmente nos pode preocupar é a formada por fascistas, racistas e, está à vista que também os há, nazis. São os que verdadeiramente atentam contra uma coisa que conquistámos e que é preciosa: a democracia. São os que incitam ao ódio e à discriminação. Detestam minorias, mas são eles próprios a minoria detestável.

Outro aspecto para que chamo a vossa atenção é o facto de sermos um povo de emigrantes e, por isso, alvo de preconceitos e discriminação como estes que sustentam a esta teoria. Não é um privilégio ser português em Paris ou no Luxemburgo, deixemo-nos de ilusões. O melhor que conseguimos é ser considerados trabalhadores e honestos. Está aqui implícito um juízo sobre a nossa pretensa inferioridade. É uma pequena – mesmo pequena – amostra do que sofrem as pessoas racializadas perante estes nazis. Mas a semente do mal, a de estabelecer diferenças, está lá.

E este mal está sempre relacionado com pobreza. Por alguma razão se fala sempre do Martim Moniz ou de São Teotónio e Odemira. É onde estão os imigrantes pobres. O cheiro a caril na Mouraria ou no Alentejo incomoda, mas os estrangeiros ricos, que contribuíram para a expulsão dos velhos residentes de Alfama, não merecem destaque.

Somos uma comunidade e o mal está entre nós da mesma maneira que está em nós mesmos. E temos mesmo de lidar com isso. Pergunto-me o que leva o Observador, do qual sou assinante, a publicar uma coisa desta natureza. E fico sem respostas. Nenhuma satisfaz e nenhuma tranquiliza.»

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