9.7.22

A grande ferida da Índia

 


«A Índia, a segunda mais populosa nação do planeta, continua a mudar aceleradamente. Temos seguido com alguma atenção as suas tomadas de posição sobre a guerra da Ucrânia e a sua ambígua colocação geopolítica, entre Estados Unidos, a China e a Rússia. A Índia é uma das chaves estratégicas do Indo-Pacífico, mas o seu futuro será essencialmente marcado pela luta interna que a dilacera.

A Índia continua o processo de transformação de uma democracia secular e plural numa "democracia étnica" e caminha para o confronto violento entre as duas maiores comunidades, hindus e muçulmanos. O regime de Narendra Modi e do Bahratiya Janata Party (BJP, Partido do Povo Indiano), que tomou o poder nas eleições de 2014, acelera o desmantelamento do modelo secularista indiano e a imposição daquilo a que chama hindutva (hinduanidade).

Trata-se de destruir a Índia laica, uma sociedade quase multicultural. Num prazo de 100 anos, o marginal fundamentalismo hindu transformou-se na ideologia dominante no país e que governa a grande maioria dos estados. Na base está uma concepção supremacista, a hindutva, que trabalha pela "construção de um Estado hindu (Hindu Rashstra), dotado de uma cultura hindu, com uma única língua, o hindi, e uma religião, o hinduísmo", escreve a partir de Benares, Índia, Sophie Landrin, enviada do Monde. "Segundo os seus doutrinários, só os hinduístas são indianos. Muçulmanos e cristãos não podem ser considerados indianos porque as suas religiões nasceram fora da Índia." A liberdade religiosa exercer-se-ia num plano privado, deixando ao hinduísmo o monopólio do espaço público.

A Índia move-se em direcção a uma nova forma de democracia, que considera a comunidade maioritária sinónimo da nação e na qual os muçulmanos e cristãos são cidadãos de segunda classe, que são assediados por bandos vigilantes, resume o indianista Christophe Jaffrelot, no recentíssimo Modi's India: Hindu Nationalism and the Rise of Ethnic Democracy (2021). >
A reforma de Modi, está a conduzir à centralização do poder em detrimento do modelo federal, enquanto surgem traços de autoritarismo. E as principais instituições, e sobretudo as da Justiça, são progressivamente esvaziadas de poder.

Os motins

Desde Fevereiro de 2020, que motins provocados pelo BJP fizeram uma cinquentena de mortos nos bairros mistos de Nova Deli. No Outono de 2021, o estado do Assam foi teatro de violência contra a minoria muçulmana. Nesta Primavera, assistiu-se a ataques e expedições punitivas nos bairros muçulmanos do Uttar Pradesh, Gujarat e de novo em Nova Deli, tendo sido alguns arrasados a buldózer.

As mesquitas tornaram-se o principal pretexto de conflito. Os fundamentalistas proclamam que muitas delas foram edificadas sobre templos hindus arrasados e por isso exige a sua substituição por templos seus. Há também casos ridículos como o do Taj Mahal, o mais conhecido e visitado monumento do país. Foi retirado de todos os guias de viagens oficiais, porque não é de origem hindu…

Resume a jornalista Landrin: "O cenário concebido pelos nacionalistas hindus desenrola-se em três tempos. Provocações, afrontamentos, sanções. Multidões cor de açafrão, armadas de sabres ou pistolas, frequentemente exteriores aos bairros, aproveitam as procissões religiosas para desafiar ou maltratar muçulmanos, até à entrada das mesquitas, cantando slogans hostis ou cânticos incitando ao assassínio de muçulmanos e dos que recusam a hindutva."

Há um elevado risco de generalização da "violência comunitária". Hoje, estas acções já não são apenas dirigidas pelos bandos armados fundamentalistas, mas também aparecem espontaneamente milhões de hindus, na cidade ou nos campos, a querem ajustar contas com os muçulmanos.

"Os muçulmanos estão confrontados com um futuro incerto, com o sentimento perturbador de terem um alvo afixado nas costas", diz ao Monde o politólogo Asim Ali, da Universidade de Nova Deli.

A solidariedade árabe é curiosa. Quando há uma ofensa ao Profeta, o mundo árabe indigna-se e Modi pede desculpa. Quando as vítimas são muçulmanas, "os irmãos" costumam olhar para o lado.

Na Índia, há 200 milhões de muçulmanos, afogados numa maioria de 80% de hindus. São comunidades que hoje vivem separadas. Não se deve confundir hinduísmo com hindutva, nem hindu com fundamentalista. Mas cresce a islamofobia.

A par da hindutva, discute-se também o fascismo que, nos anos 1920-30, influenciou o fundamentalismo hindu. Jaffrelot explica que o modelo de Modi não é o fascismo, não é um Estado totalitário. "É modelar a sociedade segundo os valores e símbolos hindus". O mesmo diz há anos o historiador Ramachandra Guha, para quem é perigoso confundir o passado com o presente. Indefectível crítico de Modi, diz que falar em fascismo "é sucumbir a um infeliz e prematuro alarmismo. A democracia sobreviverá." Se a Índia está a sofrer uma mudança drástica, por que não fará outra mais tarde?»

Jorge Almeida Fernandes
Newsletter do Público (07.07.2022)
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