5.3.22

Pier Paolo Pasolini chegaria hoje aos 100

 


Pier Paolo Pasolini faria hoje 100 anos. Com uma vida atribulada e mais do que polémica, e uma morte trágica, deixou-nos livros, poesias, ensaios e teatro, mas ficou mais conhecido pela sua filmografia., de um modo muito especial por «O Evangelho segundo S. Mateus», de 1964.

A surpresa generalizada com que este foi recebido quando apareceu, de um Pasolini marxista, ateu e anticlerical (até condenado anteriormente por blasfémia), mereceu-lhe o seguinte comentário: «Se sabem que sou um descrente, conhecem-me melhor do que eu próprio. Posso ser um descrente, mas sou-o com a nostalgia de não ter uma crença». O filme foi «dedicado à querida, alegre e familiar memória do papa João XXIII», que morreu antes de poder vê-lo. 

Um belo Cristo, mais revolucionário do que pastor, que provocou a ira de alguns críticos e o entusiasmo de muitos outros.

 

O filme completo pode ser visto AQUI.
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A caixa de Pandora de Vladimir Putin

 


«Os últimos dois anos têm sido tempos excecionais, de grandes preocupações a nível mundial. A verdade é que não estávamos preparados para enfrentar reptos desta dimensão e que vieram juntar-se ao problema muito complexo - e vital - das alterações climáticas.

Primeiro, foi a pandemia, que continua a ser um desafio enorme, sobretudo para os países com menos recursos e sistemas de saúde pública extremamente frágeis.

Com este pano de fundo ainda a fazer parte do nosso horizonte, surgiu agora um segundo fator de enorme instabilidade e que, tal como a covid-19, deverá contribuir para a reconfiguração do futuro das nossas sociedades e das relações internacionais. Este fator tem como ponto de origem a decisão inexplicável, anacrónica e ilegal de Vladimir Putin de declarar guerra ao povo da Ucrânia.

O ditador russo abriu uma caixa de Pandora. É preciso ter consciência disso. E, neste momento, até a esperança parece ter saído da caixa e andar à deriva. O próprio ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, que agora se comporta de modo visível como um lacaio do seu mestre, veio alimentar o sentimento coletivo de ansiedade. Na quarta-feira, ao falar das sanções que foram impostas ao seu país, o ministro afirmou que a resposta poderá ser uma terceira guerra mundial. E sublinhou que seria "uma guerra nuclear devastadora".

Muitos pensarão que isto é só conversa, para fazer subir a parada, ou seja, para conseguirem destruir a Ucrânia e guardar os escombros, pressionar o Ocidente, ganhar peso estratégico e evitar uma nova vaga de sanções.

Por mim, sou dos que levam estas bravatas muito a sério. As medidas tomadas contra Putin e os círculos que sustentam o seu poder são extraordinariamente abrangentes, próximas de uma declaração de hostilidades. O impacto nas áreas da economia, da finança e da política interna será enorme. Perante isso, a resposta do Kremlin pode ser económica, para além das proibições de uso do espaço aéreo, do trânsito de mercadorias vindas da China, de vistos, etc. Mas receio que Putin não considere essas retaliações suficientes. Poderá querer mostrar que a Rússia não joga baixinho, que não é nem o Irão nem a Venezuela.

Como já aqui o escrevi, chegámos a um ponto de viragem muito perigoso. A única solução razoável passaria por um esforço diplomático de bons ofícios - no entendimento que seria necessário encontrar uma solução que garantisse a independência da Ucrânia, mas aceitando igualmente que está em jogo algo muito maior do que essa questão. A ONU e o seu secretário-geral deveriam ser os agentes principais dessa iniciativa. Faz parte das suas atribuições e devem ousar. Mas, não vejo hipótese, Putin não aceitaria uma mediação desse tipo. Para ele, a ONU é apenas um secretariado, uma estrutura ao serviço dos Estados, mas sem equiparação e abaixo deles. E Guterres é agora apresentado em Moscovo como um agente dos americanos.

A mediação teria de caber a um Estado aceite por todas as partes. Se a questão fosse apenas entre a Rússia e a Ucrânia, penso que a possibilidade de a China poder desempenhar esse papel não deveria ser descartada. Mesmo tendo em conta que a retórica chinesa antiamericana se tem agravado nos últimos dois ou três dias. Hoje, perante a complexidade da crise, seria preferível que a mediação fosse feita por um tandem, ou mesmo um triunvirato, de países. Por exemplo, a China, a França e um outro país, que reunisse a confiança dos europeus e dos americanos, mas independente da NATO e exterior à cena europeia. Qual poderia ser?

Dito isto, queria que ficasse claro que não tenho muita fé na possibilidade de uma mediação. Preferiria que se apostasse num golpe palaciano. Aí, sim, poderá estar a solução. Mas, oficialmente, há que insistir na via diplomática. A encruzilhada em que estamos é bem clara: ou há diplomacia ou haverá uma forte possibilidade de confrontação em larga escala, sofrimento e caos. Cabe a cada um responsabilizar-se pela sua escolha e, no fim, pagar a conta, a começar por Vladimir Putin.»

Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral adjunto da ONU
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4.3.22

Jovens forever


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Abril é agora

 


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O “tudólogo”, especialista em nada, comentarista de tudo

 


«Ligo a tevê e lá estão eles, nas bancadas dos telejornais: os “tudólogos”, especialistas em nada, comentaristas de tudo. Falam, com a mesma e peculiar desenvoltura, sobre a guerra na Ucrânia, a variante ômicron e, quem sabe, a influência da pelagem do tamanduá-bandeira na formação psicossocial dos filhos do primo do vizinho da irmã do guarda.

Conhecem tudo sobre geopolítica do leste europeu, epidemiologia, cibercrimes, física quântica, ambientalismo, cinema indiano, literatura gótica, inteligência artificial, psicanálise, Round 6, sexo entre golfinhos e o que mais lhes der na telha. Padres-mestres que têm ideias prontas e firmes sobre qualquer assunto, notícia ou tema.

Com a segurança, soberba e altivez de um catedrático do Twitter, emitem opiniões polivalentes aos jorros, borbotões e esguichos, glosando seja lá qual for o mote em questão: eleições presidenciais, criptomoedas, terrorismo, saúde pública, novas matrizes energéticas, planejamento urbano, táticas de futebol, menopausa do urso panda, o paredão da Linn da Quebrada, o biquíni de crochê da Anitta.

Já fui convidado a participar de programas radiofônicos do gênero, para falar sobre algum livro meu então recém-lançado — e, já que eu estava ali no estúdio, enquanto aguardava minha vez, os apresentadores começaram a me pedir apreciações, ao vivo, sobre isso e aquilo, alhos e bugalhos, espeto e ovo, cousas e lousas. Política cambial, cerimônia do Óscar, desastre de Tchernobil, voto distrital, tráfego aéreo, Primavera Árabe, a morte do Gugu, os glúteos da Kardashian, o último videoclipe da Beyoncé.

“Não sei”; “sei lá”; “não vi”, “não faço a mais remota ideia do que seja”, deu-me ganas de responder. Pressionado, capitulei. Acabei entrando no jogo e proferi platitudes ginasianas, em tom professoral. Um vexame, em suma. Para sorte minha, no rádio, ninguém nota quando quem está ao microfone começa a enrubescer e suar de vergonha.

Ao final, nos dois únicos casos nos quais caí no disparate de bancar o tudólogo, minha participação foi elogiada pelos locutores, que me consideraram apto e até com algum jeito à arte da embromação. Agradeci, acabrunhado, torcendo para que nenhum amigo meu, sem nada mais de útil a fazer, estivesse sintonizado na emissora àquele horário. Da terceira e última vez que tal me ocorreu, de tão nervoso e constrangido, perdi a fala, acometido de repentina, psicossomática e salvadora rouquidão.

Antes que me questionem por também ser um especialista em generalidades — biografei personagens e escrevi sobre temas tão díspares quanto Padre Cícero e Maysa, José de Alencar e Getúlio Vargas, samba e sefarditas —, cabe um rápido adendo. Cada livro escrito pressupõe anos de pesquisas e leituras.

De fato, sou movido por aquilo que o historiador Carlo Ginzburg chamava de “euforia da ignorância”: assumir não saber nada sobre um assunto, mas estar disposto a aprendê-lo, com disciplina, alegria e esforço, e, por fim, discorrer sobre ele com alguma propriedade. Quase sempre, ao cabo da investigação, termino com mais interrogações do que quando comecei. Quanto mais aprendo, mais tenho dúvidas.

Com os tudólogos, é diferente, outro nível. Doutores em tudo, arautos de certezas inabaláveis, luminares do Facebook, são abençoados com o dom do conhecimento instantâneo. Leem dez linhas sobre algo, ao café da manhã, e ao meio-dia ou à tardinha, quando muito, já saem espargindo juízos categóricos sobre a pauta da vez.

Até anteontem, peremptórios, defendiam teses científicas sobre moléculas de RNA mensageiro; hoje, taxativos, derramam conhecimentos históricos sobre a formação étnica do povo ucraniano. Morro de inveja deles. Transformam os chutes típicos da conversa de boteco — e do thread no Twitter — em trabalho remunerado. Nas horas vagas, fazem palestras motivacionais, postam selfies no Instagram, exibem dancinhas no TikTok.»

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3.3.22

David nasceu num 24 de Fevereiro



 

Porque é que Vladimir Putin já perdeu esta guerra

 


«Com menos de uma semana de guerra, parece cada vez mais provável que Vladimir Putin caminhe para uma derrota histórica. Pode ganhar todas as batalhas, mas mesmo assim perder a guerra. O sonho de Putin de reconstruir o império russo sempre se baseou na mentira de que a Ucrânia não é uma nação real, que os ucranianos não são um povo real e que os habitantes de Kiev, Kharkiv e Lviv anseiam pelo domínio de Moscovo. Isso é uma mentira completa — a Ucrânia é uma nação com mais de mil anos de história e Kiev já era uma grande metrópole quando Moscovo não era sequer uma aldeia. Mas o déspota russo já contou a sua mentira tantas vezes que aparentemente ele próprio acredita nisso.

Ao planear a sua invasão da Ucrânia, Putin pôde contar com muitos factos conhecidos. Ele sabia que militarmente a Rússia faz da Ucrânia uma anã. Ele sabia que a NATO não enviaria tropas para ajudar a Ucrânia. Ele sabia que a dependência europeia do petróleo e gás russos levaria a que países como a Alemanha hesitassem em impor sanções duras. Com base nestes factos conhecidos, o seu plano era atingir a Ucrânia com força e rapidez, decapitar o seu Governo, estabelecer um regime fantoche em Kiev e enfrentar as sanções ocidentais.

Mas havia um grande facto desconhecido sobre este plano. Como os americanos aprenderam no Iraque e os soviéticos aprenderam no Afeganistão, é muito mais fácil conquistar um país do que mantê-lo. Putin sabia que tinha o poder de conquistar a Ucrânia. Mas será que o povo ucraniano aceitaria simplesmente o regime fantoche de Moscovo? Putin apostou que sim. Afinal, como ele explicou repetidamente a qualquer pessoa disposta a ouvir, a Ucrânia não é uma nação real, e os ucranianos não são um povo real. Em 2014, o povo da Crimeia dificilmente resistiu aos invasores russos. Por que razão deveria 2022 ser diferente?

A cada dia que passa, torna-se mais claro que o jogo de Putin está a falhar. O povo ucraniano está a resistir com toda a força, ganhando a admiração de todo o mundo — e ganhando a guerra. Muitos dias sombrios estão pela frente. Os russos ainda podem conquistar toda a Ucrânia. Mas, para vencer a guerra, os russos teriam de segurar a Ucrânia e só o podem fazer se o povo ucraniano o permitir. Parece cada vez mais improvável que isso aconteça.

Cada tanque russo destruído e cada soldado russo morto aumentam a coragem dos ucranianos para resistir. E cada ucraniano morto aprofunda o ódio dos ucranianos contra os invasores. O ódio é a mais feia das emoções. Mas, para as nações oprimidas, o ódio é um tesouro escondido. Enterrado no fundo do coração, pode alimentar a resistência durante gerações. Para restabelecer o império russo, Putin precisa de uma vitória relativamente sem derramamento de sangue que conduza a uma ocupação relativamente sem ódio. Ao derramar cada vez mais sangue ucraniano, Putin está a garantir que o seu sonho nunca será realizado. Não será o nome de Mikhail Gorbatchov que ficará escrito na certidão de óbito do império russo: será o de Putin. Gorbatchov deixou russos e ucranianos a sentirem-se como irmãos; Putin transformou-os em inimigos e assegurou que a nação ucraniana se definirá doravante em oposição à Rússia.

As nações são, em última análise, construídas sobre histórias. Cada dia que passa acrescenta mais histórias às que os ucranianos irão contar não só nos dias sombrios que se avizinham, mas também nas décadas e gerações vindouras. O Presidente que se recusou a fugir da capital, dizendo aos EUA que precisa de munições, não de boleia; os soldados da ilha de Zmiinii que disseram a um navio de guerra russo para “se ir foder”; os civis que tentaram parar os tanques russos, sentando-se no seu caminho. É deste material que as nações são construídas. A longo prazo, estas histórias contam mais do que tanques.

O déspota russo deveria saber isto tão bem como qualquer pessoa. Nos tempos de criança, cresceu com uma dieta de histórias sobre atrocidades alemãs e a coragem russa no cerco de Leninegrado. Está agora a produzir histórias semelhantes, mas escolhendo fazer o papel de Hitler.

As histórias da bravura ucraniana dão determinação não só aos ucranianos, mas a todo o mundo. Elas dão coragem aos governos das nações europeias, à Administração dos EUA e mesmo aos cidadãos oprimidos da Rússia. Se os ucranianos ousam parar um tanque com as suas próprias mãos, o Governo alemão pode ousar fornecer-lhes alguns mísseis antitanque, o Governo americano pode ousar banir a Rússia do SWIFT e os cidadãos russos podem ousar manifestar a sua rejeição a esta guerra sem sentido.

Todos podemos ser inspirados a ousar fazer algo, seja fazer uma doação, acolher refugiados ou ajudar com a luta online. A guerra na Ucrânia vai moldar o futuro do mundo inteiro. Se a tirania e a agressão forem autorizadas a vencer, todos sofreremos as consequências. Não há razão para continuarmos a ser apenas observadores. É tempo de nos erguermos e sermos tidos em conta.

Infelizmente, é provável que esta guerra seja duradoura. Assumindo formas diferentes, pode muito bem durar anos. Mas a questão mais importante já foi decidida. Os últimos dias provaram ao mundo inteiro que a Ucrânia é uma nação muito real, que os ucranianos são um povo muito real e que definitivamente não querem viver sob um novo império russo. A questão principal deixada em aberto é quanto tempo levará para que esta mensagem penetre nas paredes espessas do Kremlin.»

Copyright Yuval Noah Harari
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2.3.22

Éramos felizes e não sabíamos

 

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Tudo o que era impensável pode ser realidade



 

«Aconteça o que acontecer quando nos aproximarmos do fim da primeira semana do conflito, o argumento imperial para a invasão da Ucrânia chocou contra o mundo. Fosse esse argumento a putativa ameaça constituída pela Ucrânia, fosse a imaginada “desnazificação”, o discurso de Putin desvanece-se perante as evidências imediatas da dor provocada, seja nas cidades bombardeadas, seja na população civil em fuga, é a guerra. E, perante a perceção da inviabilidade do projeto dessa Grande Rússia, descobre-se inevitavelmente que esta guerra não tem paz. A responsabilidade pela guerra não pode, por isso, ser reduzida a um estratagema, a uma ambição, a uma manobra: a guerra é crime e tem um mandante.

O que estes dias demonstraram, em todo o caso, é que a Rússia será derrotada, por quatro razões inescapáveis. Em primeiro lugar, mesmo que venha a ser capaz de derrubar a resistência militar, o que ainda está por provar, não tem meios que lhe permitam ocupar o país, caminhando por isso para um abismo político: não conseguirá ficar e também não poderá sair sem ser perseguida pelo fracasso. Em segundo lugar, e isso não é uma pequena diferença em relação à bipolaridade protagonizada no passado pela URSS, não mobiliza uma ideologia organizadora, a não ser o cru nacionalismo imperial, que só é exibido para efeitos internos e tem como efeito repelir os outros povos. Em terceiro lugar, apesar das suas reservas colossais, não tem capacidade económica para se afirmar como uma potência mundial ao longo do tempo. Em quarto lugar, o seu sistema de alianças baseia-se na relação com um poder mais forte, a China e, logo, dependerá dela. Por isso, Putin não está só a lançar uma nova Guerra Fria, está a ajudar os seus inimigos a fabricarem um tempo novo, em que o que antes era impensável se pode agora transformar em realidade.

Era impensável, nos tempos recentes, uma invasão para ocupar um país europeu com o qual havia relações diplomáticas, o que significa que a sua soberania era reconhecida. Na verdade, esse procedimento foi banalizado noutras partes do mundo e tornou-se mesmo o modo de enunciado dos poderes imperiais, mas o único conflito armado de grandes proporções no nosso continente no pós-Segunda Guerra Mundial ocorreu na Jugoslávia e por via de uma guerra civil, por certo instrumentalizada pela Alemanha e pelos EUA, que atuavam por interpostos exércitos e milícias, mas não por ocupação militar de um exército estrangeiro.

Era impensável a Nato reforçar o seu contingente europeu, anulando de facto o pacto de 1997 estabelecido com a Rússia na Cimeira de Paris, que se comprometia a congelar as suas forças nos países de Leste recém integrados. Era impensável que a Nato pudesse vir a controlar toda a fronteira oeste da Rússia, o que agora poderá ficar mais próximo de conseguir. Esta mudança da geografia política e militar é precisamente o que Putin tinha prometido evitar e vencer.

Era impensável, e talvez ainda mais grave do que os jogos militares, que uma potência pudesse confiscar ativos do banco central da outra, sem ser no quadro de uma declaração de guerra total. Que Washington possa também engatilhar o sistema de pagamentos interbancários, o Swift, transformando-o numa bomba económica com a complacência europeia, que só lhe resistiu dois dias (porventura os governos europeus se lembrariam de Trump usar contra eles a ameaça de lhes bloquear o uso do Swift em 2018, não foi há tanto tempo), seria também uma normalização há pouco impensável.

Era impensável que a participação nos vários tipos de provas desportivas internacionais fosse proibida de modo extensivo a um país, mesmo num cenário de guerra (não eram as Olimpíadas gregas as provas que superavam as guerras?). Por certo, já houve boicotes mútuos, como nos Jogos de Moscovo, 1980, e nos de Los Angeles, 1984, curiosamente o primeiro para punir a Rússia pela invasão do Afeganistão, o segundo como retaliação. Mas não me lembro de a URSS ter sido impedida de disputar jogos pela invasão da Hungria em 1956 ou da Checoslováquia em 1968, ou de os EUA terem sido alvo de proibições que afastassem os seus atletas do desporto mundial pela sua posterior invasão do mesmo Afeganistão em 2001, ou depois do Iraque em 2003, ou, antes, do Vietname, em 1965. E agora esse procedimento está a banalizar-se como um instrumento de conflito, sendo pela primeira vez usado pelas próprias autoridades desportivas, precisamente quem o devia condenar.

Na escalada militar, no poder financeiro e no poder desportivo, aquilo a que assistimos é a um início da divisão do mundo em duas esferas incomunicáveis. Isso provoca dois paradoxos. O primeiro é que a nossa era é a da comunicação, pelo que o muro que separe as duas esferas tem de ser guarnecido por um sofisticado arame farpado digital, económico, financeiro, de viagens e de outros contactos. Para isto funcionar, terá de ser reduzido o comércio mundial a uma obediência e teremos de voltar a assinar declarações à entrada dos EUA ou da Rússia em que juraremos não ter tido pensamentos desviantes ou suspeitos. O segundo paradoxo é que esta separação só funciona se impedir a intermediação. Ora, como Washington não pode reconhecer à China a supremacia de um lugar de negociação entre ambas as esferas, exigirá que as pontes sejam queimadas.

Em cinco dias já tivemos uma ofensiva imperial para destruir um país e massacrar a sua população, uma inflação militarizante na Europa, uma razia financeira com a confiscação de parte do tesouro de uma potência, o bloqueio do sistema bancário mundial e ameaças contra o futuro do desporto. Até ao fim da semana verificaremos que isto mal começou.»

Francisco Louçã
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1.3.22

Aprovada resolução do Parlamento Europeu sobre a agressão russa à Ucrânia

 


N.B. – Ao contrário do que corre por aí, o Bloco não se absteve, nem votou contra nesta resolução, como se pode ver na figura. Absteve-se numa outra relacionada com atribuição de ajuda de emergência à Ucrânia. Nesta última, os deputados do PCP votaram contra, como já o tinham feito na primeira.
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Mariana Mortágua: Russos e dinheiros

 

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Zelensky falou hoje ao Parlamento Europeu

 


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A violência e a força

 


«Ninguém estava preparado para uma agressão tão brutal por parte da Rússia. E até há bem poucos dias, a comunidade internacional continuava incrédula duvidando do que via, opondo aos tanques e bombardeamentos da Ucrânia sanções tímidas e ofertas de negociações. Como se a decisão de Putin ao desencadear uma guerra fosse um capricho momentâneo e não estivesse inscrita num plano há muito delineado. Como se os apelos à diplomacia fossem capazes de fazer “voltar à razão” um líder de humores alterados.

Perante um acto terrorista – a invasão da Ucrânia foi um acto de terrorismo internacional —, mostrar fraqueza é abrir o flanco a mais violência, incitar a acções de maior terror e maior poder destrutivo. Os responsáveis pelas democracias deixaram-se enganar pela retórica de Putin, que ora ameaçava com a guerra ora parecia adoptar o próprio discurso dos europeus e americanos – que propunham negociações em nome da tolerância, da sinceridade do diálogo, dos valores universais da paz e da liberdade. Valores que nada valem para Putin.

Os políticos ocidentais foram enganados como o são todos os dias nos seus próprios países pelo discurso extremista dos populistas de direita (que se reclamam da democracia). Os valores e princípios da democracia nada valem para Trump, nem para Orbán ou Marine Le Pen. Isto é, a atitude, passiva e fraca, dos democratas perante a Rússia imperialista do autocrata Putin foi a mesma que costumam adoptar na política interna, quando defrontam a extrema-direita neofascista. Expõem ao inimigo — que o aproveita logo — o “ponto cego”, a velha falha da democracia, que a deixa em perigo de vida, aberta ao populismo e à demagogia. Neste sentido, esta guerra da Ucrânia constitui um revelador terrível da doença das democracias.

Ora, depois de quatro dias de guerra e de muitas hesitações, qualquer coisa mudou, como vários analistas políticos apontaram: as nações que integram a NATO decidiram agravar drasticamente as sanções e enviar armas e equipamento militar para Ucrânia. A própria União Europeia destinou uma verba considerável ao apoio militar aos ucranianos. Apesar da sua esmagadora supremacia, o exército russo não tomou Kiev. E assistimos agora — domingo 28 de Fevereiro — a uma nova fase do conflito: a uma Ucrânia cada vez menos só, alvo de uma crescente onda de solidariedade dos povos europeus, americanos e asiáticos, opõe-se um Putin cada vez mais isolado, mais assanhado, brandindo contra todos as suas armas nucleares. Para uma tal mudança contribuiu, sem dúvida, decisivamente, a tomada de consciência da opinião pública mundial, indignada pela injustiça brutal da invasão russa, e tocada pela extraordinária coragem do povo ucraniano. As imagens da guerra em directo deram a volta ao planeta. O que obrigou os governantes das democracias a mostrar uma força com que Putin certamente não contava. Na verdade, jogou-se, desde o início do conflito, um confronto entre a violência russa e a (ausência de) força das nações da NATO. Foi a força das opiniões públicas e da resistência ucraniana que levou os Estados a modificar a sua estratégia. Ao mesmo tempo, é a força da democracia que se manifesta na solidariedade mundial das nações para com a Ucrânia (só seis países apoiam Putin).

O uso da força é, em geral, recusado pelos democratas na luta contra os neofascismos actuais, com o argumento de que não se devem empregar os meios que, precisamente, se criticam aos outros. O agredido depressa passaria a agressor, a vítima a carrasco. No entanto, a força é diferente da violência: enquanto esta atinge a integridade física ou psíquica da vítima, a força pode ser simplesmente uma expressão, material ou imaterial, da energia vital. Mas como a manifestação da força descamba facilmente em violência, é difícil, em muitos casos, distinguir uma da outra. No entanto, como mostra o conflito da Ucrânia, só a ameaça da força se revela efectiva contra a violência bruta. Quando o adversário se transforma em inimigo, violando violentamente a lei e a paz internacionais, ou quando age contra o Estado de direito, recorrer à força torna-se um reflexo de sobrevivência. É, ao que pode levar a proliferação actual do neofascismo, de Portugal aos Estados Unidos, em que o fantasma de Trump ameaça de morte a democracia.

Há sempre múltiplos modos de utilizar a força, desde limites impostos à liberdade de expressão (sempre com efeitos práticos, performativos), a manifestações de rua, ancorando o uso da força no direito e nos princípios democráticos (o que levanta outros problemas). Seja como for, parece claro que não se combate a violência dos autocratas e da extrema-direita neofascista com discursos e debates. É uma linguagem que eles não entendem. Como mostram sobejamente as duas recentes invasões, a do Capitólio de Washington em Janeiro de 2021 e a da Ucrânia, em Fevereiro de 2022.»

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28.2.22

Aprender sobre as cinzas

 


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Edgar Morin e o inaceitável

 


(Denunciar em palavras o inaceitável é, se não aceitá-lo, pelo menos sofrer. Idem para o intolerável.)
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Os quatro dias que mudaram o mundo

 


«A rapidez com que os países europeus, mais do que os EUA, mudaram de posição sobre sanções, é notável. Na quarta-feira, o “New York Times” relatava como a Itália queria exceções para bens de luxo e indústria ferroviária, a Bélgica para os diamantes belgas, a Áustria e a Alemanha para a energia.

Dos nove países que se opuseram a sanções que incluíssem a importação de gás natural estavam os sete que mais dependem da Rússia nessa área. Ela é o principal fornecedor de petróleo e gás natural da União Europeia, e encontrar abastecimentos alternativos não será fácil. Com os preços da energia já em alta, todos queriam evitar mais perturbação. Fora da UE, a BP tinha 20% da petrolífera russa, de onde saiu agora.

As sanções bancárias eram temerosas, porque afetarão o Ocidente. A expulsão SWIFT estava fora da mesa, porque põe em causa os pagamentos aos países com mais relações comerciais com a Rússia. Mesmo o controlo dos bens dos oligarcas era muito tímido. “Londongrado”, o termo depreciativo usado nos últimos 20 anos nos corredores do Departamento de Estado dos EUA para descrever a capital do Reino Unido, é a cidade onde os oligarcas fazem prosperar o mercado imobiliário e financeiro. O seu papel no financiamento dos conservadores está bem documentado.

Em 72 horas, tudo mudou. À medida que a invasão se desenrolava, e a batalha mediática e nas redes sociais (onde a Rússia não está a conseguir fazer render investimentos de anos) foi ganhando de forma avassaladora a opinião pública europeia, os países mais reticentes começaram a deixar cair as suas objeções. A União Europeia, os Estados Unidos, o Reino Unido e o Canadá acabaram por acordar, na noite de sábado, o cancelamento do acesso de bancos russos “selecionados” ao sistema SWIFT (um instrumento de seguro financeiro, permitindo transações entre bancos quase instantâneas). A Rússia tem o seu próprio sistema, assim como a China. Mas não chega.

Acima de tudo, veio uma carta que não estava em cima da mesa, mas pode ser a de maior efeito: limitar o poder do banco central russo para usar as reservas acumuladas no estrangeiro – mais de metade ficará bloqueada. Com isso, pretende-se limitar a capacidade do banco central usar as reservas cambiais do país para suster o rublo. Se for eficaz, esta medida pode levar à queda livre da moeda russa, com o consequente aumento da inflação e do custo de vida no país, à paralisação do investimento e capacidade de financiamento do esforço de guerra. As empresas russas de importação-exportação que negoceiam em dólares serão provavelmente afetadas. É importante, no entanto, dizer que a Rússia acumulou reservas de divisas nos últimos anos e que a medida também terá forte impacto em empresas e bancos ocidentais.

Ontem, vieram mais medidas da União Europeia. Canais de desinformação como o Russia Today e o Sputnik foram banidos (estou curioso por ouvir a opinião dos que defenderam que medidas de controlo de centrais de desinformação, muitas delas financiadas pelos russos, eram formas de censura), o espaço aéreo foi banido aos russos e a caça ao oligarca ganhou alguma consistência, para tentar corroer o poder político e económico em torno de Putin. Neste último, sabendo o que a casa gasta, não depositaria demasiadas expectativas.

Mas o mais importante, pelo seu valor histórico, é o financiamento direto de material militar ofensivo para a Ucrânia. Deixou de ser o apoio que já estava a ser dado por alguns Estados, para, pela primeira vez, ser uma política coordenada e em bloco da União Europeia, o que não pode deixar de ser visto como envolvimento direto no conflito. “Caiu um muro”, disse Joseph Borrell, chefe da diplomacia europeia. No que toca ao apoio militar, só me preocupa o apelo à participação de cidadãos civis europeus na guerra da Ucrânia, que a Dinamarca apoiou. Compreendo o ímpeto de solidariedade, mas queremos mesmo um campo de treino e combate para o nascimento e crescimento de grupos políticos paramilitares violentos? É importante recordar algumas coisas muito pouco recomendáveis que nasceram e cresceram na guerra da Bósnia ou, muito antes disso, no Afeganistão.

Num fim de semana, a Alemanha levou a cabo a maior alteração de política externa desde 1991 (para não dizer desde a II Guerra). A sovina Alemanha passará a ter 2% do PIB em despesa para a defesa, ao qual acresce um fundo especial de cem mil milhões para modernização das suas forças. Só este fundo é maior do que o orçamento total de defesa russo. E, claro, com a declaração de morte do Nord Stream 2, prepara-se para uma maior independência em relação ao fornecimento de energia russo.

Este fim de semana, assistimos a um corte com o passado. Teremos de esperar para perceber como se vão posicionando a China e a Índia (não há nada mais importante para o nosso futuro), mas é certo que a interdependência económica entre grandes potências será um pouco mais reduzida. Isto pode ser um passo atrás numa globalização que dependeu do fim dos blocos políticos e militares. Sem peso económico e político, interessa à Rússia que o poderio nuclear seja o que conta. É o que tem e por isso usou essa ameaça como resposta às sanções enquanto as coisas lhe correm bem pior do que esperava no terreno.

E a Europa responde à ameaça militar. Para além do aumento do investimento militar alemão, as historicamente neutrais Suécia e Finlândia dão sinais de querer aderir à NATO. Tudo obra de Putin. Certo é que a Europa irá aumentar exponencialmente a sua despesa em defesa, o que corresponderá a uma mudança de prioridades que não deixará de ter um pesado preço social e económico. Por fim, não vejo que espaço fica, com a crise energética que nos espera, para responder à emergência climática.

O mundo vai mudar. A Europa também. Em muitas coisas não será para melhor. Os erros vêm de antes. Agora, são quase só inevitabilidades.»

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27.2.22

Berlim, esta tarde

 

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Entretanto em São Petersburgo

 


Manifestação na noite de 24.02.2022 em São Petersburgo, Rússia, contra a decisão de invadir a Ucrânia
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Zelenskii, o ex-comediante que agora nos faz chorar

 


«Não fazemos a mais pequena ideia de como isto tudo vai acabar. O antigo comediante Zelenskii, que nestes dias nos comove pela capacidade de resistência a defender o seu país, recusou a oferta dos Estados Unidos para sair de Kiev – dizendo que não precisava de boleia, mas de armas. A Ucrânia, até ao momento em que escrevo este texto, está a demonstrar uma extraordinária resistência face às tropas de Putin, o que está a comover e a espantar parte do mundo e eventualmente a surpreender também o imperialista russo.

Depois das primeiras hesitações, as sanções da União Europeia avançam para um novo patamar, logo a seguir à Alemanha ter aceitado a exclusão da Rússia do sistema internacional de pagamentos SWIFT. E, numa alteração de estratégia absolutamente radical, Berlim anunciou o envio de armas para Kiev. “A invasão marca um ponto de viragem”, disse Olaf Scholz, ao anunciar a reviravolta na política da Alemanha de não enviar material de guerra para cenários de conflito. A mudança de opinião de Berlim (ainda na sexta o chanceler recusava a exclusão da Rússia do sistema de pagamentos SWIFT) proporcionou, como sempre, a que a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, tenha vindo anunciar na noite de sábado que a União Europeia vai aplicar mais sanções à Rússia, com a exclusão de bancos russos do SWIFT, a proibição de acesso dos oligarcas russos aos mercados europeus e o congelamento dos fundos do Banco Central da Rússia.

É verdade que as sanções europeias à Rússia começaram por ser tímidas, provavelmente pelas mesmas razões contabilísticas de Rui Rio, que ainda este sábado veio, com a sua esplêndida oportunidade, alertar que “a União Europeia deve medir as consequências antes de avançar com mais sanções à Rússia”. Mas a situação está a mudar.

Onde vamos parar? Não sabemos. O povo russo, que também se manifesta nas ruas contra a invasão da Ucrânia, pode levar Putin a negociar a paz? Os aliados de Putin – nomeadamente a China, que mudou ligeiramente de discurso – podem ter algum papel nisso? Uma grande cimeira (como aquela com que Churchill sonhou nos últimos anos da sua vida, para tentar esfriar as tensões Leste-Oeste) pode conseguir o cessar-fogo? Não sabemos nada, estamos perante o maior desafio diplomático das nossas vidas.

A minha geração cresceu na Guerra Fria, com o espectro de uma guerra nuclear que conduziria ao fim do mundo. Muitos de nós éramos fervorosamente pelo desarmamento e andávamos com uns crachats amarelos ao peito, com um sol sorridente, onde se dizia “Nuclear Não Obrigado”. Não houve confronto nuclear e assistimos à queda do império soviético (algo que nos parecia impossível poucos anos antes). Ouvir agora Vladimir Putin ameaçar recorrer a armas nucleares, como o fez no comunicado antes da invasão - “Mesmo depois da dissolução da União Soviética e de perder uma parte considerável das suas capacidades, a Rússia de hoje continua a ser um dos Estados nucleares mais poderosos”, disse – é o dado mais assustador desta escalada.

P.S. A aliança que levou António Costa ao poder em 2015 morreu várias vezes – em 2019, quando o PCP não quis acordos escritos, no chumbo do Orçamento do Estado, com a maioria absoluta do PS nas legislativas. Estamos a viver a quarta morte: a resistência do PCP em condenar a invasão da Ucrânia é um momento incompreensível para muitos dos antigos apoiantes da solução.»

Ana Sá Lopes
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