1.3.22

A violência e a força

 


«Ninguém estava preparado para uma agressão tão brutal por parte da Rússia. E até há bem poucos dias, a comunidade internacional continuava incrédula duvidando do que via, opondo aos tanques e bombardeamentos da Ucrânia sanções tímidas e ofertas de negociações. Como se a decisão de Putin ao desencadear uma guerra fosse um capricho momentâneo e não estivesse inscrita num plano há muito delineado. Como se os apelos à diplomacia fossem capazes de fazer “voltar à razão” um líder de humores alterados.

Perante um acto terrorista – a invasão da Ucrânia foi um acto de terrorismo internacional —, mostrar fraqueza é abrir o flanco a mais violência, incitar a acções de maior terror e maior poder destrutivo. Os responsáveis pelas democracias deixaram-se enganar pela retórica de Putin, que ora ameaçava com a guerra ora parecia adoptar o próprio discurso dos europeus e americanos – que propunham negociações em nome da tolerância, da sinceridade do diálogo, dos valores universais da paz e da liberdade. Valores que nada valem para Putin.

Os políticos ocidentais foram enganados como o são todos os dias nos seus próprios países pelo discurso extremista dos populistas de direita (que se reclamam da democracia). Os valores e princípios da democracia nada valem para Trump, nem para Orbán ou Marine Le Pen. Isto é, a atitude, passiva e fraca, dos democratas perante a Rússia imperialista do autocrata Putin foi a mesma que costumam adoptar na política interna, quando defrontam a extrema-direita neofascista. Expõem ao inimigo — que o aproveita logo — o “ponto cego”, a velha falha da democracia, que a deixa em perigo de vida, aberta ao populismo e à demagogia. Neste sentido, esta guerra da Ucrânia constitui um revelador terrível da doença das democracias.

Ora, depois de quatro dias de guerra e de muitas hesitações, qualquer coisa mudou, como vários analistas políticos apontaram: as nações que integram a NATO decidiram agravar drasticamente as sanções e enviar armas e equipamento militar para Ucrânia. A própria União Europeia destinou uma verba considerável ao apoio militar aos ucranianos. Apesar da sua esmagadora supremacia, o exército russo não tomou Kiev. E assistimos agora — domingo 28 de Fevereiro — a uma nova fase do conflito: a uma Ucrânia cada vez menos só, alvo de uma crescente onda de solidariedade dos povos europeus, americanos e asiáticos, opõe-se um Putin cada vez mais isolado, mais assanhado, brandindo contra todos as suas armas nucleares. Para uma tal mudança contribuiu, sem dúvida, decisivamente, a tomada de consciência da opinião pública mundial, indignada pela injustiça brutal da invasão russa, e tocada pela extraordinária coragem do povo ucraniano. As imagens da guerra em directo deram a volta ao planeta. O que obrigou os governantes das democracias a mostrar uma força com que Putin certamente não contava. Na verdade, jogou-se, desde o início do conflito, um confronto entre a violência russa e a (ausência de) força das nações da NATO. Foi a força das opiniões públicas e da resistência ucraniana que levou os Estados a modificar a sua estratégia. Ao mesmo tempo, é a força da democracia que se manifesta na solidariedade mundial das nações para com a Ucrânia (só seis países apoiam Putin).

O uso da força é, em geral, recusado pelos democratas na luta contra os neofascismos actuais, com o argumento de que não se devem empregar os meios que, precisamente, se criticam aos outros. O agredido depressa passaria a agressor, a vítima a carrasco. No entanto, a força é diferente da violência: enquanto esta atinge a integridade física ou psíquica da vítima, a força pode ser simplesmente uma expressão, material ou imaterial, da energia vital. Mas como a manifestação da força descamba facilmente em violência, é difícil, em muitos casos, distinguir uma da outra. No entanto, como mostra o conflito da Ucrânia, só a ameaça da força se revela efectiva contra a violência bruta. Quando o adversário se transforma em inimigo, violando violentamente a lei e a paz internacionais, ou quando age contra o Estado de direito, recorrer à força torna-se um reflexo de sobrevivência. É, ao que pode levar a proliferação actual do neofascismo, de Portugal aos Estados Unidos, em que o fantasma de Trump ameaça de morte a democracia.

Há sempre múltiplos modos de utilizar a força, desde limites impostos à liberdade de expressão (sempre com efeitos práticos, performativos), a manifestações de rua, ancorando o uso da força no direito e nos princípios democráticos (o que levanta outros problemas). Seja como for, parece claro que não se combate a violência dos autocratas e da extrema-direita neofascista com discursos e debates. É uma linguagem que eles não entendem. Como mostram sobejamente as duas recentes invasões, a do Capitólio de Washington em Janeiro de 2021 e a da Ucrânia, em Fevereiro de 2022.»

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