«Acho normal que a TVI tenha decidido entrevistar José Sócrates. Acho que o próprio tem todo o direito a defender-se no espaço público, já que no espaço público tem sido acusado. Mas, como devem imaginar, não pretendo analisar a sua defesa. Já a fez na fase de instrução e, neste momento, em que todo o processo é público, é para aí que se remetem todos os factos. E para a decisão do juiz Ivo Rosa, bombo da festa da última semana, mas que, na minha opinião, até deixou José Sócrates mais próximo de uma condenação do que o trabalho do Ministério Público prometia.
O Sócrates que ontem vimos foi o Sócrates de sempre. E isso é, por si só, surpreendente. A mesma arrogância, a mesma agressividade, o mesmo animal feroz. Tendo em conta tudo o que lhe aconteceu, esta constância inquebrantável recorda o perfil narcísico de Sócrates. Isso e a ideia que continua a alimentar em torno de uma cabala política, especialmente difícil quando hoje somos liderados por um primeiro-ministro do seu antigo partido, com uma agenda política não muito diferente da sua.
É verdade que a defesa de José Sócrates fica mais fácil perante a insustentável leveza das acusações de corrupção concretas que o Ministério Público foi acumulando no processo. Mas é perante a sua relação com Carlos Santos Silva que fica evidente que estamos perante um mitómano. O mitómano não se limita a acreditar nas suas mentiras. Está absolutamente convicto que todos vão acreditar nelas. Faz, aliás, um exercício interessante: quando o juiz lhe dá razão na falta de indícios trata isso como um julgamento sobre os factos e não o que é: falta de indícios que cheguem para um julgamento. Quando o juiz decide que há indícios para ir a julgamento é só isso mesmo.
A vitimização agressiva é uma arma típica dos manipuladores mais destemidos (veja-se André Ventura, por exemplo). Mas também ela foi facilitada pela Justiça. A sua prisão à chegada de Paris e transmitida pelas televisões, feita para investigar e não porque alguma coisa investigada fosse suficientemente sólida para o prender, ou todas as dúvidas sobre a escolha de Carlos Alexandre como juiz da fase de inquérito, facilitam-lhe a vida. E, independentemente de quem esteja a ser julgado, devem deixar-nos preocupados.
Mas a parte que me interessa da entrevista é outra. É a final. É a política, que não tem lugar nas salas de tribunal. É aquela em que falou do Partido Socialista. Essa, usando os seus próprios termos, é a canalhice suprema. Aqueles a quem omitiu as suas relações de dependência financeira são traidores. Aqueles a quem mentiu vezes sem conta, em pormenores da sua vida e dos seus negócios, são canalhas. O partido que usou para beneficiar com o poder quase lhe deve um pedido de desculpas. Sócrates é, na sua mitomania e megalomania, no seu narcisismo e amoralidade, incapaz de distinguir a vítima do agressor, o abusado do abusador. Ele é a vítima de todos aqueles de quem abusou. É credor de todos a quem deve um pedido de desculpas.
José Sócrates instrumentaliza todos os que dele se aproximam. Não hesita em recorrer à memória de Mário Soares, assim como não hesitou em usá-lo no fim da sua vida, colando um dos fundadores da democracia à sua vileza. Não hesita em atravessar o Atlântico para enganar mais uns, quando deste lado já não engana quase ninguém, pondo uma política honesta como Dilma Rousseff a dar caução a megalómana comparação com Lula da Silva, um homem que mudou radicalmente o Brasil. E a comparar a Operação Marquês, que irá a julgamento com as garantias que hoje se veem, com a Lava-Jato, que levou o juiz que julgou o ex-Presidente a ministro. Devia perguntar-se porque quase metade do Brasil apoia Lula e só meia dúzia de portugueses o apoiam a ele. Saberá disso?
José Sócrates não compreende, porque não tem consciência do que é aos olhos de quase todos, mas prestou ontem um grande serviço ao PS. E de todos, o que mais ganha, porque vai a votos brevemente e foi o especial visado, é Fernando Medina. Bem aborrecido terá ficado Carlos Moedas com este momento de campanha eleitoral. Sócrates não o sabe porque, sendo megalómano, acredita que os seus ataques ainda podem fazer estragos. Não faz ideia que é um ativo tóxico, o que não deixa de ser perturbante.
Nota: Maria Antónia Palla escreveu esta quinta-feira, no “Público”, um texto sobre José Sócrates que considero absurdo. Talvez seja inconveniente para António Costa, sobretudo num momento em que Sócrates lhe deu este bónus, e não acredito que a jornalista não tenha consciência desse risco. Mas Maria Antónia Palla é e sempre foi uma mulher livre, que nunca subalternizaria a sua posição aos interesses de homem nenhum, fosse pai, marido ou filho. Diz bem dela.»
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