9.11.13
O povo não era tão sereno assim
Que eu saiba não está marcada para hoje nenhuma manifestação a favor deste governo, mas, num Domingo de 1975, exactamente há 38 anos, houve uma espécie de «Obrigado, troika!». com uma diferença: foi mesmo a sério.
PS e PPD, secundados por CDS, PPM e PCP de P-ML, convocaram uma manifestação de apoio ao VI Governo Provisório e ao primeiro-ministro, com o lema: «Pinheiro, em frente, tens aqui a tua gente!» . O Terreiro do Paço encheu-se, mas ninguém recordaria hoje o facto (todos os espaços se enchiam, dia sim dia sim…) sem as granadas de fumo e de gás lacrimogéneo (mais alguns tiros) que deflagraram durante o discurso de Pinheiro de Azevedo contra as forças à esquerda do PS. Iniciativa de autoria não muito clara e objecto de acusações cruzadas, mas que foi enorme susto para muitos e gáudio para a esquerda da esquerda que viu a cena em casa, em directo televisivo.
«O povo é sereno, é apenas fumaça!», gritou o então primeiro-ministro, numa tirada que ficou para a pequena história dos últimos dias do PREC. Muitos acontecimentos se seguiriam, em duas semanas absolutamente vertiginosas. E sobretudo decisivas.
P. S. – Vale mesmo a pena ler a notícia detalhada no Diário de Lisboa, porque retrata bem o ambiente dessa tarde.
. 8.11.13
Edmundo Pedro, 95
O Edmundo faz hoje 95 anos. Logo à noite, irei dar-lhe um grande abraço, num jantar que reunirá um grupo dos seus amigos - que já festejaram os 90 e que esperam regressar para os 100.
Para quem conheça pouco ou nada do que foi a sua vida, deixo aqui um resumido «percurso existencial», escrito na primeira pessoa, há cerca de cinco anos .
«Comecei a trabalhar aos doze anos numa oficina de serralharia. Daí em diante, interrompi o curso diurno da Escola Industrial Machado de Castro e passei a estudar à noite. Aos treze, entrei para o Arsenal da Marinha. Aí conheci dois vultos cimeiros do movimento operário de então, meus colegas de trabalho na oficina de máquinas do Arsenal: António Bento Gonçalves e Francisco Paula de Oliveira. Este último viria a celebrizar-se sob o pseudónimo de “Pavel”.
O primeiro era então Secretário-geral do PCP, o segundo Secretário-geral da Federação da Juventude Comunista. Ambos exerceram no meu espírito uma influência determinante.
Filiei-me na Juventude Comunista aos treze anos, pouco depois de ser admitido naquela empresa do Estado.
Fui detido pela primeira vez pela polícia política no dia 17 de Janeiro de 1934, pouco depois de ter completado os 15 anos de idade, por estar envolvido na preparação da tentativa de greve geral que deflagraria no dia seguinte. A minha primeira detenção está, pois, estreitamente ligada ao movimento de protesto contra a liquidação do sindicalismo livre. Esse movimento ficaria conhecido na história das lutas operárias como o «18 de Janeiro». Pela minha acção na preparação desse evento, fui condenado pelo Tribunal Militar Especial, acabado de criar por Salazar, à pena de um ano de prisão e à perda dos «direitos políticos» durante cinco anos…
Logo que fui libertado, retomei a oposição à ditadura como militante da Juventude Comunista. Em Abril de 1935 fui eleito, com Álvaro Cunhal, entre outros, para a direcção da Juventude Comunista.
Preso, uma vez mais, em Fevereiro de 1936, sob a acusação de ser dirigente da JC, acabaria, em Outubro desse ano, por ser deportado para Cabo Verde, onde fui estrear o tristemente célebre Campo de Concentração do Tarrafal. Ao fim de nove anos, regressei a Lisboa para ser, de novo, julgado no Tribunal Militar Especial. Depois de ter aguardado julgamento, ao todo, durante dez anos, fui condenado, por aquele tribunal de excepção, à pena de vinte e dois meses de prisão correccional, acrescida da perda dos «direitos políticos» pelo período de dez anos!
Ao longo de todo tempo que mediou entre o fim de 1945 e o 25 de Abril de 1974, conspirei sempre contra a ditadura. De forma especialmente activa, a partir da campanha para a Presidência da República do general Humberto Delgado, durante a qual comecei a preparar, com Piteira Santos, Varela Gomes e outros, um movimento insurreccional que pusesse fim à ditadura.
Estive envolvido, com o grupo inspirado por Fernando Piteira Santos, no «12 de Março» de 1959. Mas, dessa vez, não fui referenciado na polícia política.
Dois anos depois, no dia 1 de Janeiro de 1962, tomei uma parte muito activa no chamado «golpe de Beja», ocorrido na madrugada daquele dia, no Quartel de Infantaria Três, aquartelado na cidade de Beja. Depois daquele movimento ter abortado, fugi para o Algarve onde fui detido, em Tavira, na manhã desse mesmo dia, junto com Manuel Serra e o então capitão Eugénio de Oliveira. Pela minha intervenção nesse movimento fui condenado, em 1964, a três anos e oito meses de prisão maior e à perda do «direitos políticos» pelo período de quinze anos. Cumpri quatro anos de cadeia. Fui libertado no fim de 1965.
Aderi ao Partido Socialista, por intermédio de Mário Soares, em Setembro de 1973. Sou, portanto, um dos fundadores daquele partido.
No primeiro congresso realizado na legalidade, em Dezembro de 1974, fui eleito para a sua Comissão Nacional e, em seguida, para a sua Comissão Política. Fui integrado no seu Secretariado Nacional em 1975. Em 25 de Abril de 1976, nas primeiras eleições legislativas, fui eleito Deputado pelo PS. Exerci esse cargo durante onze anos. Em 1977/78, fui designado Presidente da RTP. Actualmente continuo no PS, mas como militante de base.
Ninguém na minha família escapou à repressão salazarista. O meu pai estreou comigo o Campo de Concentração do Tarrafal. Esteve ali, tal como eu, cerca de nove anos. Foi, reconhecidamente, o mais perseguido de todos os presos daquele presídio de má memória. É considerado o mártir do Tarrafal. Morreu no exílio, em França, dois anos antes do 25 de Abril. A minha mãe esteve detida durante longo tempo por ser militante do PCP. A minha irmã Gabriela, que fugira de Portugal para evitar ser detida pela sua actividade no âmbito do movimento estudantil, morreu em Paris, aos vinte anos, na emigração política. Um irmão meu, o João Ervedoso, foi assassinado no âmbito de uma manifestação estudantil, por um provocador ao serviço da polícia política, quando tinha acabado de completar catorze anos. O meu irmão Germano, o mais novo dos três, entretanto falecido, esteve detido durante três anos por envolvimento na preparação da tentativa insurreccional de Beja. A minha própria mulher, para não fugir à sina da família, também experimentou os cárceres da polícia política.»
. Um pin na lapela
A crónica de António Lobo Antunes, na Visão de 31/10/2013, já circula por aí mas é imperdível:
«Perguntam-me muitas vezes por que motivo nunca falo do governo nestas crónicas e a pergunta surpreende-me sempre. Qual governo? É que não existe governo nenhum. Existe um bando de meninos, a quem os pais vestiram casaco como para um baptizado ou um casamento. Claro que as crianças lhes acrescentaram um pin na lapela, porque é giro
- Eh pá embora usar um pin?
que representa a bandeira nacional como podia representar o Rato Mickey
- Embora pôr o Rato Mickey?
mas um deles lembrou-se do Senhor Scolari que convenceu os portugueses a encherem tudo de bandeiras, sugeriu
- Mete-se antes a bandeira como o Obama
e, por estarem a brincar às pessoas crescidas e as play-stations virem da América, resolveram-se pela bandeirinha e aí andam, todos contentes, que engraçado, a mandarem na gente (...)
Esta criançada é curiosa. Ensinaram-me que as pessoas não devem ser criticadas pelos nomes ou pelo aspecto físico mas os meninos exageram, e eu não sei se os nomes que usam são verdadeiros: existe um Aguiar Branco e um Poiares Maduro. Porque não juntar-lhes um Colares Tinto ou um Mateus Rosé? É que tenho a impressão de estar num jogo de índios e menos vinho não lhes fazia mal. (...)
encorajemos estes minúsculos heróis com um beijinho, cheio de ternura, nas testazitas inocentes»
P.S. – O texto já está online, mas fica também aqui, não vá desaparecer em breve no cemitério dos links.
7.11.13
O governo sorteia
Ricardo Araújo Pereira, hoje, na Visão, a propósito do sorteio de carros a favor de quem peça factura (e não só):
«Esteja atento às novas promoções do Governo, porque este fabuloso concurso pode vir a ser alargado a outras áreas da vida. O cidadão não tem multas de trânsito desde 2005? Então habilite-se a ganhar um fim-de-semana para duas pessoas no Palácio de S. Bento». Etc., etc., etc.
Na íntegra AQUI.
. Camus e o Nobel
Celebra-se hoje o 100º aniversário do nascimento de Albert Camus e não faltam homenagens, mais do que merecidas, a um pensador que tanto marcou, e marca ainda, gerações e gerações.
Recordo o magnífico discurso que proferiu em Estocolmo, em 10 de Dezembro de 1957, quando recebeu o prémio Nobel da Literatura.
Um pequeno excerto (aqui na integra, com legendas em inglês):
Texto em francês (aqui em inglês):
Merkel em sabática
«Merkel atravessa tempos felizes. Desde a vitória eleitoral a 22 de setembro que os dias têm passado calmos. O Governo em exercício não pode mudar nada, e o próximo, com o SPD, poderá esperar até ao Natal. (...)
A sorridente Merkel parece não ter ainda percebido que a sua gestão egoísta e medíocre da crise da Zona Euro é acompanhada por toda a gente, fora da Alemanha, com angústia e apreensão, pois o que ela promete é uma continuada erosão que redundará em desastre. Merkel, usufrui, contudo, a doçura dos momentos em que tudo parece possível. A Alemanha é dona incontestável do futuro da Europa. É ao mesmo tempo réu e juiz em causa própria. (...)
O país que teria a obrigação de liderar solidariamente a Europa está contente com uma UEM que lhe dá todas as vantagens da moeda única, distribuindo pelos outros parceiros os custos. É bom jogar um jogo em que se pensa poder ganhar sempre. Merkel pode gozar a sua merecida sabática.»
Viriato Soromenho Marques
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6.11.13
Gramática do Português
Trouxe hoje para casa, já passei umas horas a folheá-la e a ler algumas páginas e estou fascinada.
Projecto encomendado pela Fundação Gulbenkian e materializado agora em dois volumes (o terceiro é esperado em 2015), 2.405 páginas (3,8 kg, pesei eu...). Resultado de 13 anos de trabalho coordenado pelo Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, com a colaboração de quarenta professores e investigadores de doze universidades e centros de investigação portugueses e estrangeiros.
«Destina-se a um público culto, de nível de instrução acima da média, que nela pode obter informação actualizada e aprofundada sobre os principais temas da gramática do português. Não é uma gramática teórica, destinada apenas a especialistas em Linguística, nem uma gramática simplificadora, de tipo escolar. Trata-se de uma gramática destinada a um público diversificado, que não tem de ser especialista em Linguística, embora ela sirva também, sem dúvida, públicos com interesses mais específicos, como sejam estudantes de nível superior, professores de todos os níveis de ensino do português, quer como língua materna quer como língua segunda ou língua estrangeira, e autores de materiais didácticos, nomeadamente de gramáticas e manuais escolares. É, pois, uma gramática de referência, no sentido em que se trata de uma obra que se destina a consulta regular para quem pretende obter informações sobre questões centrais da gramática do português, que aqui se encontram descritas e explicadas num estilo expositivo, sem formalismos desnecessários e com conceitos teóricos explicados de uma maneira simples.», como explica uma das coordenadoras, Maria Fernanda Bacelar do Nascimento, num documento em que apresenta a obra.
. Mota Soares, o valente
«O carismático Pedro Mota Soares confidenciou que "o Governo teve de bater o pé, teve de dizer 'não' à troika, que queria descer o salário para os mais jovens". Não se sabe se o "bater o pé" foi em forma de dança dos Pauliteiros de Miranda ou na versão mais consensual de Fred Astaire.
Foi assim que, pelos vistos, o país pode suspirar de alívio: ainda não é desta que se tem de pagar para trabalhar em Portugal. Tudo em nome da competitividade, é claro. O ministro que é responsável pela transformação da Segurança Social num hospício mostra assim que é um duro. Um verdadeiro mestre do sapateado, como nos tempos do Cotton Club. (...)
Face aos grandes resultados o melhor é, a seguir, Mota Soares aprender Kung Fu.»
Fernando Sobral, no Negócios de hoje
. E foi assim, há 38 anos
Mais um ano, já lá vão 38, mas quem assistiu ao frente-a-frente entre Soares e Cunhal, em 6 de Novembro de 1975, nunca o esquecerá. Durou 4 horas – uma eternidade impossível de repetir nas televisões apressadas que hoje temos, onde há sempre uma exigência publicitária ou um comentário futebolístico a interromper qualquer debate, por mais importante que este nos pareça – e o país parou para ver e ouvir.
«Goste-se» ou não de ambos, apenas de um deles (ou de nenhum...), muito do que passou desde então até hoje foi marcado, directa ou indirectamente, pela mão de ferro destas duas personagens.
Do debate dessa noite ficou para a história uma frase com que Cunhal respondeu a Soares quando este afirmou que o PC dava provas de querer transformar Portugal numa ditadura: «Olhe que não! Olhe que não!»
Texto com alguns excertos do que foi dito:
Adelino Gomes e José Pedro Castanheira, Os dias loucos do PREC, Expresso / Público, Lisboa, 2006, pp. 382-383.
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5.11.13
Barroso: só não foi grandolado
Nuno Crato: versão corrigida
Numa sessão de esclarecimento sobre o OE2014, que decorreu ontem em Ovar, Nuno Crato terá dito que os sacrifícios que serão pedidos aos portugueses são indispensáveis, já que, sem eles,
«Teríamos de trabalhar mais de um ano sem comer, sem utilizar transportes, sem gastar absolutamente nada, só para pagar a dívida.»
Versão correcta:
«Teríamos de trabalhar muito mais de um ano sem comer, sem utilizar transportes, sem gastar absolutamente nada, só para pagar uma dívida que é absolutamente impagável.»
Mas não teremos. Muito antes disso, este governo cairá como um castelo de cartas tiradas de um baralho viciado.
(Fonte)
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4.11.13
Tudo isto por cantar numa igreja
Ninguém sabe do paradeiro de Nadezhda Tolokonnikova.
Mais detalhes aqui.
Se isto não é um total absurdo e uma situação absolutamente inaceitável...
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O estigma da emigração
Mafalda Durão Ferreira foi subdirectora-geral dos Assuntos Consulares e Comunidades Portuguesas e, bem antes disso, desde o início da década de 70, trabalhou como assistente social no Consulado de Portugal em Paris, precisamente junto de emigrantes que chegavam aos milhares. Sabe do que fala e escreve hoje, no Público, um texto que merece ser lido.
«A FLAD e a OCDE promoveram recentemente, em Lisboa, o seminário Novas Dinâmicas Migratórias Internacionais: Portugal no Contexto dos Países da OCDE. Neste seminário, usou da palavra o director-geral dos Assuntos Consulares e Comunidades Portuguesas (DGACCP), João Maria Cabral, o qual, segundo o PÚBLICO online, avisou que ia ser “provocatório”. Disse: “Não quero branquear o fenómeno social, mas a emigração pode ser vista como algo positivo e enriquecedor”.
Ora cumpre perguntar: positivo e enriquecedor para quem? Para quem parte, com sofrimento e perda, para as famílias que ficam, privadas de pais, filhos e filhas? Para o país que investiu na formação de quem parte? Para Portugal, país com graves problemas de natalidade e que fica privado da geração em idade fecunda? Ou para os países que os recebem, a custo zero, sem nada terem gasto ou investido na sua formação e pagando-lhes metade ou menos dos ordenados que pagam aos seus nacionais com idênticas habilitações? (...)
Para os portugueses, a emigração é uma alternativa à fome, à miséria, ao desemprego, à exploração, desde há décadas! Nunca precisaram de ser ensinados a partir, a pegar na trouxa e partir. Mas são sempre os mesmos a partir, ainda que licenciados, sem bolsas de estudo, sem respaldo familiar, etc. (...)
O que todos nós queríamos era que Portugal fosse uma “Alternativa” para todos os portugueses. Foi para isso que se fez o 25 de Abril, por um Portugal de todos, e não para ouvir discursos que são a despudorada verbalização de políticas que fazem lembrar os tempos da ditadura.»
«O trabalho enobrece o homem»
Estes dois anúncios foram «pescados» hoje, no Facebook, e dizem muito do estado a que já chegámos. Se o primeiro só responsabiliza um cidadão anónimo (e não, não liguei para o telefone indicado para aprofundar a questão...), já o segundo, que NÃO É FORJADO, exigiria muitas explicações que não consegui encontrar na net.
Dos estágios não remunerados a trabalho «em regime de voluntariado» parece ter ido o passo de um anão.
P.S. – Tendo-se gerado discussão, no Facebook, a propósito da interpretação do segundo anúncio, decidi telefonar para a escola de Arouca. O anúncio é mesmo para trabalho voluntário e destina-se a aposentados. Ou seja: reformados a trabalharem de borla, em tarefas que seriam pagas a outros (que estarão provavelmente desempregados).
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3.11.13
Mudam-se os tempos
Com 8 anos, eu papagueava as estações e apeadeiros da Linha do Norte, o meu neto sabe os nomes de todos os distritos do Japão, conhecidos via Nintendo.
. Moçambique: a voz de Mia Couto
Intervenção na Gala do canal moçambicano de televisão STV para a atribuição do galardão do «Melhor de Moçambique», em 25/10/2013.
«Pensei bastante se estaria ou não presente nesta cerimónia. A razão para essa dúvida era a seguinte: há três dias a minha família foi alvo de várias e insistentes ameaças de morte. Essas ameaças persistiram e trouxeram para toda a nossa família um clima de medo e insegurança. A intenção foi-se revelando clara, depois de muitos telefonemas anónimos: a extorsão de dinheiro. A mesma criminosa ameaça, soubemos depois, já bateu à porta de muitos cidadãos de Maputo.
Poderíamos pensar que essas intimidações se reproduzem a tal escala que acabam por se desacreditar. Mas não é possível desvalorizar este fenómeno. Porque ele sucede num momento em que, na capital do país, pessoas são raptadas a um ritmo que não pára de crescer. Esses crimes reforçam um sentimento de desamparo e desprotecção como nunca tivemos nos últimos vinte anos da nossa história.
Esses que são raptados não são os outros, são moçambicanos como qualquer outro cidadão. De cada vez que um moçambicano é raptado, é Moçambique inteiro que é raptado. E de todas as vezes, há uma parte da nossa casa que deixa de ser nossa e vai ficando nas mãos do crime. Neste confronto com forças sem rosto nem nome, todos perdemos confiança em nós mesmos, e Moçambique perde a credibilidade dos outros.
Esses sequestros estão-nos cercando por dentro como se houvesse uma outra guerra civil, uma guerra que cria tanta instabilidade como uma qualquer outra acção militar, qualquer outra acção terrorista.
Este é um fenómeno que atinge uma camada socialmente diferenciada do nosso país. Mas o mesmo sentimento de medo percorre hoje, sem excepção, todos os habitantes de Maputo, pobres e ricos, homens e mulheres, velhos e crianças que são vítimas quotidianas de crimes e assaltos.
Eu falo disto, aqui e agora, porque uma cerimónia destas nos poderia desviar do que é vital na nossa nação. Não podemos esquecer que o nosso destino colectivo se decide hoje sobretudo no centro do País, nessa fronteira que separa o diálogo do belicismo. E todos nós queremos defender essa que é a conquista maior depois da independência nacional: a Paz, a Paz em todo o país, a Paz no lar de cada moçambicano.
Se invoquei a situação que se vive hoje em Maputo é porque outras guerras, mais subtis e silenciosas, podem estar a agredir Moçambique e a roubar-nos a estabilidade e que tanto nos custou conquistar.
Caros amigos
Estamos celebrando nesta Gala algo que, certamente, possui a intenção positiva de valorizar o nosso país. Mas para usufruirmos o que aqui está a ser exaltado, as melhores praias, os melhores destinos turísticos, precisamos de saber o ver o que nos cerca. Na realidade, e em rigor, o melhor de Moçambique não pode ser seleccionado em concurso. O melhor de Moçambique são os moçambicanos de todas etnias, todas as raças, todas as opções políticas e religiosas. O melhor de Moçambique é a gente trabalhadora anónima que, todos os dias, atravessa a cidade em viaturas transportados em condições que são uma ofensa à vida e à dignidade humanas.
O melhor de Moçambique são os camponeses que embalam à pressa os seus haveres para fugirem das balas. O melhor de Moçambique são os que, mesmo não tendo dinheiro, pagam subornos para não serem incomodados por agentes da ordem cuja única autoridade nasce da arrogância.
O melhor de Moçambique são os que anonimamente constroem a nação moçambicana sem tirar vantagem de serem de um partido, de uma família, de uma farda.
Os melhores de Moçambique não precisam sequer que os outros digam que são os melhores. Basta-lhe serem moçambicanos, inteiros e íntegros, basta-lhes não sujarem a sua honra com a pressa de se tornarem ricos e poderosos.
Os melhores de Moçambique não precisam de grandes discursos para acreditarem numa pátria onde se possa viver sem medo, sem guerra, sem mentira e sem ódio. Precisam, sim, de acções claras que eliminem o crime e a corrupção. Porque a par deste galardão que distingue o melhor de Moçambique há um outro galardão, invisível mas permanente, que premeia o pior de Moçambique. Todos os dias, o pior de Moçambique é premiado pela impunidade, pela cumplicidade e pelo silêncio.
Caros amigos,
Disse, no início, que hesitei em estar presente nesta gala. Mas pensei que me competia, junto com todos vocês, a obrigação de construir um evento que fosse para além das luzes e das mediáticas aparências. Nós queremos certamente que esta festa tenha uma intenção e produza uma diferença. E esta celebração só terá sentido se ela for um marco na luta pela afirmação de valores morais e princípios colectivos. Para que a nossa vida seja nossa e não do medo, para que as nossas cidades sejam nossas e não dos ladrões, para que no nosso campo se cultive comida e não a guerra, para que a riqueza do país sirva o país inteiro.»
. A atracção de Belém
Não deixa de ser curioso que as próximas eleições presidenciais – mais exctamente a lista dos putativos candidatos às mesmas – pareçam preocupar os comentadores pelo menos tanto como as legislativas e a anos-luz das esquecidíssimas europeias, e isto apesar de serem as últimas a ter lugar se tudo correr como os calendários prevêem. Duas razões possíveis: está toda a gente desejosa de desalojar o actual inquilino de Belém, na esperança de que o próximo seja uma pessoa «decente», e / ou o cargo é muito apetecível, é um excelente job for one boy.
Na Revista do Expresso de ontem, Clara Ferreira Alves vai pela segunda hipótese:
«As presidenciais são as melhores eleições de todas. Não sendo tão importantes como as eleições legislativas, as presidenciais arrastam uma divisão entre direitas e esquerdas que desperta o país do seu torpor miserável. As presidenciais são eleições de uma personalidade, um homem providencial (mulheres não são consideradas para a corrida, não têm estaleca), um salvador da pátria. Foi esta ideia luminosa que elegeu Cavaco, e todos nos sentimos muito confortáveis com a virtude salvífica. As presidenciais têm ainda o mérito de serem eleições para um cargo simpático, que não dá muito trabalho se não se fizerem ondas, que dá direito a umas viagens de Estado a países exóticos e civilizados que correm sempre muito bem, na companhia prestigiada de empresários e intelectuais. E dá direito a morar numa das melhores residências do país, na zona de Belém. Com um staff, umas dezenas de assessores e conselheiros, uns sofríveis redatores de discursos e uns competentes produtores de fatos políticos, a Presidência é dos melhores empregos deste país. Para um reformado é o ideal. (...)
E bem melhor que ser chefe do Governo. Não admira que haja mais candidatos a Belém do que a São Bento.
O inefável Marcelo, pela ala direita já soltou o pensamento mágico que acaba derrama-do num título de jornal: "Marcelo não se exclui de ser candidato a Belém". E não é só ele que não se exclui. De uma assentada e na vertiginosa gramática marcelista, ficamos a saber que também Pedro Santana Lopes e Durão Barroso não se excluem. E que Guterres não se exclui. António Costa já está incluído nos não excluídos, segundo o enunciado do segurista Assis, preocupado com o tema das presidenciais 24 horas depois das autárquicas (o PS faz bem em eleger uma prioridade).»
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