19.11.22

Vasos Quadrados



 

Vasos quadrados, cerca de 1890-1896.
Daum Nancy.


Daqui.
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«Concentremo-nos pois na equipa»

 


José Pacheco Pereira, Público, 19.11.2022
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Coitadinho do presidente da FIFA…

 


Foi vítima de bullying em criança por ter cabelo ruivo e sardas!

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José Mário Branco

 


Três anos sem ele.


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O futuro do ambiente está na China, não na COP27

 


«1. Vivemos num mundo em profunda transformação e cheio de contradições. Provavelmente a Ásia será o centro económico do mundo no século XXI, apesar da persistência de uma substancial pobreza nesta. As implicações económicas e geopolíticas dessa transformação são múltiplas. Traz consigo uma consequência crítica: não há solução para o problema ambiental, nem para a transformação energética, sem os Estados asiáticos mais populosos e importantes economicamente. Põe em causa, pelo menos em parte, a imagem que o Ocidente tem de si próprio sobre a sua capacidade de influenciar o mundo. Todavia, essa realidade está patente no relatório do Centro Comum de Investigação de 2022, do serviço de ciência e conhecimento da Comissão Europeia sobre as emissões de CO2. Pode ler-se aí que as emissões da China em 2021 foram 32,9% das emissões globais, quando em 1990 a sua percentagem era de 10,7%, ou seja, esta passou de cerca de 1/10 para quase 1/3 das emissões globais de CO2.

Quanto à Índia, atinge agora um valor de 7% das emissões globais totais de CO2, sendo a quarta maior economia emissora depois da China, dos EUA (12,6%) e da União Europeia e com um valor quase igual a esta última, que é de 7,3%. De notar que nos dez primeiros emissores de CO2 a nível global oito são economias asiáticas — para além da China e Índia, Japão, Irão, Coreia do Sul, Indonésia e Arábia Saudita — ou euro-asiáticas, caso da Rússia. No caso da União Europeia, apenas a Alemanha surge ainda na lista dos dez maiores emissores de CO2.

2. Para além das emissões de CO2 em termos absolutos, é necessário considerar as emissões per capita (por habitante) de CO2. Aí a realidade é outra e aponta para a responsabilidade actual e histórica do Ocidente, complexificando a solução. Os casos da China e da Índia — os dois Estados mais populosos do mundo, ambos com uma população que supera os 1,4 mil milhões de habitantes, num planeta que atingiu os 8 mil milhões — mostram isso inequivocamente. No caso da Índia, as emissões per capita são cerca de quatro vezes inferiores às do conjunto da União Europeia e sete vezes inferiores às dos EUA. No caso da China, que compete com os EUA pela supremacia global, as emissões per capita são menos de metade das emissões dos norte-americanos. No topo mundial das emissões per capita de CO2 — e até acima das economias ocidentais — estão os países ricos do Médio Oriente, como a Arábia Saudita, o Qatar, ou o Kuwait, os quais são não só grandes produtores de combustíveis fósseis como consumidores intensivos destes.

Se as discrepâncias de CO2 per capita são enormes e dificultam uma abordagem global equilibrada, quando entramos no terreno das injustiças históricas o problema adensa-se ainda mais. A questão do passado, da revolução industrial inventada pelos europeus e ocidentais, que até inícios do século XXI foram os maiores poluidores do planeta, leva a olhar o mundo de formas muito divergentes. Para os ocidentais, especialmente para os europeus, o ambiente tende a estar no topo da agenda política, apesar da invasão russa da Ucrânia lhe ter retirado visibilidade e prejudicar, pelo menos no imediato, a transição para uma economia verde. Para o Sul global, as questões da pobreza, da saúde pública e do desenvolvimento em geral são as prioridades que se impõem.

Ao mesmo tempo, o Sul global reclama compensações financeiras para transitar para uma economia descarbonizada — e também devido às catástrofes ambientais que tem sofrido — que os europeus e ocidentais não querem dar, ou não podem dar, pelo menos na dimensão e forma que esses países pretendem.

3. Seja qual for o desfecho da COP27 (Conference of the Parties), não são expectáveis avanços de relevo em compromissos globais dado o actual contexto geopolítico adverso e a complexa crise energética em curso. Mas não é só esse o problema. Importa aqui lembrar que os compromissos ambientais até agora existentes são largamente baseados em Contribuições Nacionalmente Determinadas, as quais são voluntárias por natureza. Assim, é necessário perceber bem o que se pode esperar destas cimeiras.

Pela positiva, têm o grande mérito de colocar a questão ambiental no centro da agenda política, de colocar todos a falar com todos para resolver um problema que é da humanidade e de indicar um caminho conjunto. No entanto, é necessário compreender igualmente as suas (muitas) limitações. Para além do carácter voluntário, para além da enorme dificuldade de consensualizar decisões entre quase duzentos Estados, há uma questão crítica que nenhuma COP irá alguma vez resolver, pois está no plano das rivalidades geopolíticas.

É necessário ter claro que todos os actores centrais na transição energética — China, EUA, União Europeia e Índia, aos quais se juntam os grandes produtores de combustíveis fósseis do Médio Oriente e a Rússia —, tomam decisões não só em função do planeta (ainda que queiram dar essa ideia), mas dos seus interesses. Assim, são incontornáveis as questões dos ganhos e perdas em termos económicos, do poder e da autonomia estratégica.

4. A extraordinária transformação da China — e também da Ásia em geral, em particular da Índia, ainda que mais lenta — tornaram-na crucial na solução do problema ambiental global, num duplo sentido. Num primeiro sentido (pela negativa) porque só a China, como vimos anteriormente, representa quase 1/3 das emissões globais de CO2. Comparativamente, os EUA e União Europeia juntos representam cerca de 1/5 das emissões globais de CO2.

Os números mostram bem a importância da China para qualquer solução global. Num segundo sentido (agora pela positiva) porque, paradoxalmente, é também na China onde a economia verde está mais avançada, tendo um peso esmagador a nível mundial, pelo menos nesta altura. Como notou Graham Allison, professor da Harvard Kennedy School, “o facto bruto é que a China é o principal fabricante e exportador mundial de todas as tecnologias verdes. É o principal fornecedor global de veículos eléctricos, com uma quota de 40% do mercado, tendo também 40% nas turbinas eólicas e 35% no hidrogénio verde. Produzia menos de 1% dos painéis solares em 2000, mas agora a China fornece 80% dos painéis solares globalmente.” (Ver Will America’s green future be Red? in Boston Globe, 29/10/2021).

Assim, sem surpresa, também no plano ambiental, a competição China-EUA — e, neste caso, sobretudo o que fizer futuramente a China pelo seu duplo impacto no planeta — vai ser fundamental para o futuro do ambiente e a economia verde.

5. Num planeta à beira dos seus limites, a mudança para um novo modelo de economia sustentável é uma questão crítica para o futuro comum da humanidade. A COP27 tem um papel de lembrar isso ao mundo e de apontar o caminho da preservação ambiental. Todavia, a transformação energética terá também impactos profundos no bem-estar económico e na distribuição de poder. Vai gerar uma nova competição pelos recursos da economia verde, desde o lítio aos elementos de terras raras que irá fazer lembrar, sob outras formas, o que vemos no actual modelo de combustíveis fósseis. Num mundo ideal e justo isso não existiria.

Os Estados e outros intervenientes políticos e empresariais decidiriam por imperativos de preservação ambiental e de justiça climática, de forma cooperativa e aberta. Evitariam rivalidades geopolíticas e recusariam a ambição de se tornar um poder dominante. Todavia, esse mundo não existe. Aquilo a que assistimos é a crescentes rivalidades e tensões geopolíticas. Urge, por isso, encontrar as melhores soluções ambientais no quadro do possível e não do utópico.

Há duras realidades para a Europa enfrentar. A primeira, é que sem a cooperação dos países produtores de combustíveis fósseis do Médio Oriente (e que vão querer ganhos geopolíticos e outros em troca), uma transição sem choques energéticos será provavelmente impossível. A segunda é que o futuro das questões ambientais globais está largamente na Ásia e sobretudo na China (e na sua cooperação com os EUA), e não tanto em fóruns globais, o que explica a ausência de Xi Jinping (e de Narendra Modi da Índia) da COP27.»

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18.11.22

Deveria ia era ter conquistado o Qatar!

 

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Manuel António Pina – seriam 79

 


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Marcelo, Costa e Santos Silva vão para o Qatar. E a nossa dignidade vai para onde?

 


«Não costumo voltar ao mesmo tema tão cedo. Mas a sinistra viagem das três mais altas figuras do Estado ao Qatar inspirou-me. Que fique claro: esta viagem não resulta de protocolo nenhum. As equipas portuguesas participam em várias competições internacionais sem o apoio in loco das mais altas insignes do Estado. Portugal, campeão mundial de hóquei em patins em título até ao passado domingo, perdeu a final do campeonato do mundo contra a Argentina e não consta que qualquer dos três ilustres tenha acompanhado os jogadores.

O Democracy Index de 2021, da revista The Economist, analisa a qualidade da democracia recorrendo a 60 itens, agrupados em cinco prismas. O primeiro é o processo eleitoral e o pluralismo (Qatar: 1,5 pontos). O segundo é o funcionamento das instituições (Qatar: 4,9 pontos). Segue-se a participação eleitoral, interesse da população na política, direitos das minorias e das mulheres (Qatar: 3,33 pontos). Depois, vêm as perceções da população sobre a democracia e o poder do exército (Qatar: 5,63 pontos). Last, but not the least, estão as liberdades de imprensa, de expressão, de associação, de acesso à internet, entre outras; nesta categoria, o Qatar logra uns estonteantes 3,53 pontos.

Assim, de um total possível de dez pontos, o Qatar obtém 3,65, conquistando a 114.ª posição, de entre os 167 países analisados. Como termo de comparação, a Hungria de Orbán, justamente ameaçada de perder acesso a 7,5 mil milhões de fundos europeus por violação do Estado de direito, está em 56.º lugar neste índice.

Estima-se que há cerca de dois milhões de trabalhadores imigrantes no Qatar. A legislação laboral que prevalecia até outubro de 2020 era esclavagista, porque inibia os trabalhadores de mudarem de emprego ou de saírem do país sem autorização do empregador. A falta de direitos explica o número de mortos e estropiados. Os cálculos do The Guardian apontam para 6500 mortes de trabalhadores migrantes entre 2011 e 2020, a OIT fala de 50 diretamente ligadas às obras do Mundial e o governo do Qatar de 37.

Pode morrer-se do trabalho sem ser no trabalho; um artigo publicado em 2019 concluiu que as mortes por crise cardíaca entre os imigrantes nepaleses no Qatar eram “com elevada probabilidade devidas a stress térmico severo” (ler: trabalho físico escravo sob altas temperaturas do deserto). A fraca qualidade da informação sobre as causas de morte, que tanto o The Guardian como os autores deste artigo apontam, é em si mesma sinal de que as vidas destas pessoas valem pouco para as autoridades qataris.

A lei foi alterada, mas a prática não. Um ano depois da reforma, o Reality Check 2021 da Amnistia Internacional (AI) rezava assim: “A aparente complacência das autoridades deixa milhares de trabalhadores em risco contínuo de exploração por empregadores sem escrúpulos, muitos impossibilitados de mudar de emprego e enfrentando diminuições arbitrárias e punitivas de salário.”

No Qatar, a homossexualidade é proibida. As pessoas LGBTQI+ são vítimas de maus tratos, tortura e detenções arbitrárias pelas forças de autoridade. Há “agentes infiltrados” para bufar os outros, que podem acabar na prisão. As mulheres têm guardiões masculinos que decidem a sua vida. A punição física (chicotadas) é uma pena normal. Aliás, o tabloide britânico The Sun avisou recentemente os adeptos que se desloquem ao Qatar de que podem ser chicoteados ou presos por comportamentos normais como beber, tirar fotografias ou usar linguagem obscena. De resto, os visitantes estão avisados para respeitar a cultura local: nada de manifestações de carinho público, muito menos entre pessoas do mesmo sexo, ou mulheres vestidas como querem.

Se o Qatar é o que é, a FIFA não é melhor. O Mundial foi atribuído através de luvas pagas aos responsáveis com direito de voto, que já deram origem a vários processos judiciais. Na sua infinita hipocrisia, a FIFA afirma que está a trabalhar com organizações locais para promover os direitos dos trabalhadores, mas, quando confrontado com o número de mortes, o seu presidente papagueou a estatística oficial do governo do Qatar (como escrevi há duas semanas). A FIFA não permitiu que os jogadores da Dinamarca usassem no equipamento mensagens alusivas aos abusos. De tão preocupada, não responde ao apelo da Amnistia Internacional, que, junto com várias ONG, anda há seis meses a pedir uma compensação para os trabalhadores incapacitados e para as famílias dos mortos.

A FIFA faz ouvidos de mercador. As contas são simples. O Qatar gastou 200 mil milhões na construção de estádios e outras infraestruturas. A FIFA deverá ganhar seis mil milhões com o campeonato. A AI está a pedir 400 milhões para os mortos e estropiados. E eles não aparecem.

A Carbon Market Watch, um think-tank ambiental que trabalha, entre outros, para a Comissão Europeia, avisou que a neutralidade carbónica reivindicada pela organização do Qatar 2022 é “rebuscada e espúria”. Os autores do relatório explicam que os cálculos dos organizadores não atribuem a construção dos seis estádios ao Mundial, optando por espalhar o seu custo ambiental ao longo da sua vida útil, estimada em mais de 50 anos. Desta forma, dividiram por oito a pegada carbónica. Depois, os organizadores gabam a proximidade geográfica entre os estádios como causa de menos viagens, mas, na prática, haverá mais de 160 voos diários para transportar pessoas para o Qatar, dada a reduzida capacidade de albergue do país. E depois há a jactância dos estádios climatizados. Se argumentos faltassem.

Como escreveu Luís Aguiar-Conraria há umas semanas no Expresso: “Ficava-nos tão bem boicotarmos a porcaria do Mundial de futebol.” Só que boicote não houve. Resta-nos um boicote caseiro, que consiste em não ver nem ouvir. Os anunciantes que metem milhões nos bolsos da FIFA esperam muitos olhos fixados no estádio no dia dos jogos. É pura utopia, mas imagine all the people a olhar para outro lado.

Carlos Moedas e Rui Moreira dão um empurrãozinho a esta utopia: à semelhança de Paris, Lille, Estrasburgo, Reims, Bordéus e Marselha ou Londres, não haverá Fan Zones em Lisboa nem no Porto. Não sabemos se esta decisão se deve às cartas que os dois edis receberam da Frente Cívica, mas também não importa: a decisão está tomada e saúda-se.

Já não se saúda a anunciada viagem ao Qatar de António Costa, Marcelo Rebelo de Sousa e Augusto Santos Silva. Subscrevo a carta dirigida às três figuras cimeiras do Estado pelo presidente e pelo vice-presidente da Frente Cívica, Paulo de Morais e João Paulo Batalha, na qual lhes apelam para que não se desloquem ao Qatar. Explicam que “Portugal é mais do que uma equipa de futebol ou um evento desportivo” e consideram “imorais e ilegítimos quaisquer gestos de legitimação, e até de celebração”, da “barbárie civilizacional” que é o Qatar 22. Vamos lá ver se nos entendemos. Marcelo, Costa e Santos Silva não são uns adeptos quaisquer. São o Presidente da República, o primeiro-ministro e o presidente da Assembleia da República de Portugal. A sua viagem ao Qatar legitima a lavagem desta monarquia arcaica e repressiva, em nosso nome. Se não têm eles vergonha, pensem na nossa e fiquem em casa.

P.S.: Terminei este texto antes das declarações de Marcelo Rebelo de Sousa sugerindo que esqueçamos o desrespeito pelos direitos humanos do Qatar e nos concentremos na seleção. Se dúvidas houvesse quanto à intenção de lavagem do regime, desapareceram. Boa viagem, Presidente Marcelo.»

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Notícias da noite de ontem – Assim vamos!

 


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17.11.22

Garrafas

 


Garrafas Arte Nova, Crystal Karaf, cerca de 1900.
Por Val Saint Lambert.


Daqui.
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Carlos Costa: saltam mentiras debaixo das pedras

 

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A «Revolução de Veludo» – Praga, 17.11.1989



 

Poucos dias depois da queda do Muro de Berlim, com início no campus universitário e concentração final na mítica Praça Wenceslas, teve lugar uma marcha pacífica de estudantes, que pretendia assinalar a morte de Jean Opletal em 1939 e o encerramento das universidades checas pelos nazis. A manifestação foi fortemente reprimida pela polícia, facto que desencadeou uma onda de eventos que iria durar até final do ano e que congregou um número crescente de participantes. 


Momento alto em 27 de Novembro, dia de greve geral, em que Mikhaïl Gorbatchev fez uma declaração em que condenou a operação do Pacto de Varsóvia, que pôs termo à Primavera de Praga em 1968, numa clara demonstração de ausência de suporte ao governo da Checoslováquia por parte da União Soviética. 


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A beatitude das mentiras do clima



 

«A mobilização dos jovens que em Portugal exigem medidas climáticas concretas, como noutros países, tem recebido duas respostas típicas: a condescendência, que giros que são, e a descompostura, afinal não percebem que tudo está no bom caminho. É-lhes oferecida a satisfação com a encenação das conferências anuais e com as declarações beatíficas aí produzidas, que tem feito caminho desde o Acordo de Paris e é o mantra atual – o capitalismo sabe resolver o problema e o mercado é o seu profeta. Por isso, o contraste da voz desesperada de António Guterres vai-se tornando mais notório: diz ele que estamos a caminho do abismo e a manter o pé no acelerador, apontando aos principais governos o crime de estarem a mentir aos seus povos e, ao fazê-lo, parece simplesmente um homem só, o único naquelas reuniões a desprezar os discursos e as promessas com que se espera que sejamos entretidos. Quem havia de dizer que, neste sinal dos tempos, um dos mais moderados políticos mundiais se mostraria tão exasperado e sinceramente zangado com a fraude em que se tornaram as políticas climáticas. Tem razões para isso e, já agora, essa é a motivação dos jovens que protestam.

A dimensão desta mentira pode ser ainda maior do que se supõe. Na Cimeira do Egipto, Catherine McKenna, uma ex-ministra canadiana que chefia o observatório da ONU sobre os Compromissos para Emissões-Zero, apresentou um relatório devastador sobre duas mil das maiores empresas do mundo, que afirmam compromissos de emissões-zero. Só que, diz ela, 93% dessas empresas não atingirá nunca o objetivo com as suas medidas previstas. Uma consultora, a Accenture, registou os casos generalizados de “apresentação desonesta de contabilidade” de emissões, em alguns casos mascarando a promoção de novos investimentos em combustíveis fósseis. Ainda sobre o comportamento das maiores empresas, a revista “The Economist” cita um relatório que identifica 1200 grandes empresas de 12 países que afirmam ter metas para a redução de emissões, mas não as revelam. Há ainda o caso da contabilização falsificada da redução de emissões por países onde já se generalizou o automóvel elétrico, mas que não contam o efeito emissor da sua produção importada ou da destruição posterior das baterias.

Com tudo isto, chegamos ao único resultado que não é possível disfarçar, o planeta já aqueceu 1,2ºC em relação à média pré-industrial e, considerando o efeito de inércia dos processos climáticos, já não é possível restringir o impacto aos prometidos 1,5ºC, mesmo que houvesse agora um travão total à produção de emissões. Segundo o IPPC, para que os 1,5ºC fossem cumpridos, só se poderiam ter emitido mais 2890 milhares de milhões de toneladas de dióxido de carbono, mas até 2019 chegou-se aos 2390 milhares de milhões e desde então foram acrescentadas mais 120, pelo que este caminho é agora irreversível. Afirma a mesma instituição da ONU que seria necessário o triplo do investimento em energias limpas para permitir o travão das emissões, o que demonstra simultaneamente que era possível e que a solução será bloqueada.

Há duas razões para este bloqueio. A primeira é mesmo o mercado: estão instalados na COP27 603 lobistas das empresas mais poluentes, são mais do que os dos dez países mais afetados pelas alterações climáticas. São um poder e um poder excessivo (será preciso lembrar que, por regra internacional, os representantes das empresas do tabaco não podem ter acesso a reuniões internacionais sobre normas para a saúde?). A segunda razão é ainda o mercado: os governos mais poderosos incentivam a corrida ao fóssil, em particular ao gás, o governo dos EUA criou recentemente um sistema de financiamento para a compra de autorizações de emissão a países mais pobres, de modo a aumentar as suas próprias emissões, a Espanha e Alemanha retomaram a produção de carvão, e a lista continua. Este é o pé no acelerador que Guterres denuncia. O mercado funciona e o caminho para o abismo está cheio de consoladores lucros e dividendos.»

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Nuno Teotónio Pereira

 


Teria chegado aos 100 em 30.01.2022.
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16.11.22

Colares



 

Colar Arte Nova, de ouro e ametistas, França, 1900.
Henri Victor Miault.

Daqui.
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«Invasão» da Ucrânia pela Rússia?

 



"Não há dúvida de que há uma intervenção militar russa na Ucrânia", diz Paulo Raimundo.

Ainda não é com este novo SG que ouviremos a palavra «INVASÃO». Livra! Engasgavam-se se a pronunciassem?
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Nómadas digitais: um país, dois sistemas


 

«O Governo anunciou recentemente, pela voz do primeiro-ministro, que está a ponderar acabar com os “vistos gold”. Não é a influência deste regime de exceção na escalada galopante dos preços da habitação que motiva o PS. Até porque ainda há poucos meses chumbou as propostas do BE e do PCP para revogar os “vistos gold”. Como mostrou o jornal Público, esta semana, a emissão de vistos tem diminuído e o seu peso no mercado imobiliário já é residual: 1,5% do volume de negócios, bem longe dos 10% de 2014 e menos de metade da média desde que foram criados, em 2012.

Não nego o sinal positivo. Os “vistos gold” alimentaram a bolha imobiliária, foram um convite à entrada de dinheiro sujo e constituem um regime moralmente reprovável. É imoral ver como se foi vendendo a quem tinha posses para isso o direito de presença no espaço europeu que se negou e nega a quem vem para trabalhar e contribuir para diminuir a crise demográfica que afeta os sistemas de segurança social europeus.

Os “vistos gold” não foram o único fator para o aumento dos preços do mercado imobiliário. Juros baixos, alojamento local, confiança reduzida nos bancos depois da crise financeira, baixas taxas de rendibilidade industrial ou de outros mercados e, no caso português, entrada de Lisboa e Porto no radar do mercado internacional de imobiliário de luxo também contaram. Tudo junto, foi a receita para o desastre que conhecemos: de 2015 a 2021 o preço da habitação cresceu quatro vezes mais do que a massa salarial. Mesmo com os “vistos gold” em declínio, porque desde o ano passado que há severas restrições na sua emissão para Lisboa e Porto, o investimento estrangeiro aumentou 70% no primeiro trimestre, contribuindo para um aumento de 13% no preço da habitação.

Em 2012, quando o programa foi criado pelo governo de Passos Coelho, foi fixado o preço de 500 mil euros de um imóvel habitacional para poder atribuir o visto. Tente ir hoje a uma plataforma imobiliária e vai ver que lhe aparece, em Lisboa, por 500 mil euros. É o preço de referência para T2 comuns. O novo normal é pagar como luxo o que até há dez anos era uma casa acessível à classe média. O mercado ajustou-se, em alta, como um todo.

A financeirização do mercado habitacional não é um fenómeno exclusivamente nacional. Encontramos relatos semelhantes na imprensa europeia e norte-americana. Mais de 60% dos britânicos de classe médias, entre os 25 e os 34 anos, tinham casa própria em 1997. Vinte anos passados esse valor desceu para 35%. A diferença em relação a Portugal é que na maioria dos países europeus há oferta pública de habitação, incluindo para a classe média. Quase 12% do parque habitacional na Europa faz parte de soluções públicas a preços controlados. Em Portugal são 2%. Quando falamos de grandes cidades, a percentagem é ainda mais elevada. Amesterdão, Estocolmo, Viena ou Bruxelas têm todas entre 25% a 40% de casas geridas por programas sociais. Lisboa e Porto nem chegam aos 10%.

Dizer que o que está a falhar é a escassez de construção, como tem feito a Iniciativa Liberal e grande parte da direita, é ignorar que Portugal é o país da Europa com o maior número de casas por mil habitantes. Se a IL lesse os relatórios das consultoras que passa os dias a citar em matéria fiscal, saberia que o problema não é o stock, porque este não tem paralelo na Europa, mas a forma como este tem vindo a ser desviado para a oferta turística ou rentabilização de ativos. O mesmo relatório da Deloitte indica-nos que Lisboa é a cidade europeia, a larga distância de todas as outras, onde a disparidade de preços face ao resto do país é mais elevada. Lisboa é a única cidade europeia onde o metro quadrado custa mais do triplo do que a média nacional.

É nesse contexto que a manutenção de outro regime fiscal de exceção, desta vez sobre os nómadas digitais, demonstra que a habitação, um dos mais graves problemas sociais e até económicos deste momento, é das menores preocupações do PS. "Somos um país muito sexy, apetitoso para estrangeiros”, disse a secretária de Estado do Turismo, esperando que por isso queiram “pernoitarem algum tempo connosco”. Com este deslumbramento pacóvio não se espera vontade para corrigir a disparidade fiscal existente.

António Costa e Fernando Medina tentam associar as críticas a este programa à rejeição de sociedades abertas e multiculturais. Falando por mim, o problema não é com os estrangeiros que procuram Portugal. Pelo contrário. Quem me dera que recebêssemos mais decentemente os que nos procuram para trabalhar. A questão é a existência de um país com dois sistemas fiscais. Num, os imigrantes qualificados e muito bem pagos a trabalhar a partir daqui para algumas das maiores multinacionais estão isentos ou pagam no máximo 20% de imposto sobre o rendimento. Noutro, os restantes trabalhadores, sejam portugueses ou imigrantes sem as benesses do estatuto de residente não habitual, pagam mais impostos para o mesmo rendimento. Esta inaceitável disparidade é que vai fazer crescer o caldo cultural de que se alimenta o ressentimento contra “os estrangeiros”. Um sentimento que, a julgar pelas reportagens quase diárias na imprensa internacional de referência sobre a nova Califórnia da Europa, tem todas as condições para vir crescendo.

A consequência do que se está a passar em Lisboa, onde jovens nómadas mostram o seu contentamento com a pechincha que é poder alugar um T3 por 2100 euros em Lisboa, é termos cada vez mais senhorios a não renovar contratos de arrendamento ao fim dos três ou cinco anos de contrato. Quem não dispõe das borlas fiscais dos nómadas digitais e tem regra geral salários bem mais baixos compete pelas mesmas casas que os que, ganhando o triplo, estão a pagar metade dos impostos. Usando os mesmíssimos serviços que os seus vizinhos (não por muito tempo) financiam. Só quem não aprendeu nada com o que se passou nesta última década pode achar que isto não vai criar uma situação ainda mais explosiva no mercado habitacional em Lisboa e Porto – alastrando depois, como acontece sempre, às cidades limítrofes.

Estamos a criar cidades inacessíveis para todos, um problema reforçado pela lentidão na criação de uma oferta pública. A resposta de Carlos Moedas, quando toda a esquerda se uniu na Câmara Municipal de Lisboa para alargar a suspensão do Alojamento Local para lá do centro histórico onde já estava em vigor, é exemplar sobre esta visão da habitação como um instrumento financeiro: “esta decisão vem limitar a liberdade de empreender”, escreveu na sua conta do Twitter. A casa dos lisboetas é, na verdade, o primeiro unicórnio criado pela equipa de Carlos Moedas.

A julgar pela conversa que Moedas teve com o fundador da Airbnb durante a Web Summit, onde o interpelou diretamente considerando que são “pessoas como tu que nos podem ajudar”, parece que o destino de Lisboa é continuará a ser a cidade com maior número de alojamentos locais na Europa, à proporção da sua população. Passamos da lavandaria de capital pouco recomendável a hospedaria da Europa. Mas o problema é sempre o mesmo: procurar capital externo para valorizar património e alimentar a especulação desprezando a produção e a procura interna. Sempre o mesmo modelo, sempre falhado. Com um brutal impacto social.»

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Na Escola Secundária Camões foi assim

 


Comunicado da ES Camões (14.Nov.22, na íntegra)

"Em 2008, quando este diretor e esta direção entraram em funções, definiram como princípios orientadores da sua ação uma escola verdadeiramente inclusiva, que garanta a igualdade de direitos de toda a comunidade escolar e que seja um espaço privilegiado de reflexão, pensamento crítico e democrático. O nosso trabalho, desde então, tem sido focado na qualidade do ensino e no ecletismo de uma vivência social consciente e em constante evolução. Para este fim, oferecemos os mais variados projetos de dança, música, desporto, teatro, cinema, ciência, leitura, história, entre muitos outros… proporcionamos e estimulamos o acesso a conferências, palestras, mesas-redondas, sessões de esclarecimento, debates e às mais variadas performances artísticas. Apoiamos (e participamos em) protestos (que vão desde a elaboração de pareceres à participação em marchas) pelas causas que tocam a comunidade escolar.

A semana que passou foi atípica em termos do normal funcionamento da escola. A direção viu-se confrontada com um número elevado de estudantes que aderiram ao movimento “Ocupa – Fim ao Fóssil”, na defesa de uma causa que a todos nós diz respeito. Congratulamo-nos que esta comunidade de estudantes tenha dado voz à sua e nossa causa e, de uma forma concertada, tenha feito chegar a sua voz a todo o país e, principalmente, a decisores políticos com responsabilidade direta sobre estes assuntos.

No entanto, não há direitos humanos, direitos universais, que se sobreponham uns aos outros e, como tal, não podemos permitir que seja vedado o acesso ao direito humano universal que é a educação. Por esta razão, após tomado o conhecimento do encerramento forçado da escola, reunimos com os alunos do movimento e, na presença de representantes da Associação de Pais e Encarregados de Educação e da Presidente do Conselho Geral, acordámos que este bloqueio acabaria às 24h00 de 14 de novembro.

Houve, ainda, o compromisso de a escola proporcionar à comunidade estudantil no seu todo, sem exceção, a possibilidade de acesso à informação necessária (através de projetos escolares, palestras, sessões de esclarecimento e mesas-redondas, por exemplo) para uma cada vez mais profunda tomada de consciência sobre esta causa que nos une, sempre num espírito de abertura e de diálogo democrático.

O espaço da escola é, e será sempre, a “casa” de todas as pessoas que nela estudam e que nela se formam, um lugar de liberdade de expressão, manifestação e afirmação.

Este comunicado foi elaborado e é subscrito pela direção, pela presidente do Conselho Geral e pela Associação de Pais e Encarregados de Educação da nossa escola."
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15.11.22

Cerâmicas

 


Quadrados de cerâmica, Blankenberge, Bélgica. 1906.
Arquitecto: Felix Cosman.


Daqui.
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COP27: Salvaguardar a vida na Terra




«A conferência das Nações Unidas sobre alterações climáticas (COP27) prossegue em Sharm el-Sheikh, no Egito. As notícias vão chegando pela imprensa, normalmente associadas à participação dos principais líderes políticos, mas a expectativa nas suas deliberações é muito modesta; parece improvável que desta COP resulte um roteiro político credível com vista à eliminação dos combustíveis fósseis.

São esperadas mais de 40.000¬ pessoas, originárias de 196 países, e prevê-se a presença de cerca de cem chefes de Estado e de Governo, numa cimeira muito condicionada pela guerra na Ucrânia e pelos seus impactos no sector energético e na economia mundial em geral, mas que poderá ser igualmente influenciada pelo otimismo de um Brasil que ressurge comprometido com a agenda ambiental internacional, em especial com a defesa da floresta amazónica.

Em qualquer caso, antecipa-se uma cimeira mais discreta do que a de Glasgow (2021), onde ainda foi possível um vago acordo internacional para manter o aquecimento do planeta abaixo de 1,5 oC – sendo que as temperaturas já subiram pelo menos 1,1 oC desde o período pré-industrial e as emissões de carbono continuam a aumentar.

Havia esperança de que a pandemia tivesse contribuído para afastar definitivamente as economias mundiais da dependência de combustíveis fósseis, quando os bloqueios reduziam o consumo de energia e as lideranças mais progressistas propunham agendas alternativas, mas bastou a abertura de fronteiras para que regressassem em força. De tal modo que, segundo a Agência Internacional de Energia, o rendimento dos produtores de petróleo e gás duplicará em 2022.

Com crescente perplexidade assistimos ao fracasso de uma sociedade tecnologicamente avançada, que é capaz de reunir competências para responder aos desafios mais complexos, mas não se capacita para enfrentar o maior de todos os desafios: a salvaguarda do planeta e dos sistemas que suportam a vida tal como a conhecemos.

Os cenários climáticos traçados pela ciência são inequívocos, sendo que as evidências superam as piores previsões: as catástrofes estão a acontecer mais rapidamente e com maior intensidade. O aquecimento do planeta mantém-se alinhado com as projeções, mas os seus efeitos têm sido surpreendentemente extremos.

Apesar do compromisso conseguido nas recentes cimeiras do IPCC [Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas], em que os países acordaram em cumprir o limite de 1,5 oC, este limiar poderá ser ultrapassado numa década, provocando piores secas e ondas de calor, inundações e maior gravidade nos padrões de doença. Antes de Glasgow, anunciava-se que a COP26 seria a última oportunidade do mundo para limitar o aquecimento global a 1,5 oC ainda neste século. No entanto, no relatório anual do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, publicado no final de Outubro (Emissions Gap Report), confirma-se que houve pouquíssimo progresso desde a COP26 para reduzir a imensa lacuna de emissões para 2030, estando o planeta a avançar para um aumento de temperatura na ordem dos 2,8 oC.

Para que o mundo consiga cumprir o limite de 1,5 oC, as emissões globais terão de ser reduzidas em 5% a 7% ao ano. Ora as emissões estão a aumentar entre 1% e 2% ao ano, não havendo sinais de diminuição. Estabelecer orientações para a redução de carbono, assinalando reformas políticas radicais, deveria ser uma prioridade da COP27, mas é provável que o debate seja dominado pela problemática das compensações: os países mais pobres exigem que os países mais ricos, historicamente responsáveis pela maior fatia das emissões, paguem pelos prejuízos climáticos. A mobilização financeira necessária para os países emergentes e em desenvolvimento, para além da China, é muito elevada. E não se trata apenas dos 100 mil milhões de dólares por ano que os países de maior rendimento prometeram e até agora não cumpriram! Trata-se de um investimento muito maior, mas inteiramente comportável pelas grandes economias do mundo, e deve ter uma orientação clara: reduzir as emissões de carbono, eliminar progressivamente os combustíveis fósseis, e restaurar os ecossistemas terrestres e marinhos, apoiando ações que contribuam tanto para a redução das emissões de gases com efeito de estufa como para a adaptação ao aquecimento global, como a implementação de medidas que se baseiam na capacidade natural dos ecossistemas para reduzir o risco climático.»

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14.11.22

Colheres

 


Conjunto de seis colheres Arte Nova em prata, Birmingham, 1909.
Trevitt & Sons.


Daqui.
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Entretanto em Espanha

 

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Há alguma iniciativa semelhante da selecção portuguesa?

 



«O selecionador Louis van Gaal disse esta sexta-feira que a equipa vai tirar algum tempo do calendário para se reunir com um grupo de migrantes que trabalhou na construção dos estádios onde se vai jogar o torneio. (…)

Além de deixar clara a posição dos neerlandeses, este encontro vai também colocar em foco tudo aquilo com que estes trabalhadores tiveram que lidar durante o período de construção de infraestruturas para a competição. De acordo com uma investigação do “The Guardian”, desde que as obras começaram, morreram cerca de 6.500 trabalhadores no Catar. (…)

Van Gaal também já se tinha posicionado contra a realização do torneio no país, em março passado. Para o treinador, a decisão é "ridícula" e acusou a FIFA de colocar o dinheiro na frente de tudo o resto.»
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O Mundial da consciência pausada



 

«Daqui a uns dias, o planeta volta a encolher-se no reduto do futebol. Nada mais interessará quando a bola girar, os hinos soarem e as bandeiras se agitarem.

O contexto transforma-se em detalhe. O exército global de entusiastas que vai acompanhar, pela televisão, o Mundial do Catar esquecerá os migrantes mortos nas obras, o desrespeito pelos direitos das mulheres e da comunidade LGBT e os constantes atropelos à democracia de uma monarquia absoluta que instalou ar condicionado em estádios majestosos que serão desmantelados logo depois da prova. Joseph Blatter, o ex-homem-forte da FIFA que patrocinou, de forma criativa, a escolha do país árabe, demorou uma década a arrepender-se da decisão. Este foi o momento consciência pesada da Federação Internacional do Futebol.

Mas ao longo dos anos, e com a imagem do Catar a degradar-se aos olhos das democracias ocidentais, a posição da FIFA foi evoluindo para o estado em que hoje se encontra: o da consciência pausada. "Concentrem-se no futebol e fechem os olhos ao resto" é o novo mantra. E, no final, é mesmo isso que vai acontecer. Ficarão os golos, os heróis e os vilões, o brio nacionalista travestido de júbilo ou desilusão.

O futebol é uma indústria, não um conto de fadas. Busca lucros, audiências, capital de influência, é permeável aos subornos, mas ilude as trapaças com a habitual magia dos dribles dos que alimentam a máquina, mesmo que esta os mastigue e deite fora: os jogadores. Será sobre eles que vão recair as atenções.

Mas a FIFA não brinca em serviço e já avisou os artistas que eles estão lá para entreter, não para despertar consciências ou acordar fantasmas. Veremos quão obedientes serão atletas, treinadores e dirigentes. É ali, no campo, na montra planetária onde não há barreiras, que ainda podem fazer a diferença. Há muitas formas de ganhar jogos neste Mundial da consciência pausada.»

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13.11.22

É sempre bom que os protestos tenham asas

 


E estes já chegaram a The Guardian.

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Privilégios de lisboetas que não moram em bairros chiques



 

Hoje há jogo no Benfica às 18:00 e o restaurante que fica mesmo nas traseiras do meu prédio resolveu inovar e assar um porco no espeto para alimentar adeptos – e vizinhos, claro. Empreendedorismo do bom, Lisboa também é isto e o bicho estava muito bem «tratado»…

(Não se come na rua, como pode parecer, mas numa sala ampla e agradável.)
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Era bom, era...

 

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Direitos e deveres dos políticos

 


«O espaço público tem sido dominado por notícias sobre incompatibilidades, investigações e suspeitas que recaem sobre políticos. No Governo, no Parlamento, nas autarquias locais. Não se trata de um assunto novo. Pelo contrário, os últimos anos têm sido pródigos neste tipo de agenda mais ou menos sensacio¬nalista, que é terreno fértil para fazer germinar o populismo e que afasta a atenção dos assuntos que verdadeiramente interessam ao futuro do país e que devem ser objeto de um debate coletivo e de uma análise séria e rigorosa.

Mas esta é, simultaneamente, uma matéria que se encontra no âmago do Estado de Direito democrático, não só porque o escrutínio e a credibilidade da classe política são essenciais à democracia, mas também porque aos políticos têm de ser garantidos os mesmos direitos que aos restantes cidadãos.

Os políticos têm os mesmos direitos que os outros cidadãos, mas têm mais deveres. Porque o povo os elegeu democraticamente para os representar em cargos em que podem influenciar ou até determinar o nosso futuro comum, porque utilizam recursos públicos e porque prosseguem fins de interesse público que nos dizem respeito a todos. Em suma, porque neles depositamos a nossa confiança.

Esses deveres inerentes aos cargos políticos resultam da Constituição e da lei, através da consagração de regras sobre incompatibilidades, impedimentos e deveres de conduta, além de tipos penais específicos. Do escrupuloso cumprimento destas regras depende o Estado de Direito democrático.

Mas a integridade do Estado de Direito depende também do respeito pelos direitos dos políticos enquanto cidadãos: presunção de inocência, direito de defesa, direito ao bom nome e à reputação, à imagem, à reserva da intimidade da vida privada e familiar, à proteção contra qualquer forma de discriminação ou perseguição.

A garantia destes direitos não impede o escrutínio e a transparência a que os políticos, atendendo à posição que ocupam, estão e devem estar sujeitos. Impede sim o populismo e a demagogia.

Sempre defendi que os titulares de cargos públicos não podem ser condenados sumariamente a uma “morte política” por haver uma suspeita ou uma investigação em curso, independentemente da constituição ou não como arguido — que, aliás, no nosso ordenamento jurídico é sobretudo uma forma de conferir garantias de defesa a quem é investigado. Além disso, a constituição como arguido pode até resultar de eventos da vida privada que nada têm a ver com o exercício das funções públicas.

Existe, isso sim, uma dimensão de responsabilidade política (e não civil ou criminal) que recai sobre os titulares de cargos políticos e que impõe, na minha opinião, três obrigações principais quando os mesmos são objeto de investigação ou de suspeita: que sejam dadas explicações públicas claras, transparentes e compreensíveis por todos; que a situação não impeça ou prejudique o exercício das funções públicas que lhes estão confiadas; e que haja coerência no tratamento dos casos, tendo em conta as respetivas diferenças.

Da verificação destas três condições depende a credibilidade e a confiança na classe política. Exigir o cumprimento destas obrigações, sem acusações infundadas ou demagógicas instrumentalizadas a agendas populistas e extremistas, é contribuir para o reforço do Estado de Direito democrático.»

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