«O Governo anunciou recentemente, pela voz do primeiro-ministro, que está a ponderar acabar com os “vistos gold”. Não é a influência deste regime de exceção na escalada galopante dos preços da habitação que motiva o PS. Até porque ainda há poucos meses chumbou as propostas do BE e do PCP para revogar os “vistos gold”. Como mostrou o jornal Público, esta semana, a emissão de vistos tem diminuído e o seu peso no mercado imobiliário já é residual: 1,5% do volume de negócios, bem longe dos 10% de 2014 e menos de metade da média desde que foram criados, em 2012.
Não nego o sinal positivo. Os “vistos gold” alimentaram a bolha imobiliária, foram um convite à entrada de dinheiro sujo e constituem um regime moralmente reprovável. É imoral ver como se foi vendendo a quem tinha posses para isso o direito de presença no espaço europeu que se negou e nega a quem vem para trabalhar e contribuir para diminuir a crise demográfica que afeta os sistemas de segurança social europeus.
Os “vistos gold” não foram o único fator para o aumento dos preços do mercado imobiliário. Juros baixos, alojamento local, confiança reduzida nos bancos depois da crise financeira, baixas taxas de rendibilidade industrial ou de outros mercados e, no caso português, entrada de Lisboa e Porto no radar do mercado internacional de imobiliário de luxo também contaram. Tudo junto, foi a receita para o desastre que conhecemos: de 2015 a 2021 o preço da habitação cresceu quatro vezes mais do que a massa salarial. Mesmo com os “vistos gold” em declínio, porque desde o ano passado que há severas restrições na sua emissão para Lisboa e Porto, o investimento estrangeiro aumentou 70% no primeiro trimestre, contribuindo para um aumento de 13% no preço da habitação.
Em 2012, quando o programa foi criado pelo governo de Passos Coelho, foi fixado o preço de 500 mil euros de um imóvel habitacional para poder atribuir o visto. Tente ir hoje a uma plataforma imobiliária e vai ver que lhe aparece, em Lisboa, por 500 mil euros. É o preço de referência para T2 comuns. O novo normal é pagar como luxo o que até há dez anos era uma casa acessível à classe média. O mercado ajustou-se, em alta, como um todo.
A financeirização do mercado habitacional não é um fenómeno exclusivamente nacional. Encontramos relatos semelhantes na imprensa europeia e norte-americana. Mais de 60% dos britânicos de classe médias, entre os 25 e os 34 anos, tinham casa própria em 1997. Vinte anos passados esse valor desceu para 35%. A diferença em relação a Portugal é que na maioria dos países europeus há oferta pública de habitação, incluindo para a classe média. Quase 12% do parque habitacional na Europa faz parte de soluções públicas a preços controlados. Em Portugal são 2%. Quando falamos de grandes cidades, a percentagem é ainda mais elevada. Amesterdão, Estocolmo, Viena ou Bruxelas têm todas entre 25% a 40% de casas geridas por programas sociais. Lisboa e Porto nem chegam aos 10%.
Dizer que o que está a falhar é a escassez de construção, como tem feito a Iniciativa Liberal e grande parte da direita, é ignorar que Portugal é o país da Europa com o maior número de casas por mil habitantes. Se a IL lesse os relatórios das consultoras que passa os dias a citar em matéria fiscal, saberia que o problema não é o stock, porque este não tem paralelo na Europa, mas a forma como este tem vindo a ser desviado para a oferta turística ou rentabilização de ativos. O mesmo relatório da Deloitte indica-nos que Lisboa é a cidade europeia, a larga distância de todas as outras, onde a disparidade de preços face ao resto do país é mais elevada. Lisboa é a única cidade europeia onde o metro quadrado custa mais do triplo do que a média nacional.
É nesse contexto que a manutenção de outro regime fiscal de exceção, desta vez sobre os nómadas digitais, demonstra que a habitação, um dos mais graves problemas sociais e até económicos deste momento, é das menores preocupações do PS. "Somos um país muito sexy, apetitoso para estrangeiros”, disse a secretária de Estado do Turismo, esperando que por isso queiram “pernoitarem algum tempo connosco”. Com este deslumbramento pacóvio não se espera vontade para corrigir a disparidade fiscal existente.
António Costa e Fernando Medina tentam associar as críticas a este programa à rejeição de sociedades abertas e multiculturais. Falando por mim, o problema não é com os estrangeiros que procuram Portugal. Pelo contrário. Quem me dera que recebêssemos mais decentemente os que nos procuram para trabalhar. A questão é a existência de um país com dois sistemas fiscais. Num, os imigrantes qualificados e muito bem pagos a trabalhar a partir daqui para algumas das maiores multinacionais estão isentos ou pagam no máximo 20% de imposto sobre o rendimento. Noutro, os restantes trabalhadores, sejam portugueses ou imigrantes sem as benesses do estatuto de residente não habitual, pagam mais impostos para o mesmo rendimento. Esta inaceitável disparidade é que vai fazer crescer o caldo cultural de que se alimenta o ressentimento contra “os estrangeiros”. Um sentimento que, a julgar pelas reportagens quase diárias na imprensa internacional de referência sobre a nova Califórnia da Europa, tem todas as condições para vir crescendo.
A consequência do que se está a passar em Lisboa, onde jovens nómadas mostram o seu contentamento com a pechincha que é poder alugar um T3 por 2100 euros em Lisboa, é termos cada vez mais senhorios a não renovar contratos de arrendamento ao fim dos três ou cinco anos de contrato. Quem não dispõe das borlas fiscais dos nómadas digitais e tem regra geral salários bem mais baixos compete pelas mesmas casas que os que, ganhando o triplo, estão a pagar metade dos impostos. Usando os mesmíssimos serviços que os seus vizinhos (não por muito tempo) financiam. Só quem não aprendeu nada com o que se passou nesta última década pode achar que isto não vai criar uma situação ainda mais explosiva no mercado habitacional em Lisboa e Porto – alastrando depois, como acontece sempre, às cidades limítrofes.
Estamos a criar cidades inacessíveis para todos, um problema reforçado pela lentidão na criação de uma oferta pública. A resposta de Carlos Moedas, quando toda a esquerda se uniu na Câmara Municipal de Lisboa para alargar a suspensão do Alojamento Local para lá do centro histórico onde já estava em vigor, é exemplar sobre esta visão da habitação como um instrumento financeiro: “esta decisão vem limitar a liberdade de empreender”, escreveu na sua conta do Twitter. A casa dos lisboetas é, na verdade, o primeiro unicórnio criado pela equipa de Carlos Moedas.
A julgar pela conversa que Moedas teve com o fundador da Airbnb durante a Web Summit, onde o interpelou diretamente considerando que são “pessoas como tu que nos podem ajudar”, parece que o destino de Lisboa é continuará a ser a cidade com maior número de alojamentos locais na Europa, à proporção da sua população. Passamos da lavandaria de capital pouco recomendável a hospedaria da Europa. Mas o problema é sempre o mesmo: procurar capital externo para valorizar património e alimentar a especulação desprezando a produção e a procura interna. Sempre o mesmo modelo, sempre falhado. Com um brutal impacto social.»
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