25.5.25

“Estou farto!”

 


«A SIC fez um vox populi em Sintra para perceber como o Chega venceu o segundo concelho mais populoso do país. A resposta de quase todos os inquiridos foi: “Estou farto!” Depois desfiavam queixas que, tirando a imigração e a habitação, são de sempre e poderiam levar ao voto em qualquer outro partido. Sabemos que este é o tempo da deceção. Nunca se prometeu tanto para esperar tão pouco. E nunca os instrumentos de revolta foram tão atomizados. As pessoas têm a sensação justificada de não ter poder na mudança. Por isso usei, há uns meses, a imagem de abanar uma árvore que se sabe que não cairá. Ainda assim, foi mais gente às urnas só para votar num partido que sabem (as pessoas não são parvas) ser ausente de proposta.

Da desigualdade à precariedade e assustadora rapidez de tudo, há muitas razões para explicar um fenómeno global que acelerou depois de uma crise financeira paga pelos de baixo e cresceu com a pandemia. E há, claro, o contexto nacional, em que o debate doméstico se tem concentrado e onde destaco a substituição da saudável polarização programática pelo confronto de personalidades, que só poderia favorecer o rei do espetáculo. Mas, no crescimento da extrema-direita, na consolidação de três blocos políticos e na derrocada do centro-esquerda, apenas chegámos com atraso a uma Europa onde só seis países (em 27) têm a direita abaixo dos 50%.

É verdade que a imigração teve nestas eleições, como em muitas na Europa, um peso extraordinário. Ao lhe dar centralidade política, o Governo contribuiu para a sua centralidade eleitoral, mas é muito mais do que isso. Esta é a transformação demográfica mais significativa desde a vinda dos “retornados”, culturalmente mais próximos e em menor número. Por isso temos de o discutir. Só que o debate está armadilhado. Independentemente do falhanço do SEF, da AIMA ou da manifestação de interesses, a circulação aumentou exponencialmente em todo o mundo e políticas mais ou menos restritivas não têm conseguido controlar mais do que a taxa de regularização. Os imigrantes entram na mesma. A não ser, claro, que aceitemos viver num Estado policial. A esquerda varia entre o discurso dos direitos humanos, moralmente correto mas politicamente inútil, e o utilitarista, que, apesar de ser indiscutível que a economia colapsava sem imigrantes, se confunde com a lógica neoliberal. O debate necessário, sobre o reforço da coesão social para conseguir enfrentar um fenómeno imparável, é demasiado complexo e pouco mobilizador. Usando uma frase citada por Paul Mason em “How to Stop Fascism”: “A extrema-direita fala com as entranhas, a esquerda com o Excel.” O imigrante ou o cigano são reconhecíveis enquanto o patrão já não está na fábrica, está numa offshore e não tem rosto. E o rico que o Bloco quer taxar é invisível, parece-se com alguém próximo que não é assim tão rico ou podíamos ser nós se o “sistema” deixasse.

Parece a conversa da “culpa é do TikTok” e até ajuda a desculpabilizar uma comunicação so¬cial que passou dois dias atrás de um político com azia e talento para o drama, mas não devemos desprezar o poder imersivo das redes sociais. Há uns dias, um vizinho e amigo que vive parte do tempo numa zona com muita imigração do subcontinente indiano falava-me da “invasão”. Quis saber do que se queixava. Teve problemas com algum? Nunca. São concorrência no seu emprego, baseado na agricultura assalariada e em biscates? Sobra trabalho para falta de mão de obra. A dada altura da conversa falou-me de casas e direitos que recebiam e faltavam aos portugueses socorrendo-se de um vídeo que viu. Alguém que vive ao lado de imigrantes foi mais impactado pelas redes do que pela experiência pessoal, que se fica por ter assistido a alguns conflitos. Estou a dizer que não há problemas? Há e a tendência será para haver mais, porque a circulação vai aumentar. Aquele vídeo teria um impacto menor numa zona sem imigrantes. O que as redes determinam é o estado de espírito com que as pessoas olham para problemas reais. Uma pessoa que fez campanha disse-me que passou dias a desmentir, nos mercados, falsos recibos da Segurança Social que lhe mostravam no telemóvel. A produção de desinformação tem uma escala que a democracia nunca conheceu.

Isto não serve para ignorar as razões para o desconforto do “estou farto” que se expressa no voto. Serve para sabermos dos limites da eficácia das nossas respostas. O crescimento da extrema-direita não vem das redes. A dificuldade em combater as doenças de que ela é sintoma sim. Há uma solução? O regresso à política de proximidade, local, de contacto físico e empático. Mas essa revolução, que acredito que acontecerá, ainda vem longe.»


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