(Também publicado em Caminhos da Memória)
Muito se tem escrito sobre António Alçada Baptista desde que se soube que morreu ontem, com 81 anos. Quase tudo foi dito sobre o intelectual, o escritor, o conversador sedutor, o católico progressista, o homem da província que dizia de si próprio, com a distância e a ironia que sempre o caracterizaram: «Na minha visão da infância e da adolescência, Salazar era o procurador, em Lisboa, dos meus avós, dos meus pais, dos meus tios e dos padres.»
Tem-se referido também que foi o fundador da revista
O Tempo e o Modo. Mas importa recuar um pouco e lembrar o que ele próprio considerou a sua grande «aventura». Explica-a bem num capítulo daquele que, no meu entender, foi o seu grande livro:
A pesca à linha. Algumas memórias (1). Pouco virado para a advocacia e apaixonado por livros, descobriu em 1958 que estava à venda a Editora-Livraria Moraes e não hesitou em comprá-la. Nesse ano de tantas esperanças em Portugal, depressa reuniu à sua volta um grupo de jovens recém-licenciados católicos - Pedro Tamen, João Bénard da Costa e Nuno Bragança, entre outros - e assim começaram, em conjunto, uma verdadeira e bela «epopeia», sempre difícil, mas que acabou por dar frutos inestimáveis: várias colecções de livros, aparentemente impensáveis no Portugal de Salazar e Caetano, e duas revistas,
O Tempo e o Modo e a
Concilium.
É como um todo que a actividade da Moraes, desde o fim da década de 50, deve ser entendida - e não isolando um ou outro sector, mesmo
O Tempo e o Modo, como tantas vezes acontece. Porque a Moraes foi muito mais do que uma editora, foi todo um movimento em que se empenharam, a vários níveis, muitas dezenas ou centenas de pessoas, numa abertura cultural e política tornada em grande parte possível pela visão, pelo arrojo e pelo desprendimento de António Alçada Baptista.
A face da Moraes hoje menos conhecida é, talvez, o conjunto das suas magnificas colecções de livros. É impossível enumerar tudo o que foi produzido durante mais de três décadas: centenas de obras de autores portugueses e de traduções, escolhidas seguindo critérios rigorosos, com uma qualidade gráfica excepcional para a época e com uma lista de tradutores de um nível que provoca hoje a maior das admirações: Jorge de Sena, Alexandre O'Neill, Nuno Bragança, Maria Velho da Costa, Fernando Gil e dezenas de outros. Traduzir para a Moraes era também um meio de acrescentar uns tostões (bem poucos) às nossas magríssimas bolsas - e digo «nossas», porque também me foi dada essa possibilidade. Quantas vezes para que o resultado obtido fosse pura e simplesmente proibido e apreendido nas livrarias, com todas as respectivas consequências financeiras.
Para que tudo isto não ficasse esquecido e não fosse desaparecendo com os seus protagonistas, foi editado em 2006, pelo Centro Nacional de Cultura, um pequeno mas lindíssimo livro precisamente intitulado
A aventura da Moraes. Nele são resumidas muitas histórias com alguns pormenores deliciosos, enumeradas com detalhe as colecções de livros, seus autores e tradutores, explicadas as origens e as actividades de
O Tempo e o Modo e da
Concilium (2).
Qual o balanço geral: utopia e fracasso? Deixo a palavra a António Alçada: «Nunca me passou pela cabeça que tínhamos nas mãos uma empresa comercial sujeita a critérios de rentabilidade e julgava que, como nós, alguns milhares de portugueses estavam ansiosos por livros. (...) Mas «esta aventura falhou porque a camada da sociedade portuguesa a quem ela se dirigia recusou frontalmente a sua colaboração e não esteve disposta a correr nenhum risco nem, na prática, se sentiu minimamente solidária com o esforço que estava a ser feito.»
Por isso, a Moraes acabou por fechar em 1980. Mas não é de todo a memória de fracasso que guardamos todos os que lá vivemos uma bela história, não só de combate mas também de cultura, de solidariedade e de amizade, pelo menos até ao 25 de Abril. Por isso voltámos a reunirmo-nos ontem e hoje - já faltaram uns tantos, mas estivemos lá os que ainda pudemos responder à chamada.
(1) António Alçada Baptista, A pesca à linha. Algumas memórias, Editorial Presença, Lisboa, 2000, pp. 59-72.
(2) A aventura da Moraes, Centro Nacional de Cultura, Lisboa, 2006, 110 p. Declaração de interesse e de interesses: estou afectivamente ligada a este livro porque acompanhei de perto a sua elaboração, coordenada por Isabel Tamen, e também porque para ele contribuí como autora de um dos seus oito capítulos.