8.12.08

António Alçada e a aventura da Moraes














(Também publicado em Caminhos da Memória)

Muito se tem escrito sobre António Alçada Baptista desde que se soube que morreu ontem, com 81 anos. Quase tudo foi dito sobre o intelectual, o escritor, o conversador sedutor, o católico progressista, o homem da província que dizia de si próprio, com a distância e a ironia que sempre o caracterizaram: «Na minha visão da infância e da adolescência, Salazar era o procurador, em Lisboa, dos meus avós, dos meus pais, dos meus tios e dos padres.»

Tem-se referido também que foi o fundador da revista O Tempo e o Modo. Mas importa recuar um pouco e lembrar o que ele próprio considerou a sua grande «aventura». Explica-a bem num capítulo daquele que, no meu entender, foi o seu grande livro: A pesca à linha. Algumas memórias (1). Pouco virado para a advocacia e apaixonado por livros, descobriu em 1958 que estava à venda a Editora-Livraria Moraes e não hesitou em comprá-la. Nesse ano de tantas esperanças em Portugal, depressa reuniu à sua volta um grupo de jovens recém-licenciados católicos - Pedro Tamen, João Bénard da Costa e Nuno Bragança, entre outros - e assim começaram, em conjunto, uma verdadeira e bela «epopeia», sempre difícil, mas que acabou por dar frutos inestimáveis: várias colecções de livros, aparentemente impensáveis no Portugal de Salazar e Caetano, e duas revistas, O Tempo e o Modo e a Concilium.

É como um todo que a actividade da Moraes, desde o fim da década de 50, deve ser entendida - e não isolando um ou outro sector, mesmo O Tempo e o Modo, como tantas vezes acontece. Porque a Moraes foi muito mais do que uma editora, foi todo um movimento em que se empenharam, a vários níveis, muitas dezenas ou centenas de pessoas, numa abertura cultural e política tornada em grande parte possível pela visão, pelo arrojo e pelo desprendimento de António Alçada Baptista.

A face da Moraes hoje menos conhecida é, talvez, o conjunto das suas magnificas colecções de livros. É impossível enumerar tudo o que foi produzido durante mais de três décadas: centenas de obras de autores portugueses e de traduções, escolhidas seguindo critérios rigorosos, com uma qualidade gráfica excepcional para a época e com uma lista de tradutores de um nível que provoca hoje a maior das admirações: Jorge de Sena, Alexandre O'Neill, Nuno Bragança, Maria Velho da Costa, Fernando Gil e dezenas de outros. Traduzir para a Moraes era também um meio de acrescentar uns tostões (bem poucos) às nossas magríssimas bolsas - e digo «nossas», porque também me foi dada essa possibilidade. Quantas vezes para que o resultado obtido fosse pura e simplesmente proibido e apreendido nas livrarias, com todas as respectivas consequências financeiras.

Para que tudo isto não ficasse esquecido e não fosse desaparecendo com os seus protagonistas, foi editado em 2006, pelo Centro Nacional de Cultura, um pequeno mas lindíssimo livro precisamente intitulado A aventura da Moraes. Nele são resumidas muitas histórias com alguns pormenores deliciosos, enumeradas com detalhe as colecções de livros, seus autores e tradutores, explicadas as origens e as actividades de O Tempo e o Modo e da Concilium (2).

Qual o balanço geral: utopia e fracasso? Deixo a palavra a António Alçada: «Nunca me passou pela cabeça que tínhamos nas mãos uma empresa comercial sujeita a critérios de rentabilidade e julgava que, como nós, alguns milhares de portugueses estavam ansiosos por livros. (...) Mas «esta aventura falhou porque a camada da sociedade portuguesa a quem ela se dirigia recusou frontalmente a sua colaboração e não esteve disposta a correr nenhum risco nem, na prática, se sentiu minimamente solidária com o esforço que estava a ser feito.»

Por isso, a Moraes acabou por fechar em 1980. Mas não é de todo a memória de fracasso que guardamos todos os que lá vivemos uma bela história, não só de combate mas também de cultura, de solidariedade e de amizade, pelo menos até ao 25 de Abril. Por isso voltámos a reunirmo-nos ontem e hoje - já faltaram uns tantos, mas estivemos lá os que ainda pudemos responder à chamada.


(1) António Alçada Baptista, A pesca à linha. Algumas memórias, Editorial Presença, Lisboa, 2000, pp. 59-72.

(2) A aventura da Moraes, Centro Nacional de Cultura, Lisboa, 2006, 110 p. Declaração de interesse e de interesses: estou afectivamente ligada a este livro porque acompanhei de perto a sua elaboração, coordenada por Isabel Tamen, e também porque para ele contribuí como autora de um dos seus oito capítulos.

2 comments:

sem-se-ver disse...

adoro o seu blog :-)

Joana Lopes disse...

Muito obrigada. Embora sem deixar rasto, também vou gostando de ver e de OUVIR o seu.

Abraço