O homem da ponte
A BBC publicou na sexta-feira um artigo muito curioso com o seguinte título: "Como um homem numa ponte concorreu com o grande momento de Xi Jinping". A história conta-se rapidamente. Numa manhã cinzenta em Pequim e em pleno XX Congresso do PCC, um homem, vestido como um fato laranja próprio dos trabalhadores da construção civil e o respectivo capacete amarelo, dirigiu-se a uma ponte sobre uma avenida da cidade, levando consigo um caixote e dois pneus. Chegado a meio da ponte, desfraldou duas grandes faixas brancas com inscrições vermelhas e pegou fogo aos dois pneus. "Não queremos líderes, queremos votos". Meio envolvido pelas nuvens de fumo negro, pegou num megafone e gritou: "Façam greve nas escolas e no trabalho, derrubem o ditador e traidor nacional Xi Jinping. Queremos comer, queremos liberdade, queremos votar."
Foi preso pela polícia, mas não com a rapidez suficiente para que as imagens do seu protesto solitário não se tivessem espalhado à velocidade da luz nas redes sociais, apesar da rápida intervenção dos polícias da Internet. Proliferam nas redes pinturas do seu acto de rebeldia. Muito raro no tempo de Xi. Feito para coincidir com um Congresso do PCC destinado a fazer de Xi o segundo Mao, colocando-o, na rígida hierarquia comunista, à frente do próprio Deng Xiaoping, a cuja estratégia de "peaceful rising" pôs fim. Para Deng, a economia tinha de estar no posto de comando. Hoje, a segurança interna e o poderio militar são as duas grandes obsessões de Xi, o que também não é uma boa notícia para a economia.
O homem do tanque
Seguiu-se um intenso debate nas redes sociais sobre se "o homem da ponte" podia substituir "o homem do tanque", a imagem icónica de um jovem que enfrentou uma coluna de blindados na Praça Tiananmen, aquando da revolta de milhões de estudantes contra o regime, exigindo liberdade e democracia e acreditando que o destino da China poderia ser igual ao da União Soviética de Gorbatchov. A 4 de Junho de 1989, o exército esmagou brutalmente a revolta, provocando milhares de mortos e deixando um lastro de sangue sobre o qual, na China, é proibido falar.
O "homem do tanque" representava este movimento. O "homem da ponte" pode representar o que pensam e sentem em silêncio muitos chineses. Não sabemos quantos.
Nesse dia, a peça da BBC desconhecia que uma outra imagem, talvez ainda mais poderosa, iria ficar definitivamente associada à entronização de Xi. Na sessão de encerramento do congresso, já com a imprensa estrangeira na sala, o grande espectáculo minuciosamente encenado para que toda a gente levantasse a mão ao mesmo tempo para aprovar o líder, foi subitamente interrompido pelo mais insólito dos acontecimentos: Hu Jintao, o antecessor de Xi à frente do partido e do país, foi retirado do seu lugar de forma muito pouco cortês e manifestamente contra a sua vontade. Estava sentado à esquerda de Xi. Hu, de 79 anos, liderou a China de 2003 a 2013, cumprindo os dois mandatos de cinco anos estabelecidos por Deng, que foram agora retirados dos estatutos do PCC para que Xi pudesse exercer um terceiro. Citando Ian Bremmer, "os ditadores não gostam de limites temporais às suas ditaduras".
O que aconteceu é ainda um mistério. Mas a indiferença de Xi, dando ordens aos dois homens que retiraram o seu antecessor da sala, diante das câmaras da imprensa internacional, é de muito mau agoiro. O poder desta imagem, que correu mundo, ficará associado à nova era do novo imperador de Pequim. Talvez ainda mais do que o homem solitário e misterioso da ponte.
Ainda a economia?
A legitimidade do PCC tem estado assente, desde 1979, quando Deng declarou que "é glorioso enriquecer", na prosperidade crescente de centenas de milhões de chineses. A nova classe média, com acesso a tudo o que as suas congéneres ocidentais usufruem e ainda mais, aceitou menos liberdade a troco de maior conforto. Os que se continuam pobres vivem na esperança de que chegue a sua vez. O crescimento exponencial da economia chinesa garantiu ao regime comunista estabilidade e criou o ambiente propício ao investimento estrangeiro.
No seu discurso inicial de 60 páginas, na tradução inglesa, Xi atacou "a adoração do dinheiro" e as redes sociais, "mergulhadas na desordem". "Os empresários chineses já se sentem intimidados pelos ataques de Xi", escreve David Ignatius no Washington Post. "Agora, o mais natural é que evitem qualquer contacto com empresas ocidentais que possam relevar-se perigosos."
Quando Xi substituiu Hu, em 2013, o Instituto Nacional de Estatística chinês fornecia a quem o consultasse toda a espécie de indicadores económicos e sociais. Com Xi, a lista foi sendo reduzida pouco a pouco. Os analistas ocidentais desconfiam hoje do rigor dos números, sobretudo do crescimento do PIB. O valor desse crescimento para o terceiro trimestre deste ano deveria ter sido divulgado na sexta-feira. Não foi. Conhecemo-lo apenas ontem. Ficou abaixo das previsões: 3,9%. A explicação está na pandemia e na política de "covid zero", mas está também no colapso do sector da construção civil. Xi quer controlar tudo, até as estatísticas. E quer, ao mesmo tempo, ultrapassar a economia americana. Os dois objectivos podem revelar-se contraditórios.
Ruchir Sharma, presidente da Rokefeller International, escrevia ontem no Financial Times que só com muita sorte a economia chinesa pode chegar à dimensão da americana em 2060. Por curiosidade, a Califórnia está prestes roubar à Alemanha o lugar de quarta economia do mundo. As democracias, com a liberdade de iniciativa de cada um, foram, são e vão continuar a ser o ambiente ideal para a inovação e o crescimento económico. Deng percebeu isso em 1979. Com os resultados que conhecemos, mesmo que à custa de uma desigualdade gritante. Há mais milionários em Pequim do que em Nova Iorque. Xi pensa que é o poder militar e o controlo absoluto da sociedade que vão permitir à China pôr fim à hegemonia americana. É, no mínimo, uma aposta arriscada.»
Teresa de Sousa
Excerto da Newsletter do Público, 25.10.2022
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