4.10.25

Venham mais portas

 


Porta de entrada Arte Nova, Amsterdão, 1901-1902.
Arquitecto: L. Kok Jr.


Daqui.

Pescar em Gaza

 


Enquanto os navios israelitas estavam ocupados a deter os elementos da Flotilha, os palstinos puderam pescar, o que é proibido há muito tempo.

Carlos Moedas igual a si próprio

 


04.10.2009 - O dia em que Mercedes Sosa morreu

 


Mercedes Sosa nasceu no Noroeste da Argentina, em San Miguel de Tucumán, cidade onde em 1816 foi declarada a independência do país.

Quando a Junta Militar de Jorge Videla subiu ao poder e se foi tornando cada vez mais agressiva, Mercedes, considerada peronista de esquerda, foi detida durante um concerto em La Plata, em 1979, refugiou-se depois em Paris e em Madrid e só regressou a Buenos Aires, e ao magnífico Teatro Colón, em 1982.








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Uma coisa é ser conservador, outra é ser da extrema-direita

 


«O uso da classificação de “conservador” é nos dias de hoje, na maioria dos casos, abusiva. Ela foi usada para caracterizar o activista Charles Kirk, que morreu assassinado, repetindo uma classificação usada nos EUA, mas ocultando que também nos EUA muitos órgãos de comunicação o classificaram de extrema-direita. As ideias de Kirk — defesa das armas, racismo contra os negros, que seriam melhores no tempo da agressiva supremacia branca nos estados do Sul, afirmação da inferioridade de inteligência das mulheres negras, ataque aos “trans”, submissão das mulheres aos homens no quadro da “família”, e por fim, o elemento mais moralmente impiedoso, o combate à empatia, aquilo que o une a Musk e a Trump numa visão cruel do Estado e da sociedade. Nada disto é conservador.

Essa classificação de “conservador”, pouco comum na actual política portuguesa, entrou por imitação das notícias sobre Kirk. O ADN, o partido dos bebés de plástico, colocou uma faixa a falar dos “valores conservadores”, e não tenho dúvidas de que a designação se vai tornar mais habitual, até porque é mais “simpática”. Mas, como muita coisa que por aí circula, é falsa — a classificação de extrema-direita é mais rigorosa, embora tenda a esconder o que é novo nessa zona política, mas não vale a pena perder muito espaço com isto. Mesmo que se diga verdadeira, com grandes teorizações citando Burke, não é — a não ser que se substitua a recusa da Revolução Francesa pela recusa do 25 de Abril. Conservadores é que não são.

Para simplificar, consideremos questões de estilo e de conteúdo em que a diferença é abissal. Há no conservadorismo um módico de costumes, uma recusa da má educação, dos insultos nas redes sociais, das caretas e gestos dos deputados do Chega no Parlamento. Os conservadores podem ter muitos defeitos, uma certa atracção pelo snobismo, hipocrisia, muita pose, e muitas vezes o atravessar da fronteira entre o conservadorismo e o reaccionarismo. Mas o pensamento conservador, a linguagem, a postura, são completamente distintos desta boçalidade e do programa que ela transporta, de violência explícita, e de uma certa forma, na sua intenção revolucionária, de profunda perturbação social.

Basta comparar um genuíno conservador como João Carlos Espada com a turma vociferante dos comentadores e influencers próximos do Chega ou da ala mais à direita do PSD, exaltados aos berros, ou enunciando platitudes que atribuem ao “povo” que está fora da “bolha”, com o seu anti-intelectualismo e ignorância agressiva, o uso sistemático da mentira e do exagero como discursos principais.

Quanto ao conteúdo, usando a trilogia clássica de Deus, Pátria e Família — apesar de ela própria ter deixado também, há muito na Europa, de personificar o pensamento conservador —, percebe-se a distância da extrema-direita impulsionada pelo populismo dessa trilogia.

Os nossos homens e mulheres de extrema-direita pouco têm a ver com Deus se o personificarmos na Igreja Católica, onde a maioria se proclama crente e é, no limite, religiosa não praticante. Mas, em dois aspectos, estão do lado oposto: na doutrina social da Igreja e no ataque à empatia, que sem minudências teológicas é o cerne da ideia de “caridade”. E por estranho que possa parecer, no seu ataque a outra das grandes religiões monoteístas, o Islão, que é também bem pouco “católico”.

Aliás, uma das coisas que afastavam o ditador conservador que era Salazar do nazismo (como, aliás, Pétain e o ditador católico Dolfuss da Áustria) era o paganismo dos nazis, o culto da violência rácica presente na negação do “outro”, base do racismo e do discurso contra os imigrantes. E se a Igreja cometeu muitas violências no passado, a Igreja de hoje em sociedades como as europeias é uma força de moderação e uma reserva de “empatia” para os mais fracos, como são os pobres e os perseguidos, sejam portugueses de lei ou imigrantes ao lado da lei.

Quanto à Pátria, uma coisa é ser patriota, outra ser nacionalista e xenófobo. A história portuguesa não tem H grande como todas as histórias de qualquer país. Substituir o patriotismo fundado no que fomos e no que somos por uma espécie de fanfarronice não nos engrandece, antes nos diminui. Aceitar a história como ela foi, com os momentos de violência da reconquista, do colonialismo, da escravatura, das lutas liberais, da guerra colonial, e com os momentos de redenção como o 25 de Abril, pode ser um factor de moderação. Como será para qualquer genuíno conservador ver a Pátria com o olhar dos portugueses da Peregrinação, da História Trágico Marítima, d'Os Lusíadas, de Herculano, Camilo, de Eça, mas também olhar com humildade para a Valise de Carton de Linda de Suza, ou o Oliveira da Figueira de Hergé e nos perceba, compreenda como nos percebem, para depois perceber os “outros”.

Quanto à Família, esse “valor conservador”, então é que não tem de todo qualquer sentido. São homens e mulheres do nosso tempo, com casamentos e divórcios, uniões de facto, promiscuidade, amantes, sexo, aborto, e só a hipocrisia “familiar” deles justifica que fale disto, porque entendo que cada um vive como entende, mas não é a extrema-direita que vem para cá dar lições de moral. As mulheres abortam, os maridos e namorados pagam os abortos. Só que, de novo, são apanhados pela sua hipocrisia. Uma é a violência doméstica, ou a pedofilia, que não tem nenhum papel no discurso da extrema-direita, e percebe-se porquê, até porque defender a castração química dos seus militantes é um pouco embaraçoso. Outra é que muito do machismo masculino oculta a sua homossexualidade, praticada ou latente.

Por isso, nem Deus, nem a Pátria, nem a Família.

Hoje há muito poucos conservadores e muita gente da direita radical e da extrema-direita. E chamar-lhes conservadores é dar-lhes uma caução de moderação que não só não têm como é um dos seus alvos principais.»


3.10.25

Um vaso «suave»

 


Vaso "Série Rubis", camafeu gravado com ácido e decorado com flores de amendoeira. Cerca de 1900.
François-Théodore Legras.


Lei da imigração?

 


A solidariedade não tem partido

 


«É muito triste ler os comentários nas redes sociais sobre a flotilha humanitária que pretendia chegar à Faixa de Gaza. Como também é desolador que se tente reduzir esta ação a uma questão de Esquerda e de Direita. Não devia ser. Não é.

A solidariedade não tem partido. Não tem fronteiras ideológicas. O que está em causa não é um debate político ou académico. O que importa é a vida. A vida de pessoas reais. De famílias, de crianças, de idosos, que todos os dias olham para a morte de frente.

Minimiza-se também a ajuda transportada pela flotilha. Uns afirmam que é pouca. Outros argumentam que os organizadores da viagem podiam ter escolhido outra via para fazer chegar a ajuda humanitária. Mas esses analistas, comentadores, políticos esquecem que, para quem está em Gaza, até o mínimo dos mínimos tem um valor imensurável. "Juro por Deus, eu aceitaria a morte se isso significasse poder levar um único pacote de farinha para os meus filhos, para que eles pudessem comer", diz um homem de Gaza, citado pelo serviço de notícias em árabe da BBC.»

Continuar a ler AQUI.

Flotilha: ainda há um navio a navegar

 


«O navio "Marinette", último da Flotilha Global Sumud, prossegue viagem rumo à Faixa de Gaza esta sexta-feira, apesar da interceção de 41 embarcações e da detenção de mais de 400 ativistas pró-palestinianos pelas forças navais israelitas.»

Luís Møntenegrø, primeiro-ministro da Dinamarca

 


«Mal se soube que o Governo ia dar incentivos fiscais a quem arrendasse casas a preços moderados, a medida recolheu bastantes elogios. Quando, no dia seguinte, se descobriu que o conceito de renda moderada ia até 2300 euros, o entusiasmo esmoreceu um pouco. Segundo os críticos, num país em que o salário médio ronda os 1400 euros, não se pode chamar moderada a uma renda de 2300 euros. Mas suponhamos que os dois elementos de um casal ganham, cada um, 1400 euros. Juntos, auferem 2800 euros. Podem perfeitamente pagar os 2300 euros de renda e ainda ficam com 500 euros para as outras despesas mensais. Assim já se percebe melhor porque é que se chama renda moderada. Porque o casal em causa terá de ser moderado. Moderado na alimentação, moderado nos transportes, moderado nas despesas com a educação dos filhos.

Uma pergunta impertinente repetida muitas vezes foi: onde? 
Onde é que uma renda de 2300 euros é moderada? A resposta é evidente: na Dinamarca. É frequente ouvirmos suspirar que em países como a Dinamarca se vive melhor. Pois bem, Luís Montenegro já se comporta como se fosse o primeiro-ministro dinamarquês. Agora só falta o povo acompanhar este esforço. Se temos mesmo vontade de viver como os dinamarqueses, há que começar por algum lado. O custo da habitação é um aspecto tão bom para começar como qualquer outro. A objecção do costume é: sim, mas nós não temos os salários da Dinamarca. Calma. Uma coisa de cada vez. A minha tia não tinha pássaros no jardim. Instalou uma casinha para pássaros e de repente passou a ter. O método do Governo é igual: primeiro, faz-se uma casa para pessoas que têm salários ao nível da Dinamarca. E depois essas pessoas acabarão por aparecer.

Aliás, é possível que já estejam a aparecer. O ministro da Habitação disse que as rendas de 2300 euros são moderadas para agregados familiares cujo rendimento seja de 5 mil euros líquidos — ou seja, para casais em que cada cônjuge ganhe mais de 2500 euros por mês. De acordo com um estudo recente, os trabalhadores que ganham 3 mil euros por mês ou mais correspondem a 2% da população. Significa isto que o Governo é alvo da habitual injustiça conhecida por “preso por ter cão e preso por não ter”: se não se preocupa com as minorias, é insensível; se toma medidas que beneficiam 2% da população, também é criticado. Enfim. Pela minha parte, em sinal de apoio a esta medida vou abrir uma garrafa de champanhe que adquiri a preço moderado. Na loja havia champanhe caríssimo. O que eu comprei é apenas bastante caro. Sou pela moderação.»


2.10.25

O "sucesso" de Rita Matias

 


02.10.1968 – México: «Não queremos olimpíadas, queremos revolução»

 


No dia 2 de Outubro de 1968, na Plaza de las Tres Culturas (Tlatelolco), ao Norte da cidade do México, terminou um movimento dos estudantes mexicanos que durou 146 dias. Aproveitando a realização dos Jogos Olímpicos na capital do país, tinham procurado chamar a atenção do mundo para a corrupção do poder e o autoritarismo do Partido Revolucionário Institucional, no poder durante mais de setenta anos. «Não queremos olimpíadas, queremos revolução», gritava-se entre muitos outros slogans.

Acabou por ser o único movimento estudantil da época que terminou com uma matança brutal. Ainda hoje não se sabe exactamente o número de mortos que varia entre os 44 «documentados» e os mais de 300 reivindicados pelas famílias. E os responsáveis continuam impunes.




Dez dias depois começaram os Jogos Olímpicos que viriam a ficar na História pelo célebre Black Power Salute.


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Os estrategas do cinismo

 


«As televisões estão cheias de estrategas do cinismo. Compreendem quem se indigna com o que se passa em Gaza, mas acham que é preciso “prudência” (adoram esta palavra). Referem o direito internacional, mas concluem que quem manda, pode mesmo. Acham que tudo é “complexo” (também adoram esta), mas têm muito pouca consideração pelos sinuosos trajetos da história.

Num passado muito recente, os estrategas do cinismo contestavam a utilização do termo "genocídio", porque uma coisa é dizimar um povo e outra é *querer* dizimar um povo. Ontem ouvimo-los de novo: "a flotilha não é humanitária porque não vai resolver o problema da fome em Gaza", disse o cínico moderado. "Tudo aquilo é simbólico", determinou o cínico literal. "Pior: é um frete ao Hamas!", vociferou o cínico radical. "Ou uma estratégia para arranjar um emprego futuro", escreveu o cínico empreendedor. "É preciso não ver o mundo a preto e branco e contemplar toda a sua intrigante palete de cinzentos", afirmou o cínico ponderado.

Ontem de manhã, Luís Montenegro vestiu a pele de cínico retórico. Temendo que a palavra “missão” lhe queimasse o sorriso sibilino, falou de uma – breve pausa dramática – “intervenção”, de uma – outra micro-pausa dramática – “iniciativa”. À noite, o ministro Rangel assumiu a pose do cínico dissimulado: foi às televisões dizer que os serviços consultares estão a seguir o assunto com proximidade, polemizou com Mariana Mortágua, falou da democracia em Israel e afirmou que a flotilha “optou” por chegar na véspera do feriado religioso do Yom Kippur. Só lhe faltou mesmo dizer que os atrasos a que a flotilha foi sujeita, com ataques de drones e avarias várias, foram autoinfligidos e que toda a operação não passa, no fundo, de uma disfarçada ação antissemita.

Na Grécia Antiga, os velhos cínicos desprezavam a opinião pública, as convenções e o poder. O mundo dá voltas e as palavras mudam de significado. Hoje, os estrategas do cinismo são os apóstolos do poder realmente existente e a voz gourmetizada de muito do que se escreve nas redes sociais. Se agora o vemos melhor, devemo-lo também à ação corajosa de quem integra a flotilha humanitária. Gente que combate a resignação e a hipocrisia e que merece, por isso, toda a nossa mobilização para exigirmos a sua libertação imediata e todo o nosso empenho - mesmo em pequeníssima escala - para que se pare o genocídio e se ajude a concretizar o velho sonho de uma Palestina livre.»

Miguel Cardina no Facebook

José Cardoso Pires – Chegaria hoje aos 100!

 


A “venturização” do espírito de Montenegro

 


«As circunstâncias políticas mudaram depois das legislativas. Não tanto porque o PSD tenha tido o crescimento eleitoral que ambicionava (muito por força do travão Spinumviva), mas porque a maioria de direita se tornou incontornável. Mesmo com um resultado curto, hoje, sozinho, o PSD tem mais deputados do que o conjunto da esquerda. Com esta libertação do PSD, só mesmo uma combinação excêntrica de ingenuidade temperamental com otimismo antropológico poderia levar a acreditar num espaço de compromisso ao centro, em torno de soluções moderadas.

Vivemos irremediavelmente num outro tempo, como ficou demonstrado pela encenação em público de uma divergência inultrapassável entre Governo e Chega a propósito da revisão da Lei dos Estrangeiros. Na hora da verdade, confirmou-se que o parceiro preferencial do Governo é um. Bem pode o PS oferecer-se para dançar o tango: ficará sempre posto de lado, a assistir à dança a dois entre Montenegro e Ventura.

O risco sistémico associado a esta nova dupla é sério. Por um lado, corresponde a uma rota de afastamento de um chão comum baseado no humanismo que provocará réplicas, precisamente onde isso não deveria acontecer: nas matérias societais e de direitos fundamentais. Por outro, traduz-se numa degradação do espaço público. Sempre que se negoceia com o Chega avança-se na normalização do comportamento grotesco dos seus deputados, alimentando uma onda de vulgaridade e tolerando a indecência como modo de atuação política. Reparem como Montenegro já fala de “bandalheira” a propósito de imigração, no que é um reflexo de um movimento indomável de “venturização” dos espíritos e comprova a escolha de um parceiro preferencial.

Esta nova realidade obriga a repensar o posicionamento estratégico da esquerda, em particular do PS. Sempre que o Chega cresce nas sondagens, gerando radicalização e polarização, e o PSD vai atrás dos cantos de sereia do populismo, iludido que é assim que ele é contido, aumenta a necessidade de uma resposta firme que assuma com coragem um espaço de demarcação.

Por paradoxal que possa parecer, as políticas de imigração são um território onde é possível uma afirmação distintiva, assente em princípios dignos e na razoabilidade económica. Tem custos? Tem, mas corresponderá a uma posição corajosa, com retorno político no médio prazo. Já ficar numa terra de ninguém acabará sempre em capitulação.

Um recuo da imigração é uma ameaça ao crescimento da nossa economia, coloca em risco, por exemplo, uma política de habitação assente no aumento da oferta (onde está a mão de obra disponível para a construção civil?), e ameaça a sustentabilidade do nosso Estado social (os imigrantes são contribuintes líquidos para a segurança social e os serviços sociais, seja na saúde, seja na resposta na velhice ou na primeira infância dependem, em importante medida, do trabalho de imigrantes).

A imigração encerra tensões e dilemas? Claro que sim, mas tem de existir uma perspetiva diferente para lidar com o tema: que centre o esforço na criação de condições para a integração, que se preocupe com a expansão das respostas sociais para acomodar fluxos que são necessários e que não veja no trabalho imigrante um mecanismo de dumping social ou uma forma de potenciar setores económicos marcados pela precariedade e pela baixíssima produtividade. Até porque persiste uma maioria que repudia o flirt permanente entre PSD e Chega, animado por uns arrufos pensados para distrair os incautos.»


Flotilha: Protesto pelas detenções

 


1.10.25

Flotilha: Solidariedade

 


… nas próximas horas, e nos próximos dias, com todos estes activistas que arriscam a vida por um mundo melhor.

Lá se vai o Nobel para Trump?

 


Daqui.

Sete anos sem Charles Aznavour

 


Nada de menos inesperado do que foi receber a notícia de que tinha morrido alguém com 94 anos. Mas, sem saber exactamente porquê, há muito que mantinha uma enorme cumplicidade com Aznavour, reforçada, e muito, desde que visitei, há dez anos, a sua querida Arménia.

Nasceu e morreu em Paris, francês mas de origem arménia e terá sempre a «nacionalidade» dos seus pais emigrantes. É um ícone nacional, não só pelo seu êxito como cantor, mas também e talvez sobretudo, pela sua acção após o terramoto de 1988. Em 7 de Dezembro de 1988, às 11:41, a terra tremeu, causando dezenas de milhares de mortos e centenas de milhares de sem abrigo. Aznavour percorreu o país pouco depois, criou uma Fundação específica para o efeito, que reuniu mais de 150 milhões de dólares, tem estátuas (vi uma em Gyumri, a cidade mais arrasada em 1988 e onde a temperatura chega a atingir 45º negativos) e o governo doou-lhe uma casa que avistei em Yerevan, onde funciona a referida Fundação. Os arménios não esquecem.

Ficam aqui dois vídeos relacionados com a Arménia e «La Bohème», a canção preferida por Aznavour, como repetiu dois dias antes de morrer:






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Mariana Mortágua, hoje

 


Lisboa, PCP e as tendências suicidas da esquerda

 


«Estarão espantados os militantes do PCP, habituados a queixarem-se do tratamento mediático, ao ver os comentadores de direita a derreterem-se com João Ferreira. Sem desmerecer as qualidades técnicas e oratórias do candidato comunista a quase tudo (se não as tivesse, não o seria, e os 12 anos como vereador também ajudam), devem desconfiar. Quando a direita convida um comunista para o brunch é mau sinal.

Não quer dizer que não respeitem João Ferreira, como respeitavam outros comunistas, a começar por Álvaro Cunhal. Quer dizer que resolveram ignorar o ódio, porque mais altos valores se levantam. Percebem que João Ferreira é a possibilidade que sobra para dispersar o cansaço com a incompetência de Carlos Moedas, prolongando-a. Nada mais do que isto.

Tendo divergido fortemente da posição do PCP quanto à guerra da Ucrânia, defendi-o quando esta mesma direita, que agora o elogia, quis transformá-lo em pária político, alimentando paralelos absurdos com a extrema-direita e apelando a boicotes à Festa do Avante. Mas não posso deixar de sublinhar a sua irresponsabilidade, não percebendo a importância quase refundadora que estas eleições têm para Lisboa e, por razões mais profundas, para o País.

Nunca fui sensível ao apelo do voto útil, apesar de, em autárquicas, ser difícil de contrariar. Não há geringonças possíveis. The winner takes it all. Quem fica em primeiro governa. E é por isso que também defendo alianças quando são possíveis. O que não faz muito sentido é achar que João Ferreira dá um excelente vereador sem pasta, na oposição, em vez de um vereador com pasta, numa autarquia de esquerda.

Assim sendo, a pergunta que sobra é: porque se pôs o PCP de fora da coligação de toda a esquerda, para a qual foi insistentemente convidado, podendo participar na construção programática como a segunda força à esquerda nesta lista? Ferreira dá um argumento que poderia ser compreensível – o PS viabilizou os orçamentos de Moedas, que o próprio PCP ajudará a eternizar no poder –, não fosse o historial dos comunistas pelo país fora ao longo dos anos.

Não foi com o PS que os comunistas tiveram mais entendimentos, que foram muitíssimo mais longe do que viabilizar orçamentos para impedir, mal ou bem, a vitimização. Os mais comuns foram com o PSD, naquilo que ficou conhecido como “vodka com laranja”, em várias autarquias do país governadas pelo PSD ou pela CDU ao longo dos anos. Havia cumplicidade programática dos comunistas com Rui Rio, quando ele, com uma desgraçada política social de habitação e a destruição de toda a vida cultural da cidade, garantia um vereador com pelouro ao PCP?

De onde vem este súbito purismo? Não veio de lado algum, porque a decisão de recusar entrar na coligação nada tem a ver com Lisboa. Ou alguém acha que Alexandra Leitão, sem ligação ao mandato de Medina ou à oposição que se fez a Moedas, e seguramente uma das pessoas à esquerda no PS, seria difícil de aceitar pelos comunistas? Se o PCP não consegue entender-se com Alexandra Leitão, aliada ao BE e ao Livre, não consegue entender-se com ninguém. Quem governou com Rio terá dificuldade em explicar porque motivo não se entende com Leitão. Quem se coligou com João Soares, num entendimento que já tinha estagnado em todos os seus propósitos programáticos, também.

Se o problema fosse Lisboa, não se repetia em mais de 300 concelhos. Tirando o Chega, com quem ninguém quer coligações, o PCP é o único partido parlamentar que não faz qualquer aliança (exceto com o PEV, que daria para outro texto). E recusou-a, para além de Lisboa, em dois casos extremos: em Albufeira, onde toda a esquerda junta poderia tentar evitar a vitória do Chega, e em Loures, onde BE, Livre e PAN estavam disponíveis para uma coligação liderada pelos comunistas contra Ricardo Leão, do PS. Nem liderando aceitam. Em lado algum. Nenhuma. Zero.

Por uma razão, que nada tem a ver com orçamentos da Câmara Municipal de Lisboa (os argumentos surgem, em cada um dos lugares, a posteriori): porque a lição que os comunistas tiraram da “geringonça” é que os entendimentos matam. E preferem que o país vire radicalmente à direita, quando esta já tem um presidente, duas regiões autónomas, as duas principais cidades e dois terços dos deputados, a correrem riscos.

Nada me move contra o PCP. Hoje, vivo dividido entre dois concelhos (Lisboa e Montemor-o-Novo), e fui a um dos lançamentos da candidatura da CDU, no concelho alentejano, por achar que Carlos Pinto de Sá é uma boa alternativa ao atual executivo do PS. E nada tenho contra divergências na bipolarização. Apoiei Miguel Portas quando achei que estava no tempo de mudar a cidade e João Soares representava o acomodamento de mais de uma década que já pouco tinha do projeto de Jorge Sampaio. Numa altura em que o país era dominado pela esquerda, com Guterres como primeiro-ministro e Sampaio Presidente. Em política, os contextos são quase tudo.

Vivemos um tempo histórico bem diferente. Dramaticamente diferente. Lisboa está a expulsar o povo do condomínio em que se tornou e esta será a última oportunidade de travar o êxodo forçado. A capital tem o pior presidente da Câmara da sua história democrática (o que os comunistas relativizam, tentando a absurda equiparação com Leitão) e só a dispersão de votos pode mantê-lo no poder. E vivemos num país onde a esquerda pode evaporar-se, desequilibrando perigosamente todo tabuleiro político.

Não preciso de recordar o “melão” com que muitos eleitores de Lisboa acordaram no dia seguinte às últimas eleições autárquicas, quando descobriram que, mesmo em maioria, entregaram a câmara a alguém que tem o currículo de incompetência, mentira e apropriação de obra alheia que a última edição da Sábado tão bem retratou. Olhando para as sondagens, as tendências suicidas da esquerda são, neste contexto, muito perturbadoras.»


30.9.25

Conchas

 


Uma concha extraordinária esculpida em dez anos de trabalho: 1873 -1883.
Giovanni Sabbate.

Daqui.

Lei dos Estrangeiros

 


Segurança da flotilha de Gaza

 


«A Flotilha Global Sumud está na sua etapa final em direção à Faixa de Gaza para desafiar o bloqueio israelita ao enclave palestiniano e entregar alimentos e medicamentos, e planeia entrar numa “zona de alto risco” no Mediterrâneo Oriental nos próximos dois dias.»

Ler informação detalhada AQUI.

30.09.1935 – Porgy & Bess

 


Porgy & Bess estreou-se na Broadway, em Nova Iorque, há 90 anos, com um elenco formado unicamente por elementos afro-americanos – uma decisão mais do que ousada para a época, que retardou o seu êxito até 1976. 

«Summertime» é certamente o trecho mais conhecido da ópera, mas há muitos mais. 








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Cantigas de escárnio mal ditas

 



«No nosso Parlamento, há agora deputados que confundem a tribuna com um cruzamento mal frequentado. Um atira beijos a Isabel Moreira, directamente da Mesa. Outros preferem adjectivos baratos — “asquerosa”, “nulidade intelectual”, “miséria humana” —, ou dizer “boa noite” ao cumprimentar uma deputada negra pela manhã. E há ainda um deputado do Chega que descobriu uma nova forma de eloquência: o mugido.

É verdade que a política sempre conviveu com a sátira. E que, quando bem feita, merece memória. Cunha Simões olhou para um deputado da UDP e disse-lhe que a sua cabeça era tão grande, tão grande, tão grande que caberia lá dentro um esquadrão de cavalaria sem tropeçar numa única ideia. O plenário explodiu em gargalhadas, o presidente implorou contenção, a frase ficou escrita e, meio século depois, foi recuperada por Francisco Rodrigues dos Santos para fustigar André Ventura.

Eis a diferença. A sátira diverte até quem fere. A boçalidade é, talvez, a única arma que só dispara para trás. A sátira tem engenho, transforma a ofensa em arte, obriga até o alvo a rir-se da sua própria caricatura. A boçalidade, pelo contrário, é um peso morto. Não eleva, não convence, não arranca riso, e devolve ao orador a imagem da sua indigência de espírito.

E, no entanto, o que temos hoje é um Parlamento onde se colecionam insultos banais com a solenidade de quem julga estar a escrever epopeias. André Ventura justifica-se pelos seus deputados, diz que este estilo é apenas um espelho da “fúria dos portugueses contra o sistema”. Mas confundir um mugido parlamentar com a voz de um povo é talvez o insulto mais rasteiro que se pode fazer a esse mesmo povo. Porque um povo pode rugir, pode clamar, pode até blasfemar. O que não faz é mugir.

Convém recordar: o Parlamento existe por causa da palavra. É a palavra que distingue o debate do ruído. É a palavra que transforma adversários em interlocutores. É a palavra que separa a democracia da algazarra de feira. Sempre que a palavra cede ao insulto puro, o Parlamento abdica de si mesmo. Não é grave apenas por ser grosseiro. É grave porque renuncia ao diálogo. E quando não há diálogo, sobra apenas o choque estéril, repetitivo, vazio.

E aborrecido.

O que alguns deputados ainda não perceberam é que o talento parlamentar mede-se aqui: na capacidade de usar a palavra para abrir caminho. Na capacidade de dizer algo que obriga o outro a rir-se da sua própria posição e, nesse riso, a reconsiderar. É esse o sentido do Parlamento. É esse o sentido da política.

O que fica dito em plenário não morre no minuto seguinte: fica escrito. Fica em ata, fica em registo, fica como memória de uma geração. É por isso que o insulto inteligente ganha posteridade e o insulto pobre não resiste ao dia seguinte. O Parlamento é também isto. É um espelho do país. Quando a linguagem é banal, é a própria memória da democracia que se empobrece.

E eis o perigo maior. O tédio. Uma democracia pode sobreviver a polémicas, pode até crescer com elas. Ao que não resiste é à mediocridade repetida. É que não é só a grosseria que indigna. É a falta de talento. Porque até a insolência, quando é pobre, se torna aborrecida. E a política portuguesa arrisca-se a descobrir a pior das verdades: uma democracia não morre de escândalos.

Morre de falta de espírito.»


Israel na Eurovisão?

 


29.9.25

Chega: sexo, mentiras e Deus

 


ESTE TEXTO de Paulo Pena está «aberto» e merece leitura muito atenta.

Isabel Moreira

 


O algoritmo não vota, mas decide

 


«Sobre algoritmos que podem manipular eleições, calados. Sobre empregos que a automação ameaça, silêncio. Sobre literacia digital, nada.

Estamos em campanha eleitoral, na verdade em duas (autárquicas e presidenciais) que se atropelam no tempo, mas também nas promessas e nas declarações de intenções. É certo que não há nenhuma dúvida sobre os assuntos que mais importam aos portugueses: habitação, saúde, educação, salários e impostos. No entanto, é necessário colocar a inteligência artificial na ordem do dia. Necessário porque impacta, e de forma substancial, em praticamente todos os temas. Não chegam chavões sobre inovação e modernização. É preciso começar a agir no sentido de proteger os direitos digitais dos cidadãos. No fundo, proteger a democracia.»

Continuar a ler AQUI.

Samora Machel

 


Seriam 92, hoje.

O Chega já conseguiu “implodir o sistema”: o Parlamento é uma bandalheira

 


«Vinham para fazer “implodir” o sistema e estão a ser muito bem-sucedidos. A bancada do Chega tornou o Parlamento numa tasca mal frequentada, onde as mulheres deputadas são intimidadas e insultadas e isto não começou com o “beijo”. Tabernas em que a frequência era maioritariamente de javardos sempre existiram – naqueles lugares, muitas mulheres evitavam entrar sob pena de serem alvo de assédio ou insultos. Hoje, a Assembleia da República funciona no mesmo comprimento de onda.

O caso do “beijo” que o vice-presidente da Assembleia da República Filipe Melo enviou à deputada Isabel Moreira é apenas mais um episódio na degradação do Parlamento que tem vindo a ser levada a cabo pela força de direita populista, perante uma grande inércia da mesa da Assembleia da República e dos outros grupos parlamentares. O não saber lidar com a bandalheira torna a bandalheira aceitável.

Em última análise, está em causa o regular funcionamento das instituições da República. A passividade perante esta implosão dos órgãos de soberania – ou o encolher de ombros – está a pôr em causa a democracia.

Defender que não se pode fazer nada e que se é obrigado a aceitar a intimidação de pessoas com tendência para actividades javardas (no fundo, a forma como todos reagimos quando entramos em tabernas mal frequentadas) não funciona. Das tabernas, todos nós saímos com facilidade. Abandonar o Parlamento por via do assédio do Chega é colocar o problema numa outra dimensão.

À cena degradante do “beijo” do vice-presidente, José Pedro Aguiar Branco respondeu de forma dura, depois de ter visionado as imagens. Vamos ver o que se segue. Até aqui, a condescendência tinha sido a palavra de ordem. Os deputados do Chega têm tido imenso sucesso no seu objectivo de destruição das instituições da República, só porque ninguém sabe qual é a melhor maneira de lidar com eles. O que acontece no Parlamento é uma espécie de paralisia, à semelhança do que se está a passar com o Partido Democrata nos Estados Unidos da América.

A degenerescência do Parlamento às mãos do Chega já foi muitas vezes documentada. O assédio a Isabel Moreira tem sido contínuo. Em Maio de 2024, a deputada socialista denunciava a “ofensa e injúria permanente” dos deputados do Chega contra mulheres.

Dizia Isabel Moreira na altura: “Ouvi coisas como vaca, mugidos ou nomes que se chamam a deputadas assumidamente lésbicas”. Na altura, Isabel Moreira dizia que o assédio é muitas vezes feito “nos corredores” quando as deputadas “estão sozinhas e ninguém está a ouvir” e acusava os deputados do Chega de “dizerem coisas absolutamente insuportáveis”.

Todas as mulheres tendem a evitar locais onde possam ser sujeitas a este tipo de assédio – as tais tascas frequentadas por bêbados ou javardos. A Assembleia da República é hoje um lugar onde uma mulher não pode estar sem ser vítima de assédio. O assédio não é só protagonizado por homens. A deputada Rita Matias já chamou “senil” à deputada socialista Edite Estrela.

. Depois, há o racismo: a ex-deputada Romualda Fernandes, negra, foi atacada por parlamentares do Chega com alegadas graçolas.

Este Portugal bronco evidentemente existe. Foi convencionado que o cargo de Presidente da República, o segundo órgão de soberania que é a Assembleia da República, o Governo se iriam reger por regras de boa educação. De resto, existe até o protocolo de Estado. Provavelmente o protocolo de Estado já é um papel ultrapassado pelos acontecimentos.

“Rebentar com o sistema” também é isto: é tornar irrespirável o ambiente no Parlamento, com o fim de um dia acabar com ele. Encolher institucionalmente os ombros – a estratégia que vingou agora – é ser cúmplice da implosão.»


Flotilha vista pelo MNE espanhol

 


28.9.25

Cálices

 


Cálice "Pin Cones". Combinando ourivesaria e vidro, este objecto utiliza várias técnicas de artesanato do artista. Vidro de dupla camada, com uma base prateada. 1902.
René Lalique.

Daqui.

O PS na sua «retração»

 


«Estudo de especialista da GfK Metris mostra que partido enfrenta uma “retração eleitoral sem precedentes”. Em 122 concelhos, os socialistas estão sob alerta “elevado ou “crítico”.»


28.09.1974 - A «Maioria [que ficou mesmo] Silenciosa»

 


O país esteve agitado. Esperava-se a realização da chamada «Manifestação da Maioria Silenciosa» – uma iniciativa de apoio ao apelo do general Spínola, convocada alguns dias antes por cartazes que invadiram Lisboa.



Acabou por ser proibida pela Comissão Coordenadora do Programa do MFA. Antes disso, Spínola que tinha tentado, sem sucesso, reforçar os poderes da Junta de Salvação Nacional, emitiu um comunicado, pouco antes do meio-dia, a agradecer a intenção dos manifestantes, mas declarando que, naquele momento, a manifestação não seria «conveniente».

Os partidos políticos de esquerda (CARP M-L, CCRM-L, GAPS, LCI, LUAR, MDP/CDE, MES, PCP m-l, PCP, PRP-BR, URML), sindicatos e outras organizações tinham desencadeado, no próprio dia, uma gigantesca operação de «vigilância popular»: desde as primeiras horas da manhã, dezenas de grupos de militantes distribuíram panfletos e pararam e revistaram carros em todas as entradas de Lisboa.

Em 30 de Setembro, Spínola demitiu-se do cargo de presidente da República, sendo substituído pelo general Costa Gomes. Fechou-se assim o primeiro ciclo político do pós 25 de Abril.
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Uma criança poderosa

 


«Para exibir a inutilidade da ONU e exigir o Nobel da Paz, Donald Trump congratulou-se por ter acabado com sete guerras em sete meses, misturando escaramuças, conflitos de poucos dias, tensões que se mantêm e duas guerras inexistentes — entre a Sérvia e o Kosovo (um acordo de normalização económica sem qualquer sinal de confronto) e entre o Egito e a Etiópia (meras tensões diplomáticas por causa de uma barragem, que a última guerra foi no século XIX). De fora ficaram, claro, guerras reais, como na Ucrânia e em Gaza, que Trump jurara que acabaria num ápice, até amuar com os seus responsáveis por não lhe fazerem a vontade. Para o herdeiro mimado, o Nobel tem a mesma função de quase tudo o que faz: alimentar o seu ego inseguro. E para isso servem todas as cimeiras, negociações, visitas de Estado: evitar a birra do bebé grande que se transformou no homem mais poderoso do mundo.

Não sei se Trump tem consciência da mentira, se a acha irrelevante ou se a ignorância não lhe permite fazer esta distinção. Sei que, há não muitos anos, se um Presidente dos EUA inventasse, perante a Assembleia-Geral da ONU, ter posto fim a duas guerras inexistentes, e isso não resultasse de uma gafe, o tema seria a sua saúde mental. Foi com falhas menores que desconfiámos de Biden. Não é assim com Trump porque, tal como todos os que lhe copiam o estilo, os critérios para os líderes forjados por este tempo são diferentes. A mentira é detetada pela bolha que se informa pelos meios que usávamos no passado. Mas uma realidade paralela segue o seu caminho. Não é que haja mais ignorância, mas horas de scroll nas redes dão a ilusão do saber. E estamos só no início da distopia, ainda sem o impacto mais profundo do conforto da inteligência artificial capaz, que nos dispensa o pensamento crítico. O ser humano está, como um demente, a desligar-se da realidade. Porque deixámos de nos informar e comunicar através de meios de intermediação falíveis e parciais, mas escrutináveis, para o fazermos em plataformas falsamente horizontais, ilusoriamente neutras e, graças à sua opacidade, muito fáceis de manipular. A democracia está a morrer porque morreu qualquer ideia de verdade partilhada por uma comunidade. Nem a verdade científica, transformada em cabala de elites, sobrevive.

Sem uma verdade partilhada, um sentido de comunidade e mediadores que estruturem a nossa vida social não há ética que sobreviva. É por isso que, no meio de um genocídio, o risonho ministro das Finanças israelita pode dizer que tem, para uma Gaza em escombros, um projeto imobiliário que pagará o investimento na carnificina. Não é que ninguém se choque. Ainda sobra passado neste presente que anuncia o futuro. Mas a alienação em que vivemos permite que a vida continue sem um sobressalto tal que os Estados europeus sejam obrigados a mais do que umas declarações simbólicas. Não é que a amoralidade supremacista seja nova. A sua exibição desabrida é que era pouco habitual. Mas a verdade foi substituída por um subproduto: a boçalidade. Se a verdade passou a ser indiferente, ser hipócrita, cimento de uma civilização em que as pessoas não se agridem quotidianamente com a expressão sem filtro dos seus sentimentos, é o pior dos crimes. Perdemos o que nos faz adultos: distinguir a realidade da fantasia e manter regras so¬ciais de contenção para não tornar a convivência num inferno.

Esta infantilização coletiva, com o endeusamento amoral do sucesso individual, é uma das causas para a ascensão de egomaníacos como Trump. Sempre houve narcisistas em todo o lugar onde está o poder. Mas, neste tempo de redes e burburinho, o povo parece ter recuperado o fascínio por mentes perturbadas. Aquelas que as ditaduras unipessoais forjavam depois de décadas de poder sem escrutínio. Se nada é realmente mentira, nada é realmente errado. Como numa ditadura, o único imperativo que sobra é a vontade do ditador.

Sou dos que acreditam que vivemos o ocaso da democracia moderna, experiência curta na história da humanidade. Sem estruturas mediadoras que enquadrem a vida social com regras, com milionários tecnológicos mais ricos do que os Estados, concentrando uma riqueza e um poder nunca vistos, com um capitalismo global financeirizado, com a Ágora ateniense transformada em Coliseu romano, com a mercantilização de todas as necessidades humanas e sem qualquer noção de futuro, por sabermos da caminhada para o inferno climático, não sei se é possível travar a queda. Mas gostava que ainda fôssemos, como os brasileiros, à luta. Mesmo que seja inútil, a mais falhada das gerações (a minha) cumprirá um dever histórico para com os que pôs num mundo que destruiu a uma velocidade sem precedentes.»


2.300 euros?