1.7.23

Ponche

 


Taça para ponche, Arte Nova. Alemanha, cerca de 1900.

Daqui.
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Salgueiro Maia

 


Ainda lhe faltavam uns meses para chegar aos 30 no 25 de Abril. Faria hoje 79.

«Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados sociais, os corporativos e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos! De maneira que, quem quiser vir comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto. Quem for voluntário, sai e forma. Quem não quiser sair, fica aqui!»
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Voando sobre um ninho de juros

 

«Os gurus da macroeconomia garantem que não há outra forma de fazer abrandar a inflação e repor alguma estabilidade. Mas nenhum decisor consciente e responsável pode enfiar a carapuça de aluno obediente e ignorar os efeitos destrutivos desta política do BCE que está a enfraquecer as famílias e a catapultar os lucros astronómicos da Banca. A ditadura das previsões económicas está a fazer demasiadas vítimas.»

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No tempo em que as paredes falavam outra língua

 


«Esta fotografia faz parte de um conjunto de milhares de fotografias que chegaram ao Arquivo Ephemera em negativos, na sua maioria dos anos 1975 até à década de 80. Não foram tiradas por um fotógrafo profissional, mas por um jornalista da Margem Sul que as usou para o seu trabalho, mas acima de tudo motivado pelo seu interesse e curiosidade. Quase todas foram guardadas sem serem reveladas. O que lá está é o Portugal dos anos seguintes ao 25 de Abril, manifestações, comícios, reuniões políticas, cartazes, pichagens, dirigentes partidários, despejos, chegadas ao aeroporto de retornados, ocupações e desocupações, tropa na rua e polícias, espectáculos, artistas, bastidores, equipas e jogos de futebol, pavilhões de empresas, restaurantes, tudo.

No seu conjunto, são uma verdadeira cápsula do tempo, retratando muitos aspectos desses anos, em particular do PREC e da descolonização, olhando para as tensões políticas, mas também para o drama das pessoas apanhadas do lado errado da história, como é o caso dos retornados. À distância de quase cinco décadas, é, mesmo para quem viveu esses anos, um outro mundo.

Veja-se o retrato do mural, mais pichagem do que mural, do PPD que ilustra este artigo. Não há metadados, como agora se diz. Não sei onde ele se encontrava, provavelmente Lisboa, nem a data exacta, embora o uso da designação PPD aponte para os anos 1974-6, e o seu conteúdo, com apelo ao voto, ou para a eleição à Assembleia Constituinte em 1975 ou para as primeiras eleições legislativas de 1976. Presumo que é mais provável serem estas últimas.

O PPD, constituído de forma sui generis, não encaixando em nenhuma das tradições ideológicas dominantes na política europeia, nem nas respectivas internacionais, revelava-se como o maior partido criado depois do 25 de Abril. Era um partido novo, cuja estrutura fora feita de raiz, agrupando elementos da Ala Liberal, oposicionistas, membros da maçonaria e republicanos moderados, e muita gente que afluiu à vida política depois do 25 de Abril. Embora mais tarde e em certas organizações, como no Porto e no interior, houvesse alguma transumância de quadros da Acção Nacional Popular, como, aliás, aconteceu no PS, nesta altura as fichas de inscrição dos novos militantes eram cuidadosamente escrutinadas por uma espécie de “serviços secretos” do partido, que afastavam toda a gente que se verificava ter ligações com a ditadura.

Era, para usar o vocabulário actual, um partido “vencedor”. Ficara em segundo lugar em ambas as eleições de 1975-6, com votações à volta de um milhão e meio de eleitores, face aos dois milhões do PS, deixando muito para trás o PCP e o CDS. Estava no Governo, e preparava-se para empatar com o PS no número de concelhos ganhos nas próximas eleições autárquicas posteriores a este mural, 115 versus 115. Então aí a diferença com a FEPU (de que fazia parte o PCP) e o CDS era abissal.

Este mural foi feito por várias mãos e muito provavelmente não era “oficial” e é muito anterior ao recurso de agências de comunicação e outros “especialistas”. É, no verdadeiro sentido da palavra, espontâneo e ingénuo. Tem uma imagem principal, a de uma pomba (ou uma gaivota) transportando um ramo de oliveira, um misto da letra da canção de Paulo de Carvalho Somos livres, com a sua gaivota que “voava, voava” e do símbolo da paz, com origem num desenho de Picasso, e que fazia parte dos movimentos da paz pró-soviéticos. Há um segundo desenho mais pequeno com uma flor e dois corações unidos por uma seta, em que “eu” e o PPD estavam ligados por uma declaração de amor entre namorados. O símbolo do partido, as três setas, também lá estão e a palavra PPD é repetida nove vezes.

As inscrições são de vanglória, “o PPD vai ganhar”, há apelos ao voto, mas todas as outras são significativas. O voto no PPD era “contra a ditadura” e era um voto pela “liberdade”, e há quatro “vivas”: ao PPD, um muito apagado à JSD, ao “povo” e… à “social-democracia”. Há depois duas palavras, uma cortada e outra “infantil”, que não se percebem porque a fotografia não mostra o muro todo. Não é impossível, pelo tipo de algumas letras, que crianças tivessem participado na pichagem, mas também pode ser que o mural ocupe uma parede em que já havia outra inscrição. Não é muito importante.

Querem perceber o sentido completo da frase de L. P. Hartley sobre o “passado como país estrangeiro”? Aqui está.»

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França

 


Libération, 30.06.2023
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30.6.23

Pavilhões

 


Pavilhão Hanavsky. Praga, 1891. 
Arquitecto: Otto Hieser. 

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Prigozhin?

 


«Ninguém sabe o paradeiro de Prigozhin, mas de uma coisa é possível ter a certeza. É óbvio que, neste momento, reside num rés-do-chão. Quem se incompatibiliza com Putin costuma ter uma inclinação incontrolável para se debruçar de parapeitos e cair de janelas de prédios altos. Prigozhin tem experiência suficiente para saber que é mais saudável escolher um domicílio com janelas baixinhas. E sem escadas.»

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Nanterre 2023

 

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A troika voltou: o regresso do mantra "ai aguenta, aguenta"

 


«Há muito tempo que não apanhávamos com uma daquelas frases castigadoras dos tempos da troika, segundo as quais vivíamos "acima das nossas possibilidades" ou gastávamos tudo "em mulheres e álcool" e depois "pedíamos ajuda", nas imortais palavras do antigo presidente do Eurogrupo, o holandês Dijsselbloem.

Christine Lagarde, ao anunciar que não é para já que o BCE inverte a estúpida trajectória da subida de juros – que está a empobrecer todos aqueles que têm créditos à habitação, que são muitos portugueses, uma vez que a decisão económica mais racional para uma família não é, infelizmente, arrendar casa –, veio-nos recordar, para quem andava com eventual nostalgia da humilhação a que fomos submetidos em discursos do passado, que a Europa é o que é. Se às vezes parecia que tinha sido dado um passo à frente (como nas ajudas da covid-19 e o PRR), veio por estes dias a senhora Lagarde recordar que aos pobres compete morrer à fome e aos ricos, como ela e os seus pares, ditar regras absurdas para, acima de tudo, proteger o lucro das empresas. A frase em que Lagarde pede que não haja aumento de salários e apela ao fim do apoio dos governos às famílias é todo um tratado sobre a tirania europeia.

Estamos assim tão longe do tempo em que a aristocracia mandava e os servos da gleba obedeciam? Michael J. Sandel, no seu magnífico livro A Tirania do Mérito, demonstra como era razoavelmente menos humilhante ser governado por um aristocrata (era um acaso de nascença, como ter olhos azuis ou castanhos) do que ser governado por alegados "meritocratas" alcandorados a cargos de poder efectivo, que governam sem serem eleitos, não dão contas a ninguém e têm vencimentos astronómicos para "mandarem" os governos europeus desprotegerem as suas populações mais frágeis.

Sandel conclui que esta "tirania do mérito", assim como o desaparecimento dos partidos trabalhistas, é a mãe do crescimento da extrema-direita. A verdade é que (quase) toda a gente parece estar a dormir na forma.

Não é a primeira vez que António Costa critica a política de combate à inflação do BCE e esta quinta-feira voltou a fazê-lo.

"Não tem havido suficiente compreensão por parte do BCE da natureza específica do ciclo inflacionista que temos estado a viver. Hoje é mais ou menos claro que o aumento dos lucros extraordinários tem contribuído mais para a manutenção da inflação do que as subidas salariais e não compreender a natureza específica deste ciclo inflacionista limita muito a capacidade de o enfrentar, porque se não acertamos bem no diagnóstico a terapia raramente acerta". A frase de António Costa é dura, mas o poder dos primeiros-ministros e dos ministros das Finanças é bastante limitado.

Fernando Medina também conversou com a presidente do BCE a manifestar a sua discordância, o Presidente da República sugeriu que a presidente do BCE deveria ter mais cuidado nas suas intervenções, pelo alarme social que produzem e também o líder do PSD está contra o aumento dos juros do banco central.

São posições correctas mas o essencial mantém-se, com o BCE a preparar a nossa bancarrota moral. Quem julgava que em 2024 haveria algum alívio nesta trajectória alucinada de aumentos dos juros do BCE pode tirar o cavalinho da chuva. Os falcões europeus acalmaram-se com a crise da covid-19 mas voltaram rapidamente e em força. Ai aguenta, aguenta, como dizia o banqueiro Fernando Ulrich.»

Ana Sá Lopes
Newsletter do Público, 29.06.2023 (excerto)
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29.6.23

Entradas

 


Entrada na Casa Pratsjusà. Barcelona, 1892-1894.
Arquitecto: Antoni Serra Pujals.


Daqui.
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O que nós andámos para aqui chegar

 


Desde que ouvi ontem os impropérios de Madame Lagarde sobre juros, inflação, salários e afins, salta-me da memória a tirada de daquele senhor holandês de nome indizível que dizia que nós, os sulistas, só gastamos em copos e mulheres.

Não me parece que haja grandes diferenças entre os princípios que gerem os raciocínios da chiquérrima Christine e do tristonho Dijsselbloem.
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29.06. 2018 – José Manuel Tengarrinha

 


Já lá vão cinco anos.
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O racismo tornou-se visível porque os seus alvos se tornaram visíveis

 


«Sempre que um pequeno ou grande caso de racismo se torna notícia, como o do post da PSP anunciando candidaturas para o curso de oficiais de polícia, em que aparecia um cadete negro (há muitos outros com brancos), as pessoas bem formadas perguntam-se: o que se está a passar para se ver tanto ódio e preconceito? Rigorosamente nada. Os comentários que ainda consegui ler no Twitter, e ainda apanhei muitos deles, são os que leio quotidianamente nas redes sociais e, não tivesse tanto selvagem bloqueado, leria nas minhas. E nada disso é diferente do que ouvia em desabafos ou conversas corriqueiras nos cafés, autocarros e táxis antes das redes transformarem em letra que fica o que se perdia em conversas soltas e assim era mais fácil negar.

A única razão para isto ter sido notícia é ter-se dado o caso de o alvo ser um cadete de polícia, o que resultou num curto-circuito em que os racistas atacavam uma instituição que geralmente defendem cegamente, com ou sem razões para isso – a mesma polícia que aparece em inúmeros relatórios internacionais por péssimas razões e é hoje a instituição mais respeitada pelos portugueses. Seguindo a lógica de um dos comentários, um polícia tinha cor de bandido. Isto é o que um racista militante pensa e o que um racista automático sente sem sequer pensar.

A gravidade da chegada de André Ventura ao Parlamento não é ter reforçado um racismo bem entranhado na nossa sociedade, é tê-lo trazido à superfície, legitimando-o a partir de um lugar de poder. Ventura é um papagaio de sentimentos primários e, com ele, as pessoas perderam a vergonha de dizer no espaço público o que diziam no quotidiano semipúblico (e isso faz diferença). Uma das razões porque apreciam a figura é, aliás, porque as libertou deste constrangimento. Afinal, não pensavam nada de mal.

Também não é mentira que a extrema-direita cresça, entre muitas outras razões que não cabem aqui, como reação. As minorias começaram a levantar cabeça e já não aceitam o lugar subalterno onde eram "integradas". Os insultos ao cadete negro só aconteceram porque vai havendo mais negros na polícia e porque a PSP, depois de várias acusações de racismo, se sente constrangida a dar visibilidade a essa nova realidade, num anúncio.

As pessoas, muito para lá dos eleitores do Chega, só chamam "monhé" ao primeiro-ministro porque um descendente de indianos chegou à liderança do Governo. O racismo ganhou centralidade no debate público porque pessoas racializadas passaram a ter visibilidade em lugares onde se exerce alguma autoridade e não apenas nos espetáculos e no desporto, onde podiam ser admiradas e, já agora, insultadas. No futebol, os insultos não passarem a ser notícia por acontecerem, mas porque os visados começaram a dizer "basta”.

Este país é tão profundamente racista que bastou uma deputada negra dar mais nas vistas para um caudal nunca visto de insultos racistas a ter submergido. Bastou um ativista negro traduzir em público um sentimento muito forte nos bairros periféricos onde as minorias são tratadas como lixo pelas forças de segurança para uma petição com mais cem mil assinaturas exigir a deportação de um cidadão português e um juiz pôr-se do lado de um cadastrado para defender a sua honra perante o negro atrevido.

Vivemos décadas convencidos de que éramos menos racistas do que o resto dos europeus. Se isso fosse verdade seríamos um estranho fenómeno, já que fomos os últimos a descolonizar e dos últimos a ter qualquer debate livre e democrático sobre o tema. A invisibilidade pública do nosso racismo resultava da invisibilidade pública dos seus alvos. Resultava de mais racismo estrutural, não menos.

Sem vermos os escravizados das estufas de Odemira, da apanha das amêijoas de Alcochete ou do incêndio na Mouraria poderíamos também continuar a acreditar que recebemos muito bem os estrangeiros, lançamos pontes interculturais e tudo o mais que cabe nos discursos do “dia da raça”.

A nossa maior minoria cultural nacional representa menos de 1% população e isso chega para alimentar boa parte discurso de um partido com 10% nas sondagens. Imaginem se fôssemos realmente cosmopolitas e tivéssemos a diversidade de França, da Alemanha ou do Reino Unido.

Não somos um povo extraordinariamente tolerante subitamente invadido por modas europeias de ódio e racismo. Somos um povo que, através das redes sociais e da legitimação política do preconceito de sempre, se olha no espelho que herdou. Podemos continuar a fingir que nada vemos. Ou podemos enfrentar o passado e o presente. Não é para nos autoflagelarmos. É só para assumir o problema e tentar resolvê-lo.»

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28.6.23

Bules

 


Bule com trevos de porcelana e prata de lei, cerca de 1910.
Shreve & Co.

Daqui.
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Christine Lagarde?

 

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Linhas vermelhas? Não temos

 


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Agustina Bessa-Luís

 

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Um relatório internacional veio lembrar-nos de que o Chega é racista

 


«Foi divulgado esta terça-feira o novo relatório da Global Project Against Hate and Extremism (GPAHE), uma organização não-governamental norte-americana, sobre Portugal. O Chega foi identificado como um dos 13 grupos de ódio e de extrema-direita portugueses, a par de movimentos e organizações neonazis como os Proud Boys ou os Hammerskins.

Segundo o relatório, o partido “tem trabalhado para envenenar o discurso nacional com retórica racista, anti-LGBTQ+, anti-imigração e anticigana". Estou convicta de que os portugueses - os que não estão envenenados – não precisariam de que uma organização estrangeira viesse clarificar que é de cariz racista a retórica do Chega. Tão-pouco que é anti-imigração e, ainda menos, que é anticigana. Sabemos o que ali está.

Mas tem muito significado que a GPAHE tenha elaborado este relatório e deve ser pretexto para fazermos aqui um ponto de situação relativamente ao Chega.

Fala-se muito da Constituição e de fazer cumprir a Constituição, mas, para aferir da legalidade do partido, basta-nos ir à lei ordinária. Neste caso, é a Lei dos Partidos, que prevê a extinção de qualquer partido político que seja racista, ou seja, que propague um ideário racista.

Quando se fala deste assunto, costuma perguntar-se se determinada pessoa é a favor, ou contra, a ilegalização do Chega. A seguir tem início uma longa, e até interessante, discussão acerca da assinalável representatividade do partido e dos valores democráticos que, à partida, nos obrigam a tolerar valores diferentes e até opostos aos nossos.

Lamento, mas a pergunta está mal formulada e inquina o restante raciocínio. Não está em causa a opinião de quem quer que seja relativamente à ilegalização do Chega ou sequer uma avaliação das consequências sociais dessa ilegalização, mesmo que estejamos a falar de um motim violento. A única coisa que pode – e que deve – ser avaliada é se o Chega propaga ou não uma mensagem racista. Se concluirmos como concluiu este relatório, então deveremos exigir à Procuradoria-Geral da República e ao Tribunal Constitucional que assumam as suas responsabilidades, que não são mais do que cumprir e aplicar a lei. E a lei é claríssima: um partido racista tem de ser extinto.

Não foi só este relatório. Conto em centenas, ou milhares, as vezes em que ouvi chamar racista ao partido de André Ventura. A título de exemplo, porque é irresistível, Luís Montenegro, numa das muitas vezes em que quis aparentar estar a traçar uma linha vermelha ao Chega, afirmou que nunca alinharia “com políticas e políticos xenófobos, racistas (...)”. Todos soubemos a quem se referiu quando estas palavras foram proferidas. Muitos chegaram a entender essa declaração como sendo a clarificação definitiva da posição do PSD em relação ao partido de extrema-direita. Infelizmente não era.

É absolutamente irrelevante alguém – mesmo que seja o primeiro-ministro, como aconteceu - ser contra a ilegalização do Chega. Interessa apenas saber se estamos perante um partido racista. Em caso afirmativo, tem de se aplicar a lei. Ninguém nos deve perguntar se somos contra ou a favor da aplicação da lei. O Estado democrático existe com base no cumprimento da lei.

O ponto de situação é que vivemos uma situação inaceitável: todos sabemos que o Chega é racista e existe uma lei que determina a extinção dos partidos racistas. Mas o Chega continua alegremente a figurar no boletim de voto como se a lei não existisse.

Se o legislador português exagerou ao nivelar o racismo com o fascismo, acima de quaisquer outras ilegalidades como o próprio financiamento ilícito dos partidos? Nada. As consequências de termos um dirigente político a incentivar o racismo, enquanto nega que ele existe, estão à vista: o racismo é cada vez mais vocal. Os racistas sentem-se impunes e legitimados. O ódio cresceu e já nos habituámos. Mas existe uma consequência ainda mais grave: as minorias sentem-se, e estão, mais desprotegidas. Estamos a deixar desenvolver uma sociedade onde a polarização, entre os que defendem este ideário e os que o querem erradicar, é férrea. Passarão décadas e esta ferida não estará sarada. Não vale a pena passar o pano sobre isto.

“A segurança comum e das democracias está em risco”, avisa o relatório. Nada que perturbe os dois maiores partidos portugueses. Ambos protegem o Chega. Ao PS convém e o PSD corre tristemente atrás do prejuízo. Isto é tão imperdoável.»

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27.6.23

Armários

 


Armário Arte Nova com porta espelhada, Museu Wiesbaden, Alemanha, cerca de 1900.
Arquitecto e «designer»: Hector Guimard.

Daqui.
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«No céu cinzento sob o astro mudo»

 


Agora é que é, desde ontem, no sentido literal da frase.
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Nazis de sexta e 25 de Abril de sábado

 

«Este fim-de-semana tivemos uma pequena amostra daquilo que nos separa, como povo e como sistema político, da Rússia. Quer tenha sido real, quer tenha sido uma encenação, estamos perante um universo paralelo. Não sei se alguém entre nós está apto a fazer de intérprete da realidade russa e a torná-la inteligível e lógica. Tenho sérias dúvidas que sim.

Mas vi muitos a torcer pelo grupo Wagner e até por uma guerra civil na Rússia. Vi referirem o Prigozhin como se fosse o Salgueiro Maia. Os nazis de sexta já eram o 25 de abril de sábado. Quase que houve uma festa e bonita. É o que temos. Também não somos inteligíveis e lógicos.»

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O burro era inteligente

 


«As duas coisas que mais me ocorrem, esteja eu a fazer o que estiver, são irritantemente as mesmas coisas que o meu pai estava sempre a dizer-me:

“Pensa!”

e

“Olha para o que estás a fazer!”

Mas, claro está, quando eu pensava, ou olhava para o que estava a fazer, os conselhos mudavam:

“Despacha-te!”

e

“A pensar morreu um burro!”

Em adulto, diverti-me muito com o meu pai ao longo dos anos, falando sobre este problema.

Infelizmente, agora há a moda de denunciar o chamado overthinking (perder tempo e capacidade de decisão a pensar excessivamente). Claro que aquilo que se pretende atacar é o pensamento, o thinking, em si.

As pessoas inteligentes que se obrigam a usar a inteligência que têm (em vez de despachar-se) hesitam muito.

A hesitação é sinal de pensamento: identifica um problema de escolha. A dificuldade é o resultado correcto: saber o que se perde quando se escolhe outra coisa, incluindo a escolha que talvez seja a mais inteligente.

O burro que morreu a pensar, por exemplo, tem muito que se lhe diga. Buridan disse que é impossível escolher entre dois bens muito semelhantes, porque não há razão inteligente para escolher um e rejeitar o outro.

Não é preciso ir para a simplificação do burro que morre porque, estando cheio de sede e de fome, é incapaz de escolher entre o balde com água e o balde com aveia que estão à frente dele.

Quando ambas as coisas desejáveis são boas, é uma reacção frequente não escolher nenhuma, só para fugir à angústia da escolha e, uma vez feita, fugir à angústia de desconfiar que se fez a escolha errada.

Mas é o exercício de escolher que faz bem. Exercita o cérebro. Obriga-o a fazer o trabalho para o qual foi concebido.

É pensar que faz bem. O tempo que leva e as decisões que se tomam por força de muito pensar são questões secundárias.

As boas e más decisões também se podem tomar sem pensar, rapidamente, atirando uma moeda ao ar.

Pensar é que é importante.

E quem sabe se um dia pode vir a ser útil?»

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26.6.23

Estantes

 


Estante Arte Nova, Stavelot, Bélgica, 1899.
Arquitecto e «designer» de mobiliário: Gustave Serrurier-Bovy.

Daqui.
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26.06.1963 – «Ich bin ein Berliner»

 


Frase proferida por John F. Kennedy em Berlim Ocidental, exactamente há 60 anos, quase dois depois de o Muro ter dividido a cidade, num discurso que foi considerado um dos momentos mais importantes da Guerra Fria. Seis décadas depois como está o mundo? Nem sabemos bem…



Poucos meses depois, Kennedy foi assassinado em Dallas.
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Maria Velho da Costa

 


Seriam 85, hoje.
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Os investimentos que o Governo não fez

 


«Ficámos a saber há dias que o Governo bateu um novo recorde: pela primeira vez neste século há um excedente orçamental no primeiro trimestre do ano. Mais uma vez, as contas públicas estão a superar as metas estabelecidas pelo próprio Governo. Aconteceu de forma recorrente durante o mandato de Mário Centeno à frente das Finanças. Voltou a acontecer em 2022, quando Fernando Medina anunciou com orgulho um défice público de 0,4% do PIB, em vez dos 0,9% previstos no Orçamento do Estado (OE). Com os dados agora conhecidos, é possível que o saldo orçamental seja positivo já em 2023 – e não em 2027, como o Governo previa em Abril no Programa de Estabilidade.

Os que defendem tais desempenhos orçamentais afirmam que eles são essenciais para fazer descer a dívida pública. Não há dúvida de que reduzir o rácio da dívida é uma opção correcta, por dois motivos principais.

Primeiro, um país muito endividado, em particular se não tiver moeda própria, fica mais vulnerável a crises financeiras internacionais: no meio do pânico, pode ser difícil obter financiamento para pagar as dívidas passadas; se o banco central não intervier, substituindo-se aos investidores privados, os Estados podem entrar em incumprimento, tornando ainda mais difícil o seu financiamento. Ou então ficam dependentes de empréstimos externos condicionais, como aconteceu em vários países da UE na crise do euro, entre 2010 e 2012. Em ambos os casos, os custos económicos e sociais são elevados.

O segundo motivo pelo qual devemos reduzir a dívida é menos dramático, mas ainda assim relevante: quanto menor for a dívida, menos o Estado gasta no pagamento de juros, libertando recursos para outros fins. Isto é ainda mais importante quando as taxas de juro aumentam, como tem vindo a acontecer.

Mas reduzir o peso da dívida pública não é o mesmo que fazê-lo de pressa e à bruta.

Ao contrário do que muitas vezes se diz, não é preciso eliminar os défices para que o peso da dívida desça. É isso que mostra a história recente: entre 2016 e 2019 o rácio da dívida caiu de forma acentuada (de 131,5% para 116,6% do PIB), num período em que o défice orçamental foi em média de 1,1%; o mesmo aconteceu entre 2020 e 2022, com a dívida a cair de 134,9% do PIB para 113,9%, enquanto o défice foi em média de 1,7%. Como se vê, é possível descer o peso da dívida de forma significativa, tendo défices sempre superiores a 1% do PIB (a explicação é simples: dentro de certos limites, o aumento do PIB mais do que compensa a diferença entre receitas e despesas registada em cada ano).

E, ao contrário da ideia que parece empolgar Fernando Medina, uma redução abrupta do rácio da dívida pública não tira Portugal da lista dos países vulneráveis à próxima crise financeira. A história da crise do euro mostra-nos isso mesmo: dos oito países da UE que foram então sujeitos a programas de resgate, seis tinham rácios da dívida inferiores à média da zona euro. O que afastou os investidores destes países foram outros factores – em particular, a fragilidade dos seus sistemas financeiros, a acumulação de dívida externa (pública e privada) nos anos anteriores à crise e as baixas perspectivas de crescimento económico nos anos seguintes.

Ou seja, nem os saldos orçamentais positivos são necessários para que a dívida pública caia em percentagem do PIB, nem uma descida abrupta do rácio da dívida protege os países de crises financeiras internacionais (na verdade, só os bancos centrais o conseguem fazer). Resta-nos o argumento de que a redução da dívida faz baixar as despesas do Estado com o pagamento dos juros. O problema é que esta vantagem não está livre de custos.

Uma das principais vítimas da obsessão com a redução acelerada da dívida tem sido o investimento público, que todos os anos fica aquém do orçamentado. Para quem governa, os retornos políticos desta opção são óbvios: quando apresenta o OE para o ano seguinte, o governo vangloria-se pelos recordes previstos no investimento público; no final desse novo ano, fica com os louros dos recordes que bateu na redução da dívida e do défice – muito à custa do investimento que anunciou, mas não fez. No ano de 2022, este padrão foi levado ao extremo: a taxa de execução do investimento público foi a mais baixa desde 2012 (o valor investido não chegou a três quartos do que estava previsto no OE).

Na última década o investimento público em percentagem do PIB em Portugal foi sempre inferior ao da média da UE (2,1% contra 3,1%, no conjunto do período). Fazendo as contas, se o rácio tivesse sido idêntico à média europeia, o Estado português teria investido mais 16,7 mil milhões de euros do que de facto aconteceu (um valor equivalente a toda a dotação inicial do PRR).

Segundo a OCDE, num relatório recente sobre a economia portuguesa, o investimento público que ficou por realizar em Portugal na última década teria contribuído para um crescimento económico mais forte. Maiores investimentos em linhas de metropolitano, na rede ferroviária, na renovação das frotas de autocarros públicos e na eficiência energética dos edifícios teriam reduzido as emissões de CO2, bem como o peso da energia nos custos suportados pelo Estado, pelas empresas e pelas famílias. Maiores investimentos nos serviços públicos de emprego e em programas de requalificação de activos teriam melhorado o ajustamento entre a procura e a oferta de qualificações, com impactos positivos na produtividade. Na área da saúde, não faltam à OCDE exemplos de investimentos que poderiam contribuir para reduzir custos, para além de melhorarem o acesso da população aos cuidados médicos: o investimento em cuidados primários e em médicos de família teria permitido atenuar o recurso excessivo às urgências hospitalares (que têm custos médios muito mais elevados); o investimento em prevenção da doença, que apresenta em Portugal um dos valores mais baixos entre os países da OCDE, poderia evitar custos futuros com o sistema de saúde; e o investimento na digitalização dos registos médicos e na articulação da rede de cuidados traria ganhos de eficiência ao sistema.

Estes exemplos estão longe de esgotar a lista de investimentos que poderiam aumentar a produtividade em Portugal de forma duradoura, mas que ficaram por realizar nos últimos anos para que o Governo pudesse mostrar serviço na frente orçamental.

Em 2011 havia um primeiro-ministro que queria ir – e foi – além da troika. Hoje temos um ministro das Finanças que quer forçar a redução da dívida e do défice para lá do que as regras europeias obrigam. Isto mostra que a troika saiu do país, mas ficou nos corações de alguns portugueses. Incluindo alguns membros deste Governo.»

Ricardo Paes Mamede
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25.6.23

Uma casa muito especial

 


Casa Batlló, edifício do modernismo catalão, Barcelona, 1904-1906.
Arquitecto: Antoni Gaudi (auxiliado por Josep Maria Jujol e Joan Rubió i Bellversituado).

Hoje não podia escolher outro arquitecto, já que Gaudí nasceu num 25 de Junho. Sobre esta Casa, pode ser lido mais aqui. A fotografia foi tirada por mim.
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Antoni Gaudí nasceu num 25 de Junho

 


Antoni Gaudí nasceu em 25 de Junho de 1852 e teve uma morte insólita, a poucos dias de fazer 74 anos: ao sair da sua catedral Sagrada Família, foi atropelado por um carro eléctrico numa rua de Barcelona. Sem documentos nem dinheiro na algibeira, acabou por ser levado para um hospital e depositado numa ala comum reservada aos pobres.

Estranhando a ausência, os seus colaboradores localizaram-no no dia seguinte, quiseram levá-lo para um hospital com melhores condições, mas viram a proposta recusada pelo próprio e assistiram à sua morte em 10 de Junho de 1926. Dois dias depois, uma multidão prestou-lhe uma última homenagem, num longo cortejo que acompanhou a urna até à cripta da catedral.

Polémico como poucos, odiado por alguns, idolatrado por outros, único para todos. Em jeito de homenagem, fotos de algumas das suas obras mais emblemáticas. 



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George Orwell faria hoje 120 anos. Nasceu em Motihari, nas Índias Orientais, onde ninguém deixa de reivindicar o facto quando a voz corrente o considera originário de Myanmar – reivindicação que ouviu mais de uma vez, quando andei por lá perto, a caminho do Butão. Mas, de facto, foi só em 1922 que Orwell chegou a Mandalay, na Birmânia, para frequentar a escola que o tornaria membro da Polícia Imperial de Indiana naquela então colónia britânica. Manteve-se nessa função até 1927, ano em que contraiu a dengue e regressou a Inglaterra.

Continuar a ler AQUI, num post do ano passado.
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Emergência climática

 


«Cientistas afirmam que o Planeta Terra se extinguirá daqui a uns quantos milhões de anos, mas o ser humano parece, absurda e drasticamente, empenhado em apressar o seu fim. Líderes mundiais reúnem-se, sob o manto de boas intenções, numa tentativa de alcançar um acordo suficientemente capaz de reverter a situação de quase tragédia climática, mas ficam-se, uns pelas promessas que não cumprem, outros abertamente negam-se a assumir projectos e protocolos de reabilitação da Natureza, desinteressando-se de atingir a neutralidade carbónica.

Desde o criminoso desígnio de esventrar a Amazónia, pulmão do nosso Planeta, à compra das percentagens de emissão de carbono pelos países ricos e desenvolvidos aos países emergentes e em desenvolvimento, à poluição dos rios, dos mares e do ar, tudo são contributos mortais para a vida na Terra. A ganância do ser humano pode ser insuportável pela falta de limites e de ética. Peritos na matéria procuram com redobrada ansiedade novos planetas que apresentem características e elementos básicos para o suporte da vida humana, creio que não só pela intrínseca vontade de ir sempre mais além na descoberta do Universo, mas também para garantir a migração dos humanos sobreviventes à previsível morte do Planeta Terra. Vamos destruindo negligente e sistematicamente o nosso refúgio, a nossa casa comum e já buscamos novo berço para, provavelmente, o destruir também. É urgente a consciencialização individual para que possamos intervir publicamente com voz activa, assertiva e contundente e dizer basta à destruição da Natureza a que vimos assistindo impavidamente. As alterações climáticas que já estavam previstas para ocorrerem dentro de anos já cá estão com todos os desastres atmosféricos com que somos confrontados. Chuvas torrenciais, secas intermináveis, vagas de calor, tufões, ciclones e tornados em quantidade e violência improváveis, o degelo dos glaciares multiplicam-se a uma velocidade estonteante. Não há já estações definidas, com graves prejuízos para as nossas rotinas. Essencial à vida, a água já não é um bem ilimitado. Esbanjamos, todos os dias, este suporte, enquanto cerca de dois mil milhões de pessoas no Mundo não têm acesso a água potável. Ao mesmo tempo que em alguma parte do Mundo se morre devido às cheias, desabamento de terras, inundações de vilas e cidades, noutra morre-se de fome, de sede e de doença provocadas pelas secas que matam as sementes e as plantas que nos alimentam. Esperar pelos outros não é uma opção. Sendo fundamental o Mundo global encontrar uma solução para a continuação da vida na Terra, cada país, cada um de nós tem de assumir-se como defensor da Natureza e lutar por ela. Não é só a economia e o nosso bem-estar social que estão em causa, é a nossa própria subsistência.

É a vida do Planeta que urge defender e melhorar, corrigindo erros passados e enveredando pela criação de uma vivência sustentável e amigável.»

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