26.6.23

Os investimentos que o Governo não fez

 


«Ficámos a saber há dias que o Governo bateu um novo recorde: pela primeira vez neste século há um excedente orçamental no primeiro trimestre do ano. Mais uma vez, as contas públicas estão a superar as metas estabelecidas pelo próprio Governo. Aconteceu de forma recorrente durante o mandato de Mário Centeno à frente das Finanças. Voltou a acontecer em 2022, quando Fernando Medina anunciou com orgulho um défice público de 0,4% do PIB, em vez dos 0,9% previstos no Orçamento do Estado (OE). Com os dados agora conhecidos, é possível que o saldo orçamental seja positivo já em 2023 – e não em 2027, como o Governo previa em Abril no Programa de Estabilidade.

Os que defendem tais desempenhos orçamentais afirmam que eles são essenciais para fazer descer a dívida pública. Não há dúvida de que reduzir o rácio da dívida é uma opção correcta, por dois motivos principais.

Primeiro, um país muito endividado, em particular se não tiver moeda própria, fica mais vulnerável a crises financeiras internacionais: no meio do pânico, pode ser difícil obter financiamento para pagar as dívidas passadas; se o banco central não intervier, substituindo-se aos investidores privados, os Estados podem entrar em incumprimento, tornando ainda mais difícil o seu financiamento. Ou então ficam dependentes de empréstimos externos condicionais, como aconteceu em vários países da UE na crise do euro, entre 2010 e 2012. Em ambos os casos, os custos económicos e sociais são elevados.

O segundo motivo pelo qual devemos reduzir a dívida é menos dramático, mas ainda assim relevante: quanto menor for a dívida, menos o Estado gasta no pagamento de juros, libertando recursos para outros fins. Isto é ainda mais importante quando as taxas de juro aumentam, como tem vindo a acontecer.

Mas reduzir o peso da dívida pública não é o mesmo que fazê-lo de pressa e à bruta.

Ao contrário do que muitas vezes se diz, não é preciso eliminar os défices para que o peso da dívida desça. É isso que mostra a história recente: entre 2016 e 2019 o rácio da dívida caiu de forma acentuada (de 131,5% para 116,6% do PIB), num período em que o défice orçamental foi em média de 1,1%; o mesmo aconteceu entre 2020 e 2022, com a dívida a cair de 134,9% do PIB para 113,9%, enquanto o défice foi em média de 1,7%. Como se vê, é possível descer o peso da dívida de forma significativa, tendo défices sempre superiores a 1% do PIB (a explicação é simples: dentro de certos limites, o aumento do PIB mais do que compensa a diferença entre receitas e despesas registada em cada ano).

E, ao contrário da ideia que parece empolgar Fernando Medina, uma redução abrupta do rácio da dívida pública não tira Portugal da lista dos países vulneráveis à próxima crise financeira. A história da crise do euro mostra-nos isso mesmo: dos oito países da UE que foram então sujeitos a programas de resgate, seis tinham rácios da dívida inferiores à média da zona euro. O que afastou os investidores destes países foram outros factores – em particular, a fragilidade dos seus sistemas financeiros, a acumulação de dívida externa (pública e privada) nos anos anteriores à crise e as baixas perspectivas de crescimento económico nos anos seguintes.

Ou seja, nem os saldos orçamentais positivos são necessários para que a dívida pública caia em percentagem do PIB, nem uma descida abrupta do rácio da dívida protege os países de crises financeiras internacionais (na verdade, só os bancos centrais o conseguem fazer). Resta-nos o argumento de que a redução da dívida faz baixar as despesas do Estado com o pagamento dos juros. O problema é que esta vantagem não está livre de custos.

Uma das principais vítimas da obsessão com a redução acelerada da dívida tem sido o investimento público, que todos os anos fica aquém do orçamentado. Para quem governa, os retornos políticos desta opção são óbvios: quando apresenta o OE para o ano seguinte, o governo vangloria-se pelos recordes previstos no investimento público; no final desse novo ano, fica com os louros dos recordes que bateu na redução da dívida e do défice – muito à custa do investimento que anunciou, mas não fez. No ano de 2022, este padrão foi levado ao extremo: a taxa de execução do investimento público foi a mais baixa desde 2012 (o valor investido não chegou a três quartos do que estava previsto no OE).

Na última década o investimento público em percentagem do PIB em Portugal foi sempre inferior ao da média da UE (2,1% contra 3,1%, no conjunto do período). Fazendo as contas, se o rácio tivesse sido idêntico à média europeia, o Estado português teria investido mais 16,7 mil milhões de euros do que de facto aconteceu (um valor equivalente a toda a dotação inicial do PRR).

Segundo a OCDE, num relatório recente sobre a economia portuguesa, o investimento público que ficou por realizar em Portugal na última década teria contribuído para um crescimento económico mais forte. Maiores investimentos em linhas de metropolitano, na rede ferroviária, na renovação das frotas de autocarros públicos e na eficiência energética dos edifícios teriam reduzido as emissões de CO2, bem como o peso da energia nos custos suportados pelo Estado, pelas empresas e pelas famílias. Maiores investimentos nos serviços públicos de emprego e em programas de requalificação de activos teriam melhorado o ajustamento entre a procura e a oferta de qualificações, com impactos positivos na produtividade. Na área da saúde, não faltam à OCDE exemplos de investimentos que poderiam contribuir para reduzir custos, para além de melhorarem o acesso da população aos cuidados médicos: o investimento em cuidados primários e em médicos de família teria permitido atenuar o recurso excessivo às urgências hospitalares (que têm custos médios muito mais elevados); o investimento em prevenção da doença, que apresenta em Portugal um dos valores mais baixos entre os países da OCDE, poderia evitar custos futuros com o sistema de saúde; e o investimento na digitalização dos registos médicos e na articulação da rede de cuidados traria ganhos de eficiência ao sistema.

Estes exemplos estão longe de esgotar a lista de investimentos que poderiam aumentar a produtividade em Portugal de forma duradoura, mas que ficaram por realizar nos últimos anos para que o Governo pudesse mostrar serviço na frente orçamental.

Em 2011 havia um primeiro-ministro que queria ir – e foi – além da troika. Hoje temos um ministro das Finanças que quer forçar a redução da dívida e do défice para lá do que as regras europeias obrigam. Isto mostra que a troika saiu do país, mas ficou nos corações de alguns portugueses. Incluindo alguns membros deste Governo.»

Ricardo Paes Mamede
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1 comments:

Monteiro disse...

E sempre assim, Portugal vai à frente, ou vai no pelotão da frente e se a Europa nos tivesse escutado, hoje, blá-blá-blá... a re - industrialização então era um sucesso garantido, mas preferem enriquecer o dito senhor e pronto...