22.4.23

Luzes

 


Candeeiro de parede, Casas Ignasi Coll, Barcelona, 1886.
Arquitecto: Albert Juan i Torner.


Daqui.
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Quarenta e sete anos, dez meses e vinte e quatro dias depois

 


«A cidade apareceu ocupada e radiosa. Deparámos com colunas militares, inundadas de sol; e povo logo a seguir, muito povo, tanto que não cabia nos olhos, levas de gente saída do branco das trevas, de cinquenta anos de morte e de humilhação, correndo sem saber exactamente para onde mas decerto para a LIBERDADE!

Liberdade, Liberdade, gritava-se em todas as bocas, aquilo crescia, espalhava-se num clamor de alegria cega, imparável, quase doloroso, finalmente a Liberdade!, cada pessoa olhando-se aos milhares em plena rua e não se reconhecendo porque era o fim do terror, o medo tinha acabado, ia com certeza acabar neste dia, neste Abril, Abril de facto, nós só agora é que acreditávamos que estávamos em primavera aberta depois de quarenta e sete anos de mentira, de polícia e ditadura. Quarenta e sete anos, dez meses e vinte e quatro dias, só agora.»

José Cardoso Pires, Alexandra Alpha

Marcelo «não» (?) convidou Lula para a sessão do 25 de Abril?

 



E Cravinho que pagou as favas…



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Marcelo está a preparar os portugueses para a dissolução do Parlamento

 


«A autobiografia do David Lodge tem um título lindo – Quite a good time to be born. Lodge nasceu em 1935, em Londres, e não viveu a infância e juventude em tempos espectaculares: tinha quatro anos quando começou a II Guerra e lembra-se de ir para os abrigos durante o Blitz, experiência que conta naquele que é talvez o seu romance mais autobiográfico, o "Longe do Abrigo".

O título é interessante porque é muito provocador e humano. Todos nós achamos que o "nosso tempo" foi "quite a good time to be born". Eu, que ainda nasci na ditadura como tantos portugueses, tenho maravilhosas recordações de infância. É uma contradição humana.

O que nunca haverá certamente é "quite a good time to be dead". Os governos começam sempre com o estado de graça do "good time to be born", mas com geringonça, sem geringonça e agora com maioria absoluta, a verdade é que este Governo tem sete anos. E praticamente todos os dias o Presidente da República vem informar o país que pode mesmo haver "quite a good time" para o Governo ser morto.

O que disse hoje o Presidente em Braga? Que a dissolução do Parlamento seria uma "má notícia", mas que "às vezes, tem de haver más notícias". "Se tiver de haver que seja o mais tarde possível". Pede estabilidade mas reconhece a instabilidade em curso: "Todos nós agradecemos. Agradecem os cidadãos e agradece o Presidente da República, que fica dispensado de uma decisão que é sua e só sua". Marcelo acredita que evita a dissolução falando nela todos os dias, enquanto ao mesmo tempo prevê, desde já, que aconteça uma "má notícia"? A verdade é que esta sexta-feira apelou mesmo à existência de um "governo-sombra" para o caso de este ter que ser substituído e a possibilidade de, em sequência, se formar um Governo com base num "pacto de regime". Isto é o bloco central, porque os governos de iniciativa presidencial foram retirados da Constituição em 1982. Marcelo está a preparar o país para a dissolução da Assembleia da República.

Não será, e o Presidente reconhece, "quite a good time" para o Governo ser morto. "Seria uma má notícia – e nós normalmente dispensamos as más notícias – ter de introduzir um factor adicional político complementar, a meio deste período de execução de fundos e de enfrentamento da situação económica e financeira existente".

É verdade que o PS e Governo vivem num clima de fim de festa. Por mais medidas positivas que o executivo apresente e que António Costa vá passear para os supermercados com o mesmo objectivo com que já atravessou várias feiras do país – campanha eleitoral –, a ideia de uma falta de autoridade, ou de uma diminuição enorme da autoridade de um dos homens mais autoritários do país, é visível. Uma prova disto é Luís Montenegro, que tem sido até aqui um frágil líder do PSD, parecer ter renascido do seu torpor.

A trapalhada do parecer sobre os despedimentos da CEO e do chairman da TAP por "justa causa" pode ser semântica, como disse o secretário-geral adjunto do PS, João Torres, mas não é por isso que deixa de ser uma trapalhada, substantivo usado até à exaustão nos tempos do Governo Santana Lopes. Então havia papel ou parecer da TAP que não podia ser revelado por razões de Estado e depois, segundo Medina, o papel era o relatório da Inspecção de Finanças? E afinal não há parecer, mas há o argumentário das razões de Estado para a justa causa baseado no relatório da IGF? Os governantes devem estar muito esgotados, numa versão benévola da coisa.

António Costa gostaria de esmagar o seu ex-ministro das Infraestruturas Pedro Nuno Santos, mas o que se está a ver é que o destino de Costa e de Pedro Nuno estão totalmente ligados. Mesmo com Pedro Nuno afastado da fotografia (e até com vitórias como os lucros da TAP e da CP), o Governo vai ter que retirar conclusões do inquérito da TAP. Costa já disse que era "doa a quem doer". Assistimos em directo a uma automutilação do colectivo governamental, do qual o primeiro-ministro é o principal responsável.

A obsessão pública de Marcelo Rebelo de Sousa em preparar os portugueses para a dissolução tem muitos aspectos negativos, porque, no meio da instabilidade geral do Governo, vem acrescentar instabilidade à instabilidade, admitindo-se que está a fazer avisos em nome da estabilidade. Mas quem aterre no país e ouça os responsáveis políticos confia que está tudo por um fio.

Do discurso de Braga há uma coisa para concluir: Marcelo sonha patrocinar uma espécie de bloco central, a que chamou esta sexta-feira "acordo de regime". Ou seja, cumprir aquilo que enquanto líder do PSD fez com o primeiro-ministro António Guterres. A vantagem desta ideia é afastar de vez da esfera da governação o Chega que, a cada dia que se passa nesta confusão contínua, sobe nas sondagens. É sempre "quite a good time to be alive"

Ana Sá Lopes
Newsletter do Expresso, 21.04.2023 (1ª parte)
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21.4.23

Portas

 


Porta da Romã, Arte Nova Italiana, Turim, 1907.
Arquitecto: Pietro Fenoglio.


Daqui.
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Fim das propinas?

 


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A China como tema central? E o resto?

 


É sempre útil ler os textos de Victor Ângelo, concorde-se ou não com todas as suas posições. Como, por exemplo, NESTE caso.
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O futuro das pensões entre a promessa e a mentira

 


«Como é sabido, o Governo procedeu, na aflição das sondagens, à maior remodelação que consegue conceber: recontratou o génio de comunicação que nas últimas eleições fabricou o medo de um Governo PSD-Chega e lhe alcançou a maioria absoluta. Pedem-lhe agora que venha remediar o mal provocado pela mesma maioria e já há dois resultados visíveis dessa remodelação. A primeira, e não a desvalorize, é que os governantes passaram a falar de pé no final do Conselho de Ministros, o que exibe vigor para desmentir o alegado cansaço. A segunda foi agora anunciada, o aumento das pensões para fazer cumprir a lei, depois de tal objetivo ter sido declarado uma ameaça à República. Entre avanços e recuos, entre promessas e mentiras, o Governo quer voltar a ganhar a simpatia desta grande fatia do eleitorado ao mesmo tempo que gera insegurança e mostra não ter um rumo certo.

ISTO VEM DE TRÁS

Como da memória ninguém se livra, alguns meios de comunicação social lembraram um episódio da campanha eleitoral de 2015, quando Passos Coelho prometeu a Bruxelas um corte anual de €600 milhões na Segurança Social e o PS o recusou. A atrapalhação do Governo da direita foi evidente, não havia nenhum plano para cumprir tal meta, nem na redução da despesa nem no aumento das receitas, era simplesmente uma fezada e a ministra das Finanças explicou, com candura, que poderia acabar por levar a novos cortes de pensões. Ficou por lembrar o outro episódio, quando Costa foi confrontado na televisão por Catarina, que lhe mostrou a página do programa económico do PS que se vangloriava de obter €1660 milhões por via do congelamento das pensões na legislatura. Essa medida acabaria por cair, o PS teve de aceitar a imposição do acordo da ‘geringonça’. Ora, o que ambos os casos demonstraram é que os dois governantes olhavam para a Segurança Social como a forma de reduzir despesa real e que não sabiam como o haviam de fazer. Isto só piorou.

A técnica de atirar números absurdos para cima de uma discussão tem sido exercitada com volúpia por vários Governos, o atual não é exceção. Quando foi proposto o fim da dupla penalização das pensões antecipadas, o que já tinha sido prometido, caiu o Carmo e a Trindade, que eram mil milhões de euros e que o futuro da sustentabilidade seria dilapidado. Eram €90 milhões, que importava, desde que o povo acreditasse. E a expressão mais recente destes truques foi, em setembro passado, o Governo engalfinhar-se no argumento de que, se cumprisse a lei e aumentasse em 2023 as pensões segundo a lei, a conta da Segurança Social seria aniquilada. A simples ideia de que a lei que estabelece a fórmula de cálculo para proteger o valor real de pensão em relação à inflação tem que ser violada pelo facto de haver inflação, já é suficientemente chocante — a lei é o que apetece ao Governo ou é a lei? Mas, ainda mais, era uma mentira.

GOVERNAR COMO MENTIR

A ministra Mendes Godinho afinou o diapasão: cumprir a lei “tira 13 anos de vida ao sistema”. Costa mandou acreditar e foi ainda mais ameaçador: “transformar esta inflação deste ano com impacto permanente na Segurança Social poria em causa algo que é absolutamente fundamental preservar, que é a sustentabilidade futura da Segurança Social”. A explicação para este raciocínio desmerece um homem inteligente, mas é a política, e acrescentou: “O que justifica que em 2023 haja uma regra específica para a atualização das pensões é que este ano vivemos uma inflação absolutamente extraordinária, anómala e atípica”, anunciando que mudaria a lei para que terminasse este modo de cálculo do ajustamento das pensões. Ora, mesmo que a inflação fosse um pico, e não é, como os preços não voltam para trás, a perda do valor real das pensões é definitiva, pelo que a lei impõe a sua recuperação, o que agora, depois da perda nas sondagens e da intervenção do guru da comunicação, passou a ser apresentado como um favor ao povo.

Para então justificar que as pensões tivessem que sofrer nova perda em 2024, a ministra mandou ao Parlamento uma conta em setembro. Demonstrava a morte do sistema e era falsa. Três semanas depois, teve de apresentar a conta verdadeira com mais €2 mil milhões: afinal, a receita cresce mais depressa do que a despesa e o sistema da Segurança Social está protegido. O excedente previsto para 2023 era €3,1 mil milhões e será ultrapassado.

Assim, a conta do Fundo de Estabilidade, que em 2015 previa entrar em défice na próxima década (em 2030 já só teria €10747 milhões), já anunciava em 2022 uma reserva de €27.983 milhões em 2040 (pág. 26 do Relatório da Sustentabilidade da Segurança Social no OE-2023). Apesar destes números oficiais, a ministra e o primeiro-ministro andaram a aterrorizar os futuros pensionistas com a ideia de que não haverá dinheiro e, portanto, mais um corte.

COMO AS SONDAGENS SÃO MARAVILHOSAS

Vieram então as sondagens e o que era a fatal perda da Segurança Social, crime de lesa-pátria, passou a ser a necessidade óbvia de cumprimento da lei, pois claro. Tem alguma graça que isto seja apresentado como um ato de generosidade, mas isso é o guru a fazer o seu serviço e o instinto de sobrevivência a acrescentar o resto. Como os mais de 65 anos serão já um terço do eleitorado, e talvez o menos abstencionista, o Governo, perdido nos preços do supermercado, empenha-se nesta operação com afinco. Repôs as pensões, mas se repôs a confiança depois da mentira já se verá.»

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20.4.23

Prédios

 


Villa Dervaux, prédio Arte Nova, Roubaix, França, 1904.
Arquitecto: Elie Dervaux.


Daqui.
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Botero 91

 


Fernando Botero nasceu em 19 de Abril de 1932 em Medellín, na Colômbia, e é considerado o artista vivo mais reconhecido da América Latina.

Há alguns anos andei pela Colômbia e claro que não deixei de passar algum tempo no Museu Botero, situado em La Candelária, bem no centro histórico e cultural de Bogotá, num edifício com um belo claustro.

Não foi fácil fotografar o que vi, mas ficam aqui algumas imagens possíveis.





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Hoje é o dia para recordar isto

 



O homem não muda.
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Eutanásia: a questão de Marcelo já não é com a República, é com Deus

 


«É poder constitucional do Presidente da República requerer a fiscalização da constitucionalidade das leis. No que toca à eutanásia, esse poder foi usado muito para lá do que é habitual, entrando, a dada altura, numa charada muito bem resumida no voto vencido de Mariana Canotilho, Ascensão Ramos, Assunção Raimundo e Figueiredo Dias : “Há uma linha, por vezes ténue, entre um louvável rigor jurídico e o estabelecimento de condições impossíveis. Quando se rege pelo primeiro, o Tribunal Constitucional exerce, na plenitude, as suas funções de guardião da Constituição. Quando ultrapassa tal fronteira, porém, invade a esfera de competências de ponderação entre bens jurídico-constitucionais e de expressão da vontade geral do legislador democrático, desrespeitando o princípio da separação de poderes.”

A oposição de princípio, filosófica e política, à lei da eutanásia é legitima, como é óbvio. E, no caso do Presidente da República, ela é conhecida dos portugueses e de quem votou em Marcelo Rebelo de Sousa. Para isso, tinha o veto político, claro, geral e sem subterfúgios a que recorrentemente temos assistido. Mas esse veto é uma posição política, não é um último e derradeiro subterfúgio usado com argumentos que não lhe correspondam.

O veto político do Presidente República à lei da eutanásia, que começa a tornar esta novela legislativa um insulto às instituições e à democracia, não é, na verdade, um veto político. Um veto político faz-se, como o nome indica, por razões políticas, não por tecnicidades jurídicas. Os problemas que Marcelo Rebelo de Sousa levantou – saber a qual dos médicos compete identificar e atestar que é fisicamente impossível ao doente administrar a si próprio os fármacos letais, para recorrer à eutanásia em vez do suicídio assistido – resultam, sem dificuldade, do sentido da lei e da sua interpretação, podendo, se necessário, ser explicitados na regulamentação.

Na verdade, o Presidente percebeu que mais um pedido de fiscalização de constitucionalidade voltaria para trás – é até provável que tenha feito as suas sondagens para o saber – e optou por um falso veto político, deixando o Parlamento na inevitabilidade de aprovar a lei à sua revelia, com propósito de a enfraquecer politicamente. É, como tem sido o comportamento de Marcelo em boa parte deste processo, pura má-fé.

Porque faz Marcelo isto? Porque o seu compromisso, neste caso, não é com o país, com as suas funções ou sequer com as suas convicções políticas. Se fosse, aceitaria que a lei mais escrutinada e revista da nossa história democrática, com maioria parlamentar larguíssima, passasse depois de ter deixado claríssima a sua oposição. O seu compromisso é com a sua fé. É com o que ele julga ser a vontade de Deus. E quando isso acontece na política é sempre inevitável um impasse. A fé não negoceia, não transige.

Na realidade, o único objetivo de Marcelo é ficar de bem com a sua consciência de católico e ser obrigado a promulgar sem “culpa”. O que não nos diz nem deveria dizer respeito. Assim sendo, cabe à Assembleia da nossa República laica fazer avançar uma lei com larguíssima maioria parlamentar e total legitimidade democrática. Infelizmente, as resistências do Presidente deixaram de ser políticas, para serem pessoais.»

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19.4.23

Eutanásia: «Chegou a vez de ver respeitada a vontade do Parlamento»

 

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Entradas

 


Entrada da Casa Joseph Batllés, Barcelona, 1903 – 1904.
Arquitecto: Francesc Ferriol i Carreiras.
(Reforma em 1909 pelo arquitecto Eduard Mercader i Sacanella.)

[Mais informação aqui.]
  
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19.04.1886 – Manuel Bandeira

 


E não sei se chegou a ir para Pasárgada…
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Somos os guardiões desta memória. 80 anos da Insurreição do Gueto de Varsóvia

 


«Em Abril de 1943, na véspera do feriado judeu de Pessach, os alemães que ocupavam a capital polaca cercaram o bairro judeu que tinham criado, o gueto de Varsóvia, preparando-se para a sua liquidação final. A 19 de Abril, a polícia alemã e as forças auxiliares das SS entraram no gueto para concluir o extermínio. Os habitantes do gueto esconderam-se em bunkers e em todo o tipo de esconderijos. Os rebeldes judeus atacaram os alemães com armas de fogo, cocktails Molotov e granadas de mão. Dois veículos alemães foram incendiados com garrafas de gasolina. No início, os alemães surpreendidos não conseguiram quebrar a feroz resistência dos defensores.

Face à forte resistência e às falhas iniciais, os alemães começaram a queimar sistematicamente os edifícios, transformando as ruas do gueto numa armadilha de fogo. Enquanto decorriam os combates no gueto, unidades do exército clandestino polaco entraram em acção contra os alemães. Três secções do Exército Nacional tentaram, sem sucesso, romper as paredes do gueto com explosivos. Os judeus condenados ao extermínio defenderam-se até ao início de Maio. O ato simbólico final da revolta foi a demolição pelos alemães da Grande Sinagoga na Rua Tłomackie, em Varsóvia.

A Insurreição do Gueto de Varsóvia foi a primeira revolta urbana e também a maior rebelião armada da população judaica durante a ocupação alemã. Na noite de 19 de Abril de 1943, na sede da União Militar Judaica (ŻZW) na Praça Muranowski, num gesto simbólico, os militantes colocaram a bandeira vermelha e branca da Polónia e a bandeira azul e branca do ŻZW no telhado do edifício. Esta imagem das duas bandeiras, a bandeira vermelha e branca polaca e a bandeira azul e branca sionista, hasteadas juntas no telhado do edifício acima do gueto em combate, tornou-se um símbolo dos destinos inseparavelmente entrelaçados de polacos e judeus. Vários meses mais tarde, em Agosto de 1944, eclodiu a Insurreição de Varsóvia, a batalha por uma Polónia livre, a maior rebelião armada pela liberdade na história da Segunda Guerra Mundial.

A história, literatura, arte e cultura da Polónia em geral contêm numerosas referências às rebeliões armadas dos insurrectos. As revoltas incutiram esperança, animaram espíritos e confortaram corações, mas na maioria das vezes foram brutalmente reprimidas por invasores e ocupantes. Trágicas, muitas vezes inevitáveis, construíram a identidade da comunidade e normalmente traziam a vitória anos mais tarde. Deixaram uma marca forte na sociedade polaca e na história polaca. Por esta razão, tornaram-se frequentemente um tema recorrente na literatura, pintura e cinema. E embora os artistas as tenham retratado de formas diferentes, raramente criticaram a ideia da própria revolta, e defenderam a luta pela liberdade, elevando-a a pedestais culturais.

Varsóvia, a capital da Polónia, tornou-se durante a Segunda Guerra Mundial a cidade de duas revoltas em que judeus e polacos enfrentaram os criminosos alemães. No final, a cidade acabou por ficar em ruínas, destruída e incendiada. Isto mostra quão forte é o imperativo polaco para a liberdade.

A questão é, porquê Varsóvia? Vale a pena recordar que em 1939, nas vésperas da invasão alemã da Polónia, quase 370.000 judeus viviam em Varsóvia. Representavam cerca de 30% da população total da cidade. Após o início da Segunda Guerra Mundial, quase 100.000 judeus chegaram à capital polaca no ano seguinte, sistematicamente deslocados pelos alemães das terras incorporadas no Reich alemão e dos territórios polacos ocupados. Na Primavera de 1940, os alemães iniciaram a construção de um bairro judeu isolado. Cerca de 400.000 judeus viviam atrás dos muros, numa área de 307 hectares. Em Abril de 1941, os desalojados chegaram em massa ao gueto. A população confinada atrás das muralhas do gueto era de 450.000 habitantes.

Não cito estes números por acaso. O gueto de Varsóvia foi o maior gueto criado pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial na Europa. Em Julho de 1942, teve início a deportação em massa de judeus do gueto para o campo de extermínio de Treblinka. Estima-se que entre 250.000 e 300.000 judeus tenham sido assassinados nessa altura. Cerca de 100.000 pessoas morreram no gueto devido à fome e doenças causadas pelas condições desumanas impostas pelos alemães.

Dizemos "judeus", mas devemos lembrar que estes eram cidadãos da Polónia, da Segunda República polaca multinacional e multicultural. É portanto o nosso dever como comunidade comemorar a Insurreição do Gueto de Varsóvia, a maior insurreição judia durante a Segunda Guerra Mundial e a primeira insurreição urbana na Europa ocupada, e preservar na memória a coragem daqueles que se opuseram aos ocupantes alemães.

Mais de 150 eventos decorrem na Polónia nestes dias para assinalar a comemoração oficial do 80.º aniversário da Insurreição do Gueto de Varsóvia. Estes eventos são organizados ou financiados pelo governo polaco, entre outros, como parte do programa de apoio a actividades de preservação do património e da memória dos judeus polacos, realizado pelo Ministério da Cultura e Património Nacional. Desde que a Direita Unida (Zjednoczona Prawica) está no Governo, temos mais do que triplicado o financiamento para instituições cujas actividades incluem a preservação da memória, cultura e património da nação polaca multicultural, incluindo o património da minoria judaica em território polaco, bem como a comemoração do Holocausto perpetrado pelos alemães no território da Polónia ocupada.

Entre as instituições subsidiadas pelo governo polaco encontram-se os museus estatais dos antigos campos de extermínio alemães: o Museu Auschwitz-Birkenau em Oświęcim; o Museu Majdanek (com as secções: Bełżec e o Museu e Centro Memorial Sobibór); o Museu Stutthof em Sztutowo; o Museu Treblinka; o Museu Gross-Rosen em Rogoźnica; o Museu - Centro Memorial do campo de concentração de Plaszow em Cracóvia. Assim como o Museu do Gueto de Varsóvia, o Museu Família Ulma dos Polacos que Salvaram Judeus durante a Segunda Guerra Mundial em Markowa, o Museu da Memória dos Habitantes da Terra de Oświęcim, o Museu POLIN da História dos Judeus Polacos, e o Instituto Histórico Judaico Emanuel Ringelblum. Estas são tanto as instituições que têm funcionado durante décadas, muitas vezes com financiamento insuficiente no passado, como as instituições criadas nos últimos anos, em nome da memória: o Museu do Gueto de Varsóvia, o Museu Família Ulma dos Polacos que Salvaram Judeus durante a Segunda Guerra Mundial em Markowa, e o Museu para a Memória dos Habitantes da Terra de Oświęcim.

Varsóvia é hoje uma cidade cheia de vida. A Polónia é um país cheio de vida. Recordamos o passado e, com base na experiência histórica, queremos construir um futuro melhor. No entanto, não esquecemos aqueles que morreram ou foram mortos. Transmitida de geração em geração, a memória deve permanecer para sempre. E hoje nós somos os guardiões dela.»

Texto publicado em simultâneo com a revista mensal polaca Wszystko co najważniejsze como parte de um projeto histórico com o Instituto de Memória Nacional e a Fundação Nacional Polaca.

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Libération 50

 



Ver primeiras páginas de Libération AQUI.
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18.4.23

Mansões

 


Hotel Solvay, Bruxelas,1898-1900.
Arquitecto: Victor Horta.


Daqui.
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Keukenhof em Abril

 


É como Meca: ir a Keukenhof pelo menos uma vez na vida!

Estamos na quinzena do ano em que é previsível que as túlipas estejam na sua melhor fase de florescimento e em que ir a Keukenhof é portanto um dever, pelo menos para quem esteja por perto. Foi o meu caso, durante alguns anos, e nunca me cansei desse jardim de 32 hectares, a sudoeste de Amsterdão, onde todos os anos reaparecem milhões de túlipas e de muitas outras flores. Um festival de cores que as fotos não conseguem mais do que sugerir e uma mistura de cheiros, impossível de reproduzir.









 
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«Não dar um passo maior do que a perna»

 


Ou me engano muito ou isto é uma espécie de lema que António Costa diz antes de se deitar, e que repete assim que acorda, para não se esquecer de o repetir durante o dia a cada esquina.
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Lula da Silva e a democracia

 


«Se o necessário respeito institucional pela figura do chefe de Estado de um país com o qual Portugal tem relações tão próximas como o Brasil ficou garantido pelo acordo obtido no Parlamento para uma sessão solene paralela a decorrer antes das comemorações do 25 de Abril, a associação da vinda de Lula da Silva a uma data tão simbólica está longe de ter terminado o seu desfiar de polémicas e desencontros.

Para os muitos que acham que a vitória de Lula da Silva sobre Jair Bolsonaro é o epítome da vitória da democracia sobre as tentações autoritárias, a associação era natural, mesmo que o rasto de corrupção dos seus mandatos anteriores aconselhe algum cuidado. Esses mesmos, no Brasil e em Portugal, só podem estar agora profundamente desiludidos com as declarações do Presidente brasileiro sobre a invasão da Ucrânia, equiparando agredido a agressor, culpando a União Europeia, a NATO e os EUA por estimularem o conflito, e desenrolando o mantra infantil de que a paz é possível se evocarmos muitas vezes a palavra.

Olhando para a história do Brasil e da América Latina, até há boas justificações para que Lula defenda uma “governança global” que diminua a hegemonia dos EUA e inclua a voz de muitos outros países. Mas não haja muitas ilusões de que, ao sublinhar que Brasil e China partilham interesses comuns na construção de uma “nova geopolítica”, o Presidente brasileiro opta por tentar substituir um sistema com defeitos por outro muito pior.

As declarações e a visita de Lula da Silva à China inscrevem-se na sua vontade de reconquistar um papel para o Brasil na cena internacional de que se retirou durante o mandato de Bolsonaro. Fá-lo retomando o sonho de crescimento dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) sem tirar qualquer ilação do facto de ter como companhia dois países onde o carácter ditatorial dos seus regimes se tem consolidado e uma democracia que dá perturbantes sinais de caminhar para lá. E fá-lo apesar de poder entender que, com o passar dos anos, o crescente poder da China tenderá a transformar organizações como estas em organismos que mais não serão do que a corrente de transmissão do mais forte. A China ser o principal parceiro comercial do Brasil não deve ser grande incentivo para levar para fora de portas o grito de “democracia sempre”, que soltou na sua tomada de posse.

Para quem quer celebrar a mensagem do 25 de Abril, não pode haver dúvidas de que o Brasil é um excelente convidado, mas um confesso aliado de Xi Jinping ou de Vladimir Putin, nem por isso.»

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17.4.23

Ponche

 


Recipiente para ponche de vidro e metal folheado a prata. Museu da Cidade, Esslingen am Neckar, Alemanha, cerca de 1900.
Dupper & Bernhold.

Daqui.
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Lula em Lisboa?

 




Não vai ser fácil. Talvez não fosse mau que alguém lhe explicasse que a Ucrânia não está a atacar a Rússia...
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Coimbra, 17 de Abril de 1969

 


Há 54 anos, Alberto Martins, então presidente da Direcção-Geral da Associação Académica de Coimbra, pediu a palavra em nome dos estudantes, na cerimónia de inauguração do Departamento de Matemática, presidida por Américo Tomás. Claro que ela não lhe foi concedida, o que funcionou como o pontapé de saída para uma longa crise estudantil.

No vídeo, o comentário do Ministro da Educação, José Hermano Saraiva:




Resumo dos acontecimentos durante a crise que foi longa e dura:


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A nova geração à rasca

 


«Completaram-se este fim de semana 30 anos do protesto que marcou o início de uma série de manifestações da que viria a ser conhecida como geração rasca. Corria o mês de abril de 1993 e a contestação ao aumento das propinas (congeladas desde a década de 1940), decretada pelo Governo de Cavaco Silva, ganhava força. Apostados em dar maior visibilidade à causa, quatro alunos da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Lisboa resolveram aproveitar a presença do ministro da Educação Couto dos Santos numa sessão no Centro Cultural de Belém para lhe exibir a contestação em moldes inéditos até então. Baixaram as calças e nas nádegas podia-se ler: "Não pago".

Depois desse primeiro incidente, houve várias manifestações, algumas reprimidas à bastonada frente ao Parlamento, marcadas pela irreverência, que motivaram um editorial de Vicente Jorge Silva que apelidou de "geração rasca" os protagonistas da contestação estudantil. O ministro caiu, foi substituído por Manuela Ferreira Leite, mas as propinas vingaram. E o rótulo pegou.

Na década seguinte foi recuperado e reciclado aquando dos megaprotestos contra a grave crise social e económica. Foi a 12 de março de 2011, nas vésperas do pedido de resgate externo (o terceiro do país) por José Sócrates, que um movimento nascido nas redes sociais encheu as ruas com a autodenominada "geração à rasca". A chegada da troika e a austeridade imposta no Governo de Passos Coelho não aplacaram, bem pelo contrário, a conflitualidade social. Mais de dez anos, uma pandemia e uma guerra na Europa depois, há várias gerações à rasca com a atual crise inflacionista.

A geração mais qualificada de sempre, a nível académico, não consegue sair de casa dos pais porque ganha miseravelmente, como, aliás, a maioria dos portugueses, que aufere salários brutos abaixo dos 1050 euros. No caso das mulheres, ainda é pior: metade recebe até 987 euros. Enquanto isso, há empresas com lucros galopantes e os cofres do Estado engordam por via do aumento da receita fiscal (mais 8,6% em fevereiro face ao mês homólogo).

Somos um país altamente atrativo para turistas, nómadas digitais, aposentados ricos (chegaram 27 mil nos últimos quatro anos com visto D7) e para quem quer um visto gold com acesso ao espaço europeu. Gostamos de projetar uma imagem de inovação na Web Summit e de modelo de organização na Jornada Mundial da Juventude, mas não cuidamos dos nossos. De quem já não consegue suportar os custos com a alimentação, a habitação, a educação dos filhos. No ano passado, 19 pessoas por dia declararam insolvência. Estamos à rasca mas, ao contrário dos que antes de nós protestaram, aguentamos. Reverentemente.»

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16.4.23

Quando se sentir deprimido com o presente

 


… pense no passado.
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17.04.1975 – Camboja: o Khmer Vermelho toma Phnom Penh



 

Foi há 48 anos que a capital do Camboja, Phnom Penh, foi tomada pelo Khmer Vermelho. Seguiram-se quatro anos de terror, num processo brutal que tinha como objectivo a criação de uma sociedade comunista puramente agrária e do qual resultou um genocídio que eliminou 20 a 25% da população (cerca de dois milhões de pessoas, embora não haja números exactos). Uma das consequências absolutamente impressionante e visível, mesmo para o turista desprevenido, é que o Camboja é hoje um país quase sem velhos: a grande maioria dos que teriam actualmente cerca de 70 anos, ou mais, desapareceu.

Estive lá em 2009 e, por muitos ou poucos anos que ainda viva, nunca esquecerei um dos mais célebres killing fields, situado nos arredores de Phnom Pehn, onde se encontra o Museu do Genocídio de Tuol Sleng. Numa antiga escola transformada em prisão e nos terrenos que a rodeiam, terão sido torturadas e assassinadas cerca de 10.000 pessoas – homens, mulheres e muitas crianças –, como testemunham largas centenas de fotografias expostas em grandes painéis. É um museu muito simples, impressionante pobre, mas terrível.

Há muita literatura sobre este período negro de uma parte importante do sudoeste asiático, há um grande filme (The Killing Fields, Terra Sangrenta, em português) e muitos pequenos vídeos como estes, precisamente sobre o museu de Tuol Sleng.




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Gabriel García Márquez morreu há 9 anos



 

O que escrevi no dia em que nos deixou.
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Trapos praticamente novos

 


«Uma das coisas mais engraçadas do envelhecimento é a maneira como também envelhecem as nossas definições de quem é novo e de quem é velho.

De repente, toda a gente é nova. Isso ainda vá que não vá. O pior são os velhos: os velhos tornam-se muito, muito velhos.

A razão é muito simples: porque têm de ser mais velhos do que nós e, sejamos francos, as pessoas mais velhas do que nós são cada vez mais difíceis de encontrar. Até porque a grande maioria está escondida no cemitério e não aparece nem por mais uma.

Já aqueles que hoje achamos jovens vão-se multiplicando a um ritmo aterrador. Os meus pais gozavam comigo porque, quando eu tinha 11 anos, pintei um cartaz com as palavras “Nunca confies em quem tem mais de 25 anos”.

Obrigavam-me a explicar, noite após noite, para gáudio dos visados, que a partir dos 21 anos ainda havia quatro aninhos em que ainda tinham princípios e ideais, mas que, a partir daí, o “sistema” já tinha corrompido os miolos de toda a gente.

Só quando cheguei aos 25 anos é que percebi o disparate que tinha escrito: ainda era tão novo! Mas, mesmo assim, já havia polícias mais novos do que eu, a tratar-me por “senhor” e a preparar-me, diplomaticamente, para o que estava para vir.

Agora, acho graça aos putos com 40 anos que acham que estão muito doentes porque ficam maldispostos quando comem ou bebem, ou dormem pouco.

Vão fazer análises e descobrem que estão finos. Na verdade, o que aconteceu é que já não podem fazer as asneiras que faziam quando eram novos. Ou seja, podem, mas agora pagam. A única diferença é que o organismo deixou de dar borlas.

Para se sentirem bem, não precisam de tomar remédios: basta terem juízo.

Oh afortunada juventude

É também com essa idade que se começam a irritar com as palavras que inevitavelmente ouvem da boca dos médicos: “Isso é normal para a sua idade.”

“Para a minha idade?”, respondem abespinhadamente, “mas eu não sou velho!”

Ah não? Só os velhos é que falam assim.»

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Costa e a TAP

 

«Como António Costa tem sido, até aqui, o homem que põe todas as manadas possíveis de vacas a voar, é natural que ainda mantenha o optimismo de sair ileso desta comissão de inquérito onde já disse que tirará todas as "ilações políticas doa a quem doer". Mas nesta frasezinha fica implícito que o "doa a quem doer" também o inclui a si.

Costa tem jogado aqui todos os trunfos possíveis para afundar ainda mais Pedro Nuno Santos – desde as queixas tornadas públicas, no Observador, de que estava "furioso" com o ex-ministro por este se manter calado até à ideia de que sempre considerou Hugo Mendes "inepto para qualquer função executiva". Ora, esta estratégia de passa-culpas é bastante duvidosa e diminui francamente o primeiro-ministro na sua autoridade política. Primeiro, é impossível que Pedro Nuno Santos se demita duas vezes. E depois se, de facto, António Costa achava que Hugo Mendes era "inepto" como o aceitou no seu Governo? Ao longo destes sete anos, com certeza que António Costa terá rejeitado algumas propostas de secretários de Estado que os seus ministros sugeriram.»

Ana Sá Lopes
Newsletter do Público, 14.4.2023 (excerto)
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