«É poder constitucional do Presidente da República requerer a fiscalização da constitucionalidade das leis. No que toca à eutanásia, esse poder foi usado muito para lá do que é habitual, entrando, a dada altura, numa charada muito bem resumida no voto vencido de Mariana Canotilho, Ascensão Ramos, Assunção Raimundo e Figueiredo Dias : “Há uma linha, por vezes ténue, entre um louvável rigor jurídico e o estabelecimento de condições impossíveis. Quando se rege pelo primeiro, o Tribunal Constitucional exerce, na plenitude, as suas funções de guardião da Constituição. Quando ultrapassa tal fronteira, porém, invade a esfera de competências de ponderação entre bens jurídico-constitucionais e de expressão da vontade geral do legislador democrático, desrespeitando o princípio da separação de poderes.”
A oposição de princípio, filosófica e política, à lei da eutanásia é legitima, como é óbvio. E, no caso do Presidente da República, ela é conhecida dos portugueses e de quem votou em Marcelo Rebelo de Sousa. Para isso, tinha o veto político, claro, geral e sem subterfúgios a que recorrentemente temos assistido. Mas esse veto é uma posição política, não é um último e derradeiro subterfúgio usado com argumentos que não lhe correspondam.
O veto político do Presidente República à lei da eutanásia, que começa a tornar esta novela legislativa um insulto às instituições e à democracia, não é, na verdade, um veto político. Um veto político faz-se, como o nome indica, por razões políticas, não por tecnicidades jurídicas. Os problemas que Marcelo Rebelo de Sousa levantou – saber a qual dos médicos compete identificar e atestar que é fisicamente impossível ao doente administrar a si próprio os fármacos letais, para recorrer à eutanásia em vez do suicídio assistido – resultam, sem dificuldade, do sentido da lei e da sua interpretação, podendo, se necessário, ser explicitados na regulamentação.
Na verdade, o Presidente percebeu que mais um pedido de fiscalização de constitucionalidade voltaria para trás – é até provável que tenha feito as suas sondagens para o saber – e optou por um falso veto político, deixando o Parlamento na inevitabilidade de aprovar a lei à sua revelia, com propósito de a enfraquecer politicamente. É, como tem sido o comportamento de Marcelo em boa parte deste processo, pura má-fé.
Porque faz Marcelo isto? Porque o seu compromisso, neste caso, não é com o país, com as suas funções ou sequer com as suas convicções políticas. Se fosse, aceitaria que a lei mais escrutinada e revista da nossa história democrática, com maioria parlamentar larguíssima, passasse depois de ter deixado claríssima a sua oposição. O seu compromisso é com a sua fé. É com o que ele julga ser a vontade de Deus. E quando isso acontece na política é sempre inevitável um impasse. A fé não negoceia, não transige.
Na realidade, o único objetivo de Marcelo é ficar de bem com a sua consciência de católico e ser obrigado a promulgar sem “culpa”. O que não nos diz nem deveria dizer respeito. Assim sendo, cabe à Assembleia da nossa República laica fazer avançar uma lei com larguíssima maioria parlamentar e total legitimidade democrática. Infelizmente, as resistências do Presidente deixaram de ser políticas, para serem pessoais.»
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