«Toda a gente sabe que não tenho a mínima intransigência face à responsabilidade criminosa de Putin e da Federação Russa na invasão da Ucrânia. Nenhuma, bem pelo contrário: desejo que a Rússia seja derrotada e que pague um preço pela invasão, pela tentativa de anexação de territórios de um outro país, pelos crimes de guerra cometidos, pelos ataques indiscriminados a civis, pela destruição de infra-estruturas ucranianas, pelas ameaças nucleares, pelo reforço da ditadura na Rússia, pelas perseguições a dissidentes e mesmo, ironia das ironias, pelo efeito de militarização do mundo em resultado do expansionismo e imperialismo russo. Não é lista pequena, pois não?
Para achar isto tudo, não preciso de considerar a Ucrânia um farol da democracia, nem a sua história recente exemplar, nem aceitar a corrupção endémica, nem muitos aspectos de condução da guerra que incluem também crimes de guerra e perseguições. Não preciso mesmo, porque a guerra do lado ucraniano tem uma legitimação na invasão e todos os que desejam a paz sem aspas sabem que a Ucrânia não pode perder esta guerra, sob pena de o benefício do infractor ser muito perigoso para a segurança mundial e, claro, uma enorme injustiça aos ucranianos.
Mas a União Europeia e Portugal não são a Ucrânia, deviam ser diferentes em todas as matérias que envolvem democracias mais consolidadas, que implicam uma latitude quase absoluta para a liberdade de expressão. Uma coisa são as sanções económicas cujo objectivo é travar o esforço de guerra russo contra um país que nesta altura é nosso aliado. Outra, a proibição de canais informativos russos e as restrições aos meios de comunicação russos, que é inútil e, pior do que isso, é uma afronta a um direito de liberdade de informação muito semelhante ao que Putin faz na Rússia.
É verdade que as comunidades ucranianas na Europa e em Portugal têm um envolvimento afectivo muito directo com uma guerra que lhes está a matar familiares e a destruir as suas cidades e aldeias. Mas vivendo num país democrático podem e devem fazer todos os protestos e pressões para condicionar a opinião pública e os governos a apoiarem a causa ucraniana. Outra coisa é quererem nesses países replicar as medidas de guerra ucranianas, que podem ser explicadas pela situação de guerra, mas são más para a Ucrânia e inaceitáveis ao serem replicadas nas democracias ocidentais. Os ucranianos podem, com alguma legitimidade, querer “desrussificar” a Ucrânia, cuja paisagem pública, manuais escolares, símbolos são ainda os da antiga URSS. Mas os ataques à cultura russa, aos seus grandes escritores, com o derrube de monumentos e estátuas, são condenáveis.
Nós, europeus, logo, ucranianos, fomos feitos por Pushkin, Tolstoi, Tchekov, Maiakovski, Pasternak, Akmatova, Tsevtaieva, Gogol, Gorki, e mesmo pelos eslavófilos como Dostoievski e muitos outros. Fomos “ouvidos” por Stravinski, Prokofiev, Chostakovitch e, de novo, por muitos outros. Fomos “pintados” por Repin, Surikov, Serov e, mais uma vez, por muitos outros. A lista é demasiado grande para todo este artigo, porque a cultura russa, e uso aqui “cultura” num sentido muito mais vasto do que as artes e letras, incluindo a mundovisão, é tão ocidental como o “Ocidente” que os teóricos de Putin esconjuram, ou os fundamentalistas ucranianos. E por estranho que pareça, também por Lenine, Estaline, mesmo Dugin. O que nós temos cá, eles têm lá; cortemos o de lá, estamos a cortar o de cá.
O caso mais absurdo desta fronda anti-russa, que leva o anti-“russismo” da guerra para onde não deve estar, foi o afastamento sem audição, nem próprio processo, do professor de Cultura Russa da Universidade de Coimbra Vladimir Pliassov, baseado em acusações de ucranianos ampliadas pela irresponsabilidade jornalística. O professor foi acusado de fazer “propaganda russa”, de ter funções na fundação Russkiy Mire, que apoia a divulgação da língua e cultura russas e estar ligada ao Governo russo. No que diz respeito à fundação, gostaria de saber como é que as escolas universitárias lidam com o Instituto Confúcio… Quanto a fazer propaganda política, se fosse um crime susceptível de punição com expulsão, deixaria muitas universidades portuguesas vazias, a começar pelas faculdades de Direito e acabar nas escolas de Economia.
Mais tarde, para controlar o efeito de indignação suscitado pela expulsão do docente pela universidade, acusaram-no de ser um antigo agente do KGB. Esta acusação não está fundamentada e, mesmo que seja verdadeira, se o “antigo” permanece actual, é matéria para os nossos serviços de segurança e para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, os quais, que se saiba, não se pronunciaram, nem informaram a Universidade de Coimbra. Num país democrático, que está ao lado da Ucrânia contra a Federação Russa, as coisas não se fazem assim e, mesmo que haja autonomia da universidade, o ministério respectivo devia repor a legalidade e próprio processo.
Apoiemos a Ucrânia, aprendamos melhor a cultura russa, respeitemos a democracia e defendamos a liberdade de expressão, que, como de costume, só tem sentido quando é para o “outro”, não para nos vermos ao espelho. Para isso basta viver nas redes sociais, como a Universidade de Coimbra parece ter vivido.»
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