10.6.23

Hospitais

 


Hospital de la Santa Creu i Sant Pau, em estilo modernista catalão, Barcelona, construído entre 1902 e 1930.
Arquitecto: Lluís Domènech i Montaner.

Daqui.
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10 de Junho: vidas e sombras

 


A ler: este texto de Miguel Cardina.
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10 de Junho – Dia de…

 


Por mais tempo que passe, o 10 de Junho nunca deixará de ser, para mim, o tal «Dia da Raça», já que não consegui apagar da memória o que era até ao 25 de Abril.

Assinala-se hoje o dia em que Camões foi transladado para o Mosteiro dos Jerónimos, em 1880. Feriado nacional desde os anos vinte do século passado, a data ganhou um novo significado em 1944, quando Salazar a rebaptizou como «Festa de Camões e da Raça». Fê-lo por ocasião da inauguração do Estádio Nacional, que ocorreu com grande pompa, em cerimónias a que terão assistido mais de 60.000 pessoas e que foram filmadas por António Lopes Ribeiro (vídeos AQUI e AQUI). Linguagem inequívoca: «Às cinco horas, chegou o chefe: Salazar. Salazar, campeão da pátria, era o atleta número um, naquela festa de campeões.»

Mais graves, e bem mais trágicos, passaram a ser os 10 de Junho a partir de 1963. Transformados em homenagem às Forças Armadas envolvidas na guerra colonial, eram a data escolhida para distribuição de condecorações, muitas vezes na pessoa de familiares de soldados mortos em combate (fotos reais no topo deste post).

Entre 1975 e 1976, o Dia de Portugal foi 25 de Abril e, de 1974 a 1976, não houve comemorações do 10 de Junho. Até que um militar presidente da República as ressuscitou em 1977, primeiro como «Dia de Camões e das Comunidades» e, a partir de 1978, também como «Dia de Portugal».

Dantes, era assim:

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A estúpida, ignorante e perigosa perseguição à cultura russa

 


«Toda a gente sabe que não tenho a mínima intransigência face à responsabilidade criminosa de Putin e da Federação Russa na invasão da Ucrânia. Nenhuma, bem pelo contrário: desejo que a Rússia seja derrotada e que pague um preço pela invasão, pela tentativa de anexação de territórios de um outro país, pelos crimes de guerra cometidos, pelos ataques indiscriminados a civis, pela destruição de infra-estruturas ucranianas, pelas ameaças nucleares, pelo reforço da ditadura na Rússia, pelas perseguições a dissidentes e mesmo, ironia das ironias, pelo efeito de militarização do mundo em resultado do expansionismo e imperialismo russo. Não é lista pequena, pois não?

Para achar isto tudo, não preciso de considerar a Ucrânia um farol da democracia, nem a sua história recente exemplar, nem aceitar a corrupção endémica, nem muitos aspectos de condução da guerra que incluem também crimes de guerra e perseguições. Não preciso mesmo, porque a guerra do lado ucraniano tem uma legitimação na invasão e todos os que desejam a paz sem aspas sabem que a Ucrânia não pode perder esta guerra, sob pena de o benefício do infractor ser muito perigoso para a segurança mundial e, claro, uma enorme injustiça aos ucranianos.

Mas a União Europeia e Portugal não são a Ucrânia, deviam ser diferentes em todas as matérias que envolvem democracias mais consolidadas, que implicam uma latitude quase absoluta para a liberdade de expressão. Uma coisa são as sanções económicas cujo objectivo é travar o esforço de guerra russo contra um país que nesta altura é nosso aliado. Outra, a proibição de canais informativos russos e as restrições aos meios de comunicação russos, que é inútil e, pior do que isso, é uma afronta a um direito de liberdade de informação muito semelhante ao que Putin faz na Rússia.

É verdade que as comunidades ucranianas na Europa e em Portugal têm um envolvimento afectivo muito directo com uma guerra que lhes está a matar familiares e a destruir as suas cidades e aldeias. Mas vivendo num país democrático podem e devem fazer todos os protestos e pressões para condicionar a opinião pública e os governos a apoiarem a causa ucraniana. Outra coisa é quererem nesses países replicar as medidas de guerra ucranianas, que podem ser explicadas pela situação de guerra, mas são más para a Ucrânia e inaceitáveis ao serem replicadas nas democracias ocidentais. Os ucranianos podem, com alguma legitimidade, querer “desrussificar” a Ucrânia, cuja paisagem pública, manuais escolares, símbolos são ainda os da antiga URSS. Mas os ataques à cultura russa, aos seus grandes escritores, com o derrube de monumentos e estátuas, são condenáveis.

Nós, europeus, logo, ucranianos, fomos feitos por Pushkin, Tolstoi, Tchekov, Maiakovski, Pasternak, Akmatova, Tsevtaieva, Gogol, Gorki, e mesmo pelos eslavófilos como Dostoievski e muitos outros. Fomos “ouvidos” por Stravinski, Prokofiev, Chostakovitch e, de novo, por muitos outros. Fomos “pintados” por Repin, Surikov, Serov e, mais uma vez, por muitos outros. A lista é demasiado grande para todo este artigo, porque a cultura russa, e uso aqui “cultura” num sentido muito mais vasto do que as artes e letras, incluindo a mundovisão, é tão ocidental como o “Ocidente” que os teóricos de Putin esconjuram, ou os fundamentalistas ucranianos. E por estranho que pareça, também por Lenine, Estaline, mesmo Dugin. O que nós temos cá, eles têm lá; cortemos o de lá, estamos a cortar o de cá.

O caso mais absurdo desta fronda anti-russa, que leva o anti-“russismo” da guerra para onde não deve estar, foi o afastamento sem audição, nem próprio processo, do professor de Cultura Russa da Universidade de Coimbra Vladimir Pliassov, baseado em acusações de ucranianos ampliadas pela irresponsabilidade jornalística. O professor foi acusado de fazer “propaganda russa”, de ter funções na fundação Russkiy Mire, que apoia a divulgação da língua e cultura russas e estar ligada ao Governo russo. No que diz respeito à fundação, gostaria de saber como é que as escolas universitárias lidam com o Instituto Confúcio… Quanto a fazer propaganda política, se fosse um crime susceptível de punição com expulsão, deixaria muitas universidades portuguesas vazias, a começar pelas faculdades de Direito e acabar nas escolas de Economia.

Mais tarde, para controlar o efeito de indignação suscitado pela expulsão do docente pela universidade, acusaram-no de ser um antigo agente do KGB. Esta acusação não está fundamentada e, mesmo que seja verdadeira, se o “antigo” permanece actual, é matéria para os nossos serviços de segurança e para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, os quais, que se saiba, não se pronunciaram, nem informaram a Universidade de Coimbra. Num país democrático, que está ao lado da Ucrânia contra a Federação Russa, as coisas não se fazem assim e, mesmo que haja autonomia da universidade, o ministério respectivo devia repor a legalidade e próprio processo.

Apoiemos a Ucrânia, aprendamos melhor a cultura russa, respeitemos a democracia e defendamos a liberdade de expressão, que, como de costume, só tem sentido quando é para o “outro”, não para nos vermos ao espelho. Para isso basta viver nas redes sociais, como a Universidade de Coimbra parece ter vivido.»

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9.6.23

Portas

 


Porta da «Hans Giebisch House», Viena, 1910.
Arquitecto: Andreas Gisshammer.


Daqui.
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Tapar a “pila” do Cutileiro para rezar melhor

 

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Um mundo de nerds?

 


Num restaurante onde estou a almoçar, uma jovem mãe e três filhas, que devem ter entre 5 e 8/9 anos, chegaram, sentaram-se e abriram imediatamente a artilharia digital: a mãe ficou pelo telemóvel, cada miúda tem um grande tablet. Gostava de saber se alguma teve provas de aferição digitais, mas não tive lata para perguntar. Não conversam, o mundo mudou.
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Cristina e a religião do mérito

 


«Se olhássemos para fora da política talvez tivéssemos previsto a chegada de Trump. Ou saberíamos que a extrema-direita estava instalada no espaço público anos antes de Ventura ter chegado ao Parlamento. Nos magistrados populistas, nas redes sociais inundadas de ódio ou nos programas da manhã que vendem justicialismo entre receitas e entrevistas de vida. É fora da política que estão os sinais do seu futuro. De tal forma, que a política que temos tende a retratar, como uma fotografia, o que já deixou de ser.

Para ver algum do futuro da política recomendo a excelente reportagem do “Público” sobre as sessões motivacionais que Cristina Ferreira anda a fazer pelo país. Esgota a lotação de pavilhões onde cabem milhares de pessoas dispostas a pagar para tocarem no seu sucesso. No essencial, é uma importação do que existe há décadas nos EUA, onde o discurso motivacional faz as vezes da proteção social, ensinando a pescar quem não tem cana, anzol ou mar à frente. É um pouco estranho à cultura católica, mas mais compreensível para os protestantes e, ainda mais, para o movimento evangélico que varre o mundo com a sua religiosidade pragmática e utilitária. As religiões adaptam-se ao que o mercado da fé pede delas.

Pode-se pensar que a fé destas pessoas é em Cristina Ferreira. Não me parece que haja ali idolatria. Cristina será o pastor que dirige a liturgia laica do sucesso. O que ela oferece, dando o seu exemplo e o de heróis como Pedro Chagas Freitas, que foi operário e já vendeu um milhão de livros, ou de Fernando Daniel, que viveu numa casa sem sanita e hoje vende milhares de discos, é a esperança de que o paraíso exista na terra, dependendo exclusivamente da vontade de cada um.

Os intelectuais (o anti-intelectualismo é a luta de classes dos que não querem perturbar o poder do dinheiro) e os “anti-Cristina” (ela é o povo e os que a atacam desprezam o povo) queriam que ela falhasse. Mas “quanto mais me põem para baixo, mais eu ganho balanço para ir para cima”. Ao partilhar o ressentimento descabido numa mulher que nada em dinheiro e em poder, Cristina cria um laço com quem sente que merecia mais do que tem. Os que a criticam, criticam o que eles poderão vir a ser. Falhando ela, falham todos os que também queiram ser deuses de si mesmos. O ressentimento faz parte da cultura do mérito. Se somos donos do nosso destino, o resultado do falhanço não será a revolta, construtiva de alternativas sociais, mas o ressentimento que corrói a política. Parecendo que é emancipadora, por pôr nas mãos de cada um o seu futuro, a fé no mérito é, como todas as religiões dominantes, a fé do poder que ela serve. A desigualdade é um obstáculo para ser superado por cada um de nós, não para pôr em causa. O “sonho americano”, a popularização ideológica de uma mentira (os EUA são dos países com menor mobilidade social no ocidente), é tanto mais necessário quanto maior é a desigualdade, assim como a fé que nos promete felicidade noutra vida é tão mais necessária quanto maior é a miséria nesta vida.

A exibição da riqueza faz parte do ritual da superação. Cristina Ferreira não exibe o luxo para humilhar quem a segue. Pelo contrário. Mostra o milagre aos céticos. Mereceu piadas quando, dirigindo-se a 10 mil pessoas no Altice Arena, revelou que uma imagem de Nossa Senhora lhe tinha aparecido nuns sapatos que custaram €490. “Para muitos de vocês é o que ganham num mês”, disse, falando dos “célebres sapatos da sola vermelha que já está muito gasta porque os usei muito”. Tudo medido: do sinal de aprovação divina da riqueza e ao esforço a que ele está associado. A mesma simplificação simbólica de todas as religiões. Nada para rir. É a religião do capitalismo que nos guia. Sem comunidade, sem superação política ou coletiva. Esforço individual, prémio, luxo. Está no discurso da IL ou nos Louboutin santificados de Cristina.

É sabido que Cristina acalenta o sonho de ser Presidente. De que serve a riqueza sem a glória? Coisa que se terá agravado quando Marcelo, por simpatia, a terá entusiasmado para a ideia. A soberba de quem nunca expressou uma posição política querer ocupar o mais alto cargo político tenta todos os vaidosos, da entertainer ao vice-almirante. O provável é acontecer o que aconteceu a Fernando Nobre: desconhecendo os códigos da política, derrotou-se em combate. Até ao dia em que esses códigos deixarem de existir, para espanto dos que os conhecem.

A perda de poder do Estado, a globalização económica, a crise de todas as instâncias mediadoras e a atomização da sociedade não estão a destruir apenas as democracias. Estão a destruir a política. Essa, que vê mérito de todos na capacidade de uma comunidade conquistar, por via da cooperação, o sucesso coletivo. A crise da política é a crise da comunidade com um devir partilhado. Como grande parte dos profetas, Cristina não pensou no mundo que nos propõe. O seu discurso é fruto, com inegável sucesso no mercado das frustrações, aquilo a que os malditos intelectuais chamam hegemonia cultural.»

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8.6.23

Chávenas

 


Chávena e pires em vidro Moser, Chéquia, fim do séc.XIX / início XX.

[Sobre vidro Moser, aqui.]


Daqui.
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Recreio para uma tarde cinzenta de feriado

 

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Paula Rego

 


Um ano sem ela. 
(Londres, 08.06.2022)
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A Europa Social

 


«Segundo o último Eurobarómetro, a preocupação mais premente para 93% dos europeus é o aumento do custo de vida, seguida da pobreza e da exclusão social (82%). Só em terceiro lugar é que surge a guerra na Ucrânia e a emergência climática (81%).

Vários direitos humanos, não só sociais, mas também de liberdade, têm sido negativamente afetados nesta Europa de policrises, um termo inicialmente introduzido nos anos noventa por Edgar Morin, e resgatado por Juncker em 2018, para designar este estado de “crises entrelaçadas e sobrepostas”. Os grupos de pessoas vulneráveis e marginalizadas são atingidos de forma desproporcionada, agravando os padrões de discriminação pré-existentes nas esferas política, económica e social.

Os direitos sociais têm tradicionalmente pouca importância no direito constitucional europeu. Tendo como pano de fundo a crise da zona euro, e os debates sobre as consequências sociopolíticas da crescente liberalização da UE, em 2017 foi aprovado o Pilar Europeu dos Direitos Sociais, uma proclamação de vinte princípios não vinculativos para uma União Europeia (UE) mais justa e inclusiva.

Na Presidência portuguesa do Conselho, em 2021, realizou-se a Cimeira Social do Porto que albergou uma reunião informal de chefes de Estado ou de Governo na qual os líderes nacionais adotaram a Declaração do Porto, congratulando-se com “novos grandes objetivos da UE em matéria de emprego, competências e redução da pobreza” para 2030. Esses objetivos incluem ter 78% das pessoas adultas empregadas e retirar 15 milhões de pessoas da pobreza, incluindo 5 milhões de crianças. Contudo, volvidos dois anos, os progressos alcançados são insatisfatórios, avaliação a que não é indiferente a guerra na Ucrânia e a crise energética e inflacionista que se lhe seguiram.

Reconhecendo que a UE está aquém das expetativas na implementação do pilar dos direitos sociais, o Parlamento Europeu, no “Roteiro para uma Europa Social” aprovado em maio, exorta a que os direitos sociais sejam colocados no centro das próximas políticas europeias. Uma das propostas que tem sido reiterada é da condicionalidade social em matéria de financiamento europeu e auxílios de estado: todas estas áreas de intervenção deverão estar condicionadas a objetivos sociais, de modo a promover a contratação coletiva, respeitar os direitos dos trabalhadores e garantir melhores condições de trabalho.

No final de maio, realizou-se o Fórum Social do Porto, organizado pelo Governo português, com o apoio da Comissão Europeia, com o objetivo de fazer o balanço dos progressos alcançados na implementação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, volvidos dois anos da Cimeira Social do Porto. Com queixas de alguns parceiros sociais que foram impedidos de participar por alegadas questões logísticas, a institucionalização bienal deste Fórum mostra, apesar de tudo, que Portugal pode consolidar a sua liderança na agenda europeia em matéria social.

A Europa está numa encruzilhada: apesar de ser uma das zonas do mundo com mais riqueza, não tem conseguido lidar eficazmente com a desigualdade e a insegurança geradas pela transição climática e digital. Estes desafios geram desencanto com a democracia e são um poderoso combustível para fenómenos populistas e autoritários. Por isso, a Europa Social tem de ser uma prioridade política central para a UE enquanto projeto de prosperidade partilhada e inclusiva.»

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7.6.23

Cálices

 


Cálice com duas pegas, de vidro soprado. Museu de Orsay, Paris, 1896.
Karl Köpping.

Daqui.
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Cristo e a Lua

 


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Marcelo a festejar o Dia de Portugal

 


Isto não se inventa! Quim Barreiros chamado à recepção.
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Quem se demite fica, quem não se demite sai

 


«O regresso de uns dos principais personagens do enredo que tem animado os dias da nossa República acabou beneficiado pelo contraste entre uma audição, a de Pedro Nuno Santos, em que foi possível ouvir falar de política, e uma outra, a de Mendonça Mendes, que, mesmo tratando importantes assuntos de Estado, mostrou um executivo incapaz de se conseguir libertar das lógicas caricatas de um episódio com contornos de caso de polícia. É claramente também a diferença moral entre quem assume as suas responsabilidades políticas, se for preciso com uma demissão, e quem não foi capaz de o fazer.

É evidente que, ao terminar com seis meses de silêncio, Pedro Nuno Santos teve o cuidado de deixar os tópicos mais quentes, a sua demissão e a indemnização a Alexandra Reis, para a Comissão Parlamentar de Inquérito da TAP para se poder concentrar no “orgulho” de ter salvo a companhia aérea e nos lucros que ela e a CP conseguiram em 2022. Como nas boas séries, o regresso de um personagem desaparecido não se faz sem deixar algum do suspense lá mais para frente.

O que se viu foi alguém que, ao contrário do que alguns vaticinaram, não está a contar os dias para o fim da sua carreira política. Não foi só a pose afirmativa, nem a desenvoltura como foi capaz de responder às questões que lhe foram colocadas. Foi a forma como quis defender o seu capital político, nomeadamente o seu posicionamento à esquerda, ao afirmar-se como defensor da privatização da TAP, mas sem nunca revelar o seu modelo, ou seja, deixando espaço para que o Estado ainda possa ser o accionista maioritário. E isto, claro, sem nunca deixar de visar o seu principal adversário, o PSD.

Mas a sua marca de futuro esteve especialmente na maneira como cuidou, em diversos pontos, da sua relação com o primeiro-ministro, ao procurar nunca hostilizar quem ainda pode ter uma influência determinante na sua carreira. Ao contrário de outros, que arrastaram meio Governo para os problemas que criaram, Pedro Nuno Santos exibiu a desenvoltura política de quem tem a autonomia de um caminho próprio.

Num dia em que Mendonça Mendes acabou por vir sublinhar as contradições de João Galamba, o contraste entre a actuação de Pedro Nuno Santos e a do seu sucessor não poderia ser maior, tornando ainda mais frágil a posição do actual ministro das Infra-Estruturas. É caso para dizer que quem se demitiu está para ficar e quem não se demitiu pode estar à beira de sair.»

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6.6.23

Sofás

 


Sofá com espelho, em madeira de mogno e veludo. Barcelona, entre 1903-1908.
Projecto de Joan Busquets, pintura a óleo de Aureli Tolosa.

Daqui.
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Mariana Mortágua

 


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06.06.1968 – Quando Maurice Béjart foi expulso de Portugal




Há 55 anos, dois dias depois do assassinato de Robert Kennedy, Maurice Béjart deu um concerto no Coliseu de Lisboa. No final do espectáculo, veio ao palco para afirmar que Robert Kennedy fora “vítima de violência e de fascismo” e para pedir um minuto de silêncio “contra todas as formas de violência e de ditadura”.

Com a maior parte dos espectadores de pé, renovaram-se os aplausos, com mais força e mais entusiasmo: lutávamos, mas tínhamos quem nos ajudasse na nossa luta. Informado do sucedido, Salazar proibiu os espectáculos seguintes e ordenou que Béjart saísse imediatamente de Portugal.

Para ler um resumo detalhado dos acontecimentos, num excerto de um livro que publiquei em 2007, clicar AQUI.

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Carunchos da União Europeia

 


«A União Europeia (UE) pode e deve ser um ator influente no tabuleiro da geopolítica? Mesmo que a resposta fosse sim, tal objetivo não seria viável, desde logo pelas contradições internas, um dos carunchos que a vai corroendo. Considerar todos os regimes políticos dos países que a compõem como democráticos é sujeitar o conceito democracia a um contorcionismo impossível. Por outro lado, o federalismo visto como caminho para criar unidade só se concretiza nas áreas que cavam desigualdades: as políticas monetárias na Zona Euro e a financeirização da economia.

O esforço dos líderes da UE para a apresentar como uma orquestra afinada, pressupondo que essa imagem lhe dá estatuto de Bloco de Estados, de grande potência com estratégia autónoma, tem algum efeito simbólico a espaços, mas esbarra com a realidade. Temos uma UE com profundas dependências em múltiplos campos, que recorre muitas vezes a leituras enviesadas dos acontecimentos, para esconder as suas incapacidades.

Dois outros carunchos vão-na moendo. Primeiro, a sua subordinação à potência EUA, num contexto em que os atores das mudanças geopolíticas são os estados, em particular os dos grandes países com capacidade para assumir estratégias próprias e espaços de influência com relacionamentos de mais reciprocidade. É verdade que na UE há países grandes, mas também se encontram manietados.

Segundo, os processos políticos internos na UE têm-se consubstanciado no reforço de forças da extrema-direita, havendo cada vez mais governos de coligações que as integram. Ora, quando estas forças se instalam como atores centrais do sistema político, a sua grande missão é estoirar com estabilizações democráticas. Elas não olham a guerra como um perigo, mas sim como uma oportunidade. Lembremos que, para a valorização do projeto político União Europeia, foram sempre relevadas a garantia da paz e o Estado social. Quando hoje vemos líderes europeus invocarem crises ou situações de emergência para as pôr em causa, isso indica que a penetração da extrema-direita na estrutura e agenda da UE já é muito profunda.

Esta semana, dois acontecimentos muito relevantes evidenciaram fragilidades crescentes para a UE. A tensão entre sérvios e kosovares agudizou-se e surge um caldeirão passível de explodir com estilhaços no Leste europeu e na sensível região dos Balcãs. Nas duas últimas décadas aquela tensão foi sendo gerida com entendimento tácito entre os EUA e a Rússia. Tudo o que se passa com a guerra na Ucrânia pode ter estoirado com essa gestão. As tropas de paz no Kosovo são da NATO. Talvez os governantes da UE devessem ir mostrando aos cidadãos as penalizações a que os poderão estar a sujeitar com algumas decisões que tomam.

O outro acontecimento foram as eleições na Turquia. Hoje surge como ridícula a discussão infindável sobre a possibilidade de entrada deste país na UE. A Turquia, embora sendo membro da NATO, tem voz e estratégia próprias, é um ator no jogo da geopolítica: tem canais abertos com a Rússia e a Ucrânia, influencia numa sensível zona marítima, no Médio Oriente e em regiões de África. São exatamente espaços de relações primordiais dos países europeus no seu processo histórico.

Neste quadro complexo, será bom se, na Península Ibérica, cada um dos seus países, de acordo com as suas dimensões e condições específicas, procurar ter um pouco de estratégias própria, muito melhores respostas aos problemas concretos das pessoas e uma forte determinação no combate à extrema-direita.»

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5.6.23

Pulseiras

 


Pulseira Arte Nova, de prata dourada, esmalte «plique-à-jour», diamantes e pérolas. Museu Nacional de Artes Decorativas de Madrid, 1905.
Lluis Masriera.

Daqui.
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Jorge de Sena morreu num 4 de Junho

 

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Há mais vida para além da CIP-TAP?

 


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05.06.1898 – Federico García Lorca

 


Federico del Sagrado Corazón de Jesús García Lorca nasceu em Granada há 125 anos.

Poeta e dramaturgo, conta-se entre as primeiras vítimas da Guerra Civil Espanhola. Foi fuzilado, com 38 anos, em Agosto de 1936, entre 17 e 19, pelo seu alinhamento político com os Republicanos e por ser declaradamente homossexual.

Todos os anos, nessa data, em Viznar, perto de Granada, ciganos cantam, dançam e dizem poesia em honra de Lorca e de cerca de 3.000 fuzilados pelos franquistas, cujas ossadas se encontram por perto.



Mas um dos seus «cartões de visita» será sempre:


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Sempre, sempre ao lado da banca

 


«A banca portuguesa é a segunda a oferecer remuneração mais baixa pelos depósitos, em toda União Europeia. Como Luís Aguiar-Conraria bem explicou, num texto sobre o “cartel da banca” que recomendo vivamente, os bancos estão a pagar 1% pelo dinheiro que os seus clientes lhes emprestam, para pegarem nesse mesmo dinheiro e o colocarem a render a 3,25% no Banco Central Europeu. A margem entre estas duas taxas é o lucro que a banca nacional está a ter, sem qualquer risco, aproveitando a crise inflacionista. Nada melhor do que olhar para os outros países da zona euro, onde a banca remunera em média os seus clientes a 2%, para perceber o ultraje.

Este negócio só se confrontava com um inconveniente: existirem produtos financeiros no mercado com taxas de remuneração mais elevada. A discrepância entre as taxas pagas pela banca e as dos certificados de aforro levou a que, só no primeiro trimestre deste ano, as famílias portuguesas tenham tirado 7,6 milhões de euros dos depósitos bancários e tenham reforçado com nove mil milhões o investimento em certificados de aforro. Este instrumento tradicional de financiamento do Estado tornou-se a única fonte de concorrência de um sector bancário conhecido pelas práticas de cartelização e promessa de não agressão entre bancos.

Se não os podes vencer, tenta anulá-los, é uma velha estratégia comercial. Desta vez nem foram necessárias pressões de corredor. João Moreira Rato – antigo responsável pela gestão da dívida nacional, agora chairman do Banco CTT – fez-nos o favor de dizer em público o que ia na alma de todos os banqueiros: o Estado tinha de parar a emissão de certificados de aforro. A preocupação revelada com o controlo da dívida e a saúde das contas públicas foi tão comovente que quase me esqueci quem lhe pagava o salário.

É certo que o governo não cancelou a emissão de certificados de aforro, como pretendiam os bancos. Mas a suspensão de uma série que retribuía com 3,5% os aforradores para abrir outra em condições menos favoráveis e uma remuneração mais baixa (2,5%) é uma cedência às pretensões de quem mais está a lucrar com a crise.

Até pode haver algumas boas razões técnicas e financeiras para esta decisão. Mas não é por acaso que temos políticos em cargos políticos. Para pensarem nos efeitos mais abrangentes de cada medida. No deve e haver, é um erro Não revela apenas uma preocupante reverência para com a banca. Diminui a aposta na poupança nacional e corre o risco de atirar milhares de portugueses, essencialmente mais velhos, para produtos financeiros de risco mais elevado.

Sim, a remuneração dos certificados de aforro impende nas contas do Orçamento de Estado, sendo suportada por todos nós. E acontece num momento em que o Estado, fruto do aumento de receita fiscal e das contas saudáveis da Segurança Social, já tem pouca necessidade de financiamento. 2,5%, ainda mais num cenário de previsível descida da inflação, continua a ser uma remuneração mais atraente do que a oferecida pela banca. Só que o problema não é a remuneração dos certificados ser elevada – vale a pena lembrar que, sendo abaixo da inflação, 3,5% é um valor real negativo –, é o que se passa na banca.

A inércia da Autoridade da Concorrência, a despreocupação do Banco de Portugal e uma Caixa Geral de Depósitos que se comporta como um banco privado, fazem com que a banca contribua para as dificuldades sentidas pelos portugueses. Neste contexto, o instrumento mais eficaz para os obrigar a ter uma política concorrencial eram os certificados de aforro. Diferente seria se a CGD, como banco público, não modelasse o seu comportamento pelo conjunto do sector, funcionando como instrumento de defesa do interesse comum. Não precisaria de ser deficitária para isso. Bastaria acompanhar a banca comercial dos restantes países europeus.

Convém não esquecer o que vivemos há dez anos. A crise da dívida pública, que nasceu de uma crise do setor financeiro que todos nós acabámos por apoiar, teve como ponto central a vulnerabilidade do nosso país nos mercados internacionais. A nossa dívida, ao contrário da italiana, encontrava-se maioritariamente em mãos estrangeiras e pagámos cara essa debilidade. Nos últimos tempos conseguimos reverter essa tendência, com um forte contributo dos certificados de aforro. Mesmo que seja marginalmente mais caro o Estado financiar-se dentro de portas, o que nem é o caso, é preciso levar em conta os custos e riscos acrescidos de ter a dívida na mão de grandes investidores internacionais.

Por fim, mas não menos importante, os certificados de aforro são um instrumento reconhecido e fiável, merecendo confiança e preferência de pessoas mais envelhecidas e com menor literacia financeira. Diminuir a remuneração é empurra-las para produtos de maior risco, como já tivemos no passado com o papel comercial do BES ou outros ainda mais obscuros.

Como um dia disse Jorge Sampaio, há “mais vida para lá do Orçamento”. Não era má ideia que um governo da mesma cor política tivesse isso presente.

Está na altura de voltamos a falar da banca. O setor é lesto a pedir apoio do Estado quando está em apuros, atirando para cima dos contribuintes o financiamento das perdas causadas por administradores de olhos nos prémios de curto prazo. E é ainda mais rápido a aproveitar qualquer crise para lucrar muito acima das nossas possibilidades. Como vemos agora, também conta com o Estado para manter lucros recorde à custa do assalto aos clientes e pequenos investidores.»

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4.6.23

Quiosques

 


Quiosque Arte Nova para música, San Sebastián, 1906.
Arquitecto: Ricardo Magdalena.


Daqui.
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Em cada português um polícia

 


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04.06.1989 – Tiananmen: nunca esquecer

 


Voltei há poucos anos à Praça Tiananmen. Confirmo que 1989 continua a ser tabu intransponível e retive o silêncio da simpática guia que nos acompanhava. Várias vezes interrogada, foi dizendo que dos acontecimentos de 1989 «nada sabia», que nasceu e vivia então na Manchúria, que nada viu, que não se aprende na escola, que há muitos milhões de chineses que nunca ouviram falar desse não assunto. «Não sei nada, não posso saber, não insistam, por favor.» Calámo-nos.
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Quem quer ser jacaré?

 


«Olho para a fotografia da mulher de corpo perfeito e dentes impecavelmente brancos e não consigo evitar o desconforto provocado pela inveja. O cenário dourado grita um luxo que jamais me estará acessível e a sola vermelha dos sapatos elimina qualquer margem para enganos: há um ordenado meu em cada um dos pés da mulher que posa para a câmara como se o mundo inteiro lhe pertencesse por direito.

E se cada um dos elementos da fotografia vale por si só, nenhum grita requinte de forma tão alta como os brincos, em forma de serpente, que lhe adornam as orelhas. São absolutamente deslumbrantes e não resisto a procurar o seu preço na Internet. Rio muito quando descubro que são bastante mais caros do que os sapatos e que o seu preço se assemelha ao que paguei pelo meu carro de família.

Sabem, sempre ouvi dizer que “quem nasceu para lagartixa nunca chega a jacaré” e, na idade em que me encontro, perto dos quarenta, o melhor que posso fazer é aceitar o destino e perceber que nem todos os luxos vêm forrados de dourado e a regurgitar dinheiro e opulência. Há outros luxos, menos impactantes em fotografias, mas que valem mais do que qualquer coisa que o dinheiro possa comprar. Se são luxos de lagartixa? Possivelmente. Mas acredito que até os jacarés os invejem.

Escrevo esta crónica embalada pelas vozes de duas amigas de uma vida que tagarelam na sala ao lado. Viemos passar uns dias fora, e, neste exacto momento, não me ocorre maior luxo do que este. Podiam chover brincos dourados, sapatos de sola vermelha e vestidos de alta-costura que eu ia sempre preferir os chinelos de cinco euros e o vestido em segunda mão que envergo neste momento se isso significasse não perder o ombro, a mão e a gargalhada destas duas.

Aliás, se for honesta comigo própria, terei de admitir que o meu desempenho em saltos altos se assemelha ao de uma pata com problemas na anca e que brincos demasiado grandes e pesados sempre me incomodaram. Os vestidos, por outro lado, parecem-me óptimos, mas não consigo evitar pensar no esforço que exigem de cada vez que a bexiga dá sinal.

Há uns anos, uma amiga ofereceu-me um tratamento naquele que era, na altura, o spa mais luxuoso da região. E eu lá fui, toda contente, a pensar na incrível experiência que me aguardava. Mas mal entrei na sala vi a minha expectativa começar a morrer. O cheiro a incenso era de tal forma intenso e adocicado que só um milagre me salvaria da dor de cabeça do ano. E a massagem? Diferenças de temperatura imensas, óleos, pedras e texturas que pouco mais faziam do que deixar-me nauseada.

A massagista bem me mandava relaxar e concentrar na música ambiente, que, aos meus ouvidos, parecia tocada por uma criança num xilofone. Mas eu, lagartixa tola, cheia de vergonha de interromper a sessão, ali fiquei, caladinha e a aguentar, até ao exacto momento em que uma pedra quente colocada nas minhas costas desferiu o golpe final à experiência e vomitei como se não houvesse amanhã. O verdadeiro requinte, verdade?

Nesse dia, só me lembrava do meu pai, que torce o nariz de cada vez que passa por um restaurante gourmet. E escusamos de lhe dizer que aquela comida é uma experiência e que é um luxo comer ali. Luxo gastronómico, para ele, é comer um prato de mão de vaca com grão, com tempero marcado e um toque de malagueta. E pouco lhe importa o ambiente onde o faz desde que o seu entorno seja asseado, a comida boa e as pessoas simpáticas. O verdadeiro luxo, diz ele, é ter prazer quando se come e ficar de barriga cheia.

E eu volto a olhar para o tablet onde vi a fotografia que começou esta crónica e percebo que estou bastante mais apaziguada. Não que, de repente, tenha deixado de ver a beleza. O luxo funciona como um íman e eu jamais lhe serei imune. Há uma sensualidade no luxo que o torna magnético. Mas o seu espectro é enorme e acho que vivo bem com a parte dele que o dinheiro não pode comprar. Afinal, sempre gostei de mão de vaca com grão. E o resto posso sempre continuar a ver em revistas, na televisão e nas redes sociais.

É verdade que o luxo me parece lindo e me faz suspirar. Mas são as vozes das minhas amigas que me fazem rir, as comidas da minha mãe que me aconchegam e as sapatilhas que me fazem correr. Ser lagartixa, às vezes, também pode ser incrivelmente luxuoso.»

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