5.6.23

Sempre, sempre ao lado da banca

 


«A banca portuguesa é a segunda a oferecer remuneração mais baixa pelos depósitos, em toda União Europeia. Como Luís Aguiar-Conraria bem explicou, num texto sobre o “cartel da banca” que recomendo vivamente, os bancos estão a pagar 1% pelo dinheiro que os seus clientes lhes emprestam, para pegarem nesse mesmo dinheiro e o colocarem a render a 3,25% no Banco Central Europeu. A margem entre estas duas taxas é o lucro que a banca nacional está a ter, sem qualquer risco, aproveitando a crise inflacionista. Nada melhor do que olhar para os outros países da zona euro, onde a banca remunera em média os seus clientes a 2%, para perceber o ultraje.

Este negócio só se confrontava com um inconveniente: existirem produtos financeiros no mercado com taxas de remuneração mais elevada. A discrepância entre as taxas pagas pela banca e as dos certificados de aforro levou a que, só no primeiro trimestre deste ano, as famílias portuguesas tenham tirado 7,6 milhões de euros dos depósitos bancários e tenham reforçado com nove mil milhões o investimento em certificados de aforro. Este instrumento tradicional de financiamento do Estado tornou-se a única fonte de concorrência de um sector bancário conhecido pelas práticas de cartelização e promessa de não agressão entre bancos.

Se não os podes vencer, tenta anulá-los, é uma velha estratégia comercial. Desta vez nem foram necessárias pressões de corredor. João Moreira Rato – antigo responsável pela gestão da dívida nacional, agora chairman do Banco CTT – fez-nos o favor de dizer em público o que ia na alma de todos os banqueiros: o Estado tinha de parar a emissão de certificados de aforro. A preocupação revelada com o controlo da dívida e a saúde das contas públicas foi tão comovente que quase me esqueci quem lhe pagava o salário.

É certo que o governo não cancelou a emissão de certificados de aforro, como pretendiam os bancos. Mas a suspensão de uma série que retribuía com 3,5% os aforradores para abrir outra em condições menos favoráveis e uma remuneração mais baixa (2,5%) é uma cedência às pretensões de quem mais está a lucrar com a crise.

Até pode haver algumas boas razões técnicas e financeiras para esta decisão. Mas não é por acaso que temos políticos em cargos políticos. Para pensarem nos efeitos mais abrangentes de cada medida. No deve e haver, é um erro Não revela apenas uma preocupante reverência para com a banca. Diminui a aposta na poupança nacional e corre o risco de atirar milhares de portugueses, essencialmente mais velhos, para produtos financeiros de risco mais elevado.

Sim, a remuneração dos certificados de aforro impende nas contas do Orçamento de Estado, sendo suportada por todos nós. E acontece num momento em que o Estado, fruto do aumento de receita fiscal e das contas saudáveis da Segurança Social, já tem pouca necessidade de financiamento. 2,5%, ainda mais num cenário de previsível descida da inflação, continua a ser uma remuneração mais atraente do que a oferecida pela banca. Só que o problema não é a remuneração dos certificados ser elevada – vale a pena lembrar que, sendo abaixo da inflação, 3,5% é um valor real negativo –, é o que se passa na banca.

A inércia da Autoridade da Concorrência, a despreocupação do Banco de Portugal e uma Caixa Geral de Depósitos que se comporta como um banco privado, fazem com que a banca contribua para as dificuldades sentidas pelos portugueses. Neste contexto, o instrumento mais eficaz para os obrigar a ter uma política concorrencial eram os certificados de aforro. Diferente seria se a CGD, como banco público, não modelasse o seu comportamento pelo conjunto do sector, funcionando como instrumento de defesa do interesse comum. Não precisaria de ser deficitária para isso. Bastaria acompanhar a banca comercial dos restantes países europeus.

Convém não esquecer o que vivemos há dez anos. A crise da dívida pública, que nasceu de uma crise do setor financeiro que todos nós acabámos por apoiar, teve como ponto central a vulnerabilidade do nosso país nos mercados internacionais. A nossa dívida, ao contrário da italiana, encontrava-se maioritariamente em mãos estrangeiras e pagámos cara essa debilidade. Nos últimos tempos conseguimos reverter essa tendência, com um forte contributo dos certificados de aforro. Mesmo que seja marginalmente mais caro o Estado financiar-se dentro de portas, o que nem é o caso, é preciso levar em conta os custos e riscos acrescidos de ter a dívida na mão de grandes investidores internacionais.

Por fim, mas não menos importante, os certificados de aforro são um instrumento reconhecido e fiável, merecendo confiança e preferência de pessoas mais envelhecidas e com menor literacia financeira. Diminuir a remuneração é empurra-las para produtos de maior risco, como já tivemos no passado com o papel comercial do BES ou outros ainda mais obscuros.

Como um dia disse Jorge Sampaio, há “mais vida para lá do Orçamento”. Não era má ideia que um governo da mesma cor política tivesse isso presente.

Está na altura de voltamos a falar da banca. O setor é lesto a pedir apoio do Estado quando está em apuros, atirando para cima dos contribuintes o financiamento das perdas causadas por administradores de olhos nos prémios de curto prazo. E é ainda mais rápido a aproveitar qualquer crise para lucrar muito acima das nossas possibilidades. Como vemos agora, também conta com o Estado para manter lucros recorde à custa do assalto aos clientes e pequenos investidores.»

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