«Estou curioso para saber como o Governo conseguirá garantir que a descida do IVA nos produtos essenciais tenha um efeito diferente do que teve em Espanha, onde os preços não só não desceram como, recentemente, tiveram um novo aumento acentuado, engolindo as perdas do Estado. Ou diferente do efeito que tiveram as descidas do IVA na restauração ou do ISP nos combustíveis. Quando os dogmas são os da ideologia da moda, a negação prática da sua eficácia parece ser indiferente.
Só espero que esta descida não dependa de compromissos de honra de empresas que somaram 675 milhões de euros em coimas da Autoridade da Concorrência por concertação de preços. A julgar pela intemperada arrogância com que reagiram, não há razões para acreditar que estejam para aí viradas. Parece-me que os herdeiros ofendidos estão mais inclinados a colher os frutos políticos dos excessos impreparados do ministro da Economia.
Até ver, a descida de IVA, depois de uma provável primeira descida nos preços, terá o mesmo efeito contra a inflação que estão a ter as subidas das taxas de juro: nenhum. Mesmo que resultasse, o cabaz alimentar essencial, calculado pela DECO, passou de 183 para 230 euros, um aumento de 25,6%. Se viesse a ser refletida no preço final, não me parece que uma quebra de 6% se aproximasse do que é necessário.
DE ONDE VÊM OS AUMENTOS?
Dizem as associações empresariais e as grandes cadeias que, fruto da guerra entre dois dos maiores produtores alimentares do planeta, cereais, carne ou fruta têm subido em toda a Europa, e não apenas em Portugal. É verdade, a questão é que em Portugal sobem ao nível apenas encontrado nos países de Leste, paredes meias com a fronteira ucraniana ou russa. Em dezembro de 2022, os preços alimentares estavam 20% mais caros em Portugal, 15% em Espanha, 13% em Itália e França, 15% na Dinamarca e Bélgica. Apenas a Alemanha, um país onde a fatura energética tem pesado sobremaneira, regista o mesmo valor de Portugal.
O petróleo está ao preço do Natal de 2021, o gás natural de setembro de 2020, e mesmo os preços do trigo estão abaixo dos registados há mais de um ano e os fertilizantes de outubro de 2021, a cair, quase ininterruptamente, desde abril de 2022. Os custos de produção começam a ter as costas largas.
Como se explica neste post, que cita um estudo sobre a inflação e os lucros, os aumentos das margens, estejam eles onde estiverem a acontecer, costumam ser obtidos através da redução de custos, e não pelo aumento de preços. Mas quando os custos afetam um sector inteiro, isso funciona como coordenação para aumentos de preços. O impulso inicial foram os aumentos de preços nas matérias-primas e os constrangimentos na oferta em bens e serviços como os chips e o transporte marítimo. Depois o aumento da energia.
MÉTODO CRUEL
Entre grandes superfícies, transporte e produtores, todos passam a batata quente para o vizinho. É provável que cada um vá picando o seu bocadinho, aproveitando o aumento geral. Até é admissível que os produtores estejam a conquistar algum poder negocial. Uma coisa é certa: o dinheiro não está a ir para os salários dos trabalhadores das grandes superfícies. O acordo assinado com os sindicatos, e que está a ser seguido pela maioria das principais cadeias, garantiu um aumento médio de 4,8%, um valor muitíssimo abaixo da inflação. A perda não é compensável por prémios que, ao contrário da inflação, não ficam para o futuro.
Quanto aos salários em geral, não só não se confirmou, no último ano, o suposto risco de uma espiral inflacionista com esta origem, o disco riscado usado para os conter e aumentar ainda mais a transferência de recursos do trabalho para o capital, como o Banco Central Europeu divulgou um estudo demonstrando que “as margens das empresas, e não os salários, foram o principal motor de subida de preços na Zona Euro no ano passado”. Em Portugal, por cada 10 euros de valor gerado, menos de quatro são salários e quase 5,5 remuneração do capital.
Conhecedora desse documento, a número um do BCE fez um discurso referindo por 14 vezes a necessidade de contenção salarial, ignorando olimpicamente o aumento das margens. Na ata da reunião de fevereiro do BCE a palavra “salários” aparece 52 vezes, enquanto “lucro” e “margens” aparecem uma vez cada, na mesma frase. Dizer que é preciso arrefecer a procura, quando estamos a falar de bens alimentares, é a expressão moderna do “Não há pão? Comam brioches”. Aliás, o BCE pediu aos governos europeus para começarem a preparar o fim do apoio às famílias. É para impor a miséria a ver se a procura de bens essenciais baixa?
Concentrar na diminuição do poder de compra da população a resposta a uma inflação causada pelo aumento da energia e da comida, bens pouco ou nada afetados pelo aumento das taxas de juro, é uma escolha política. O antigo vice-presidente do BCE Vítor Constâncio tem vindo a alertar para o “método cruel e doloroso” como o banco central está a abordar a inflação. “Os lucros estão a ganhar e têm conduzido a inflação, seguindo-se os impostos e só depois os salários", escreveu no Twitter, pouco depois de partilhar dados que mostram como as margens de lucro nos EUA atingiram valores desconhecidos desde o rescaldo da Segunda Guerra Mundial. Robert Reich escreveu: “a inflação que estamos a experimentar não se deve aos ganhos salariais do excessivo poder dos trabalhadores. Deve-se a ganhos de lucro do excessivo poder corporativo. São os lucros, não os salários, que precisam de ser controlados.”
UM PASSO TÍMIDO, MAS CERTO, DO GOVERNO
A resposta são aumentos salariais ao nível da inflação. O Governo só pode começar pelos funcionários públicos e as carreiras que suportam serviços públicos essenciais para o país, travando a perda do rendimento disponível nos últimos anos. Que o Estado dê o exemplo, levando a que os privados vão atrás. Aí, podem seguir o exemplo de gestores e cargos de topo, que se aumentaram em média 9,6%. O que é bom para eles é bom para todos.
Não estamos seguramente a falar da atualização de 1% para trabalhadores do Estado. Ainda assim, é um primeiro passo. Sobretudo graças ao aumento do subsídio de refeição em 15,4%, subindo também a isenção fiscal sobre este subsídio, o que terá efeito também no privado. Assim, os funcionários públicos com menores rendimentos serão mais beneficiados. Com o apoio mensal de 30 euros para famílias mais carenciadas, o aumento do Indexante de Apoios Sociais (IAS) em 8,4% e o aumento do abono de família em 15 euros por criança haverá uma ainda tímida transferência do excedente orçamental para as famílias mais pobres, num movimento correto de alguma redistribuição.
Os mais pobres são punidos por esta crise de forma desproporcionada, porque os produtos que mais aumentam são os alimentares (dos 8,2% de aumento médio de preços face ao mês de fevereiro do ano passado, 4,6 pontos percentuais foram à custa dos bens alimentares e bebidas), que correspondem a uma proporção muito mais significativa dos seus gastos. Qualquer medida regressiva, como descer o IRS que não pagam, aumentaria ainda mais a regressividade da crise. Se esta inflação é regressiva todas as medidas devem ser progressivas para não aumentarem ainda mais a desigualdade. Medidas para a classe média devem estar concentradas, por exemplo, na mitigação aos efeitos do irresponsável aumento das taxas de juro, como o apoio ao pagamento das prestações da casa, que as atinge de forma especialmente dura.
Ao contrário da descida do IVA, aumentos salariais e de apoios sociais vão no caminho certo. Mas os trabalhadores não devem ficar à espera de medidas administrativas do Estado. A sua arma negocial, também no privado, é a força sindical e a greve. Sem isso, viverão cada vez mais de subsídios. Os apoios especiais podem ser importantes, mas não podem continuar a compensar a perda de salário. É insistir num modelo económico e social que premeia a pior moeda na nossa economia. O risco é termos o Estado a dar apoios passageiros para almofadar a descida permanente do salário real.
NÃO É UMA FATALIDADE, É UMA ESCOLHA
Verdades feitas e indesmentíveis como as que nos dizem “a inflação afeta sobretudo os mais pobres e os trabalhadores” não resultam de leis naturais. Resultam de escolhas políticas de quem acha que os preços devem evoluir sem interferência externa ao mercado, mas quando há sinais de que os salários os vão acompanhar, como inevitavelmente acompanhariam quando os custos de quem trabalha aumentam e o desemprego está baixo, começa a agitar com o perigo da “espiral inflacionista”, mesmo sabendo que essa espiral vem de outro lado, onde não quer tocar. A inflação não seria um problema grave para quem trabalha se os seus salários não perdessem valor. Só que o padrão de vida do trabalhador médio da zona do euro caiu 5%, em 2022.
Esta é a primeira grande crise inflacionista sem poder sindical. Os salários sobem abaixo da inflação porque, através da liberalização das leis laborais impostas, entre outros, por alguns dos políticos que hoje dirigem o BCE mascarados de técnicos (como Luis de Guindos ou Christine Lagarde), os trabalhadores ficaram numa posição de crescente fragilidade negocial. E porque, para além dos aumentos cada vez mais irracionais das taxas de juro, as únicas políticas contra a inflação apostam em reduzir consumo (até de bens essenciais) e aumentar o desemprego, com o objetivo de reduzir a pressão nos salários e mantê-los abaixo da inflação.
Não é de agora. Estes momentos são utilizados para acelerar uma transferência de recursos do trabalho para o capital que, na Europa, dura desde a última grande crise inflacionista dos anos 70 – os trabalhadores europeus ficavam com 70% do produto, hoje ficam com 56% - e, em Portugal, pelo menos desde o início deste século, com agravamento acentuado depois de 2010. É isto que tem de mudar. Sem luta, o salário será substituído pela esmola do Estado, quando houver excedente orçamental para isso.»
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