1.4.23

Cálices

 


Cálice raro, decorado com romãs sobre fundo ocre, cerca de 1912.
Ceramista: William Moorcroft.
(Fabricado e vendido por Liberty & Co.)

Daqui.
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A raposa a tomar conta do galinheiro?

 

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27 anos sem Mário Viegas

 


Mário Viegas nasceu em 1948 e morreu, muito novo, em 1 de Abril de 1996.

Fundou companhias de teatro, actuou em vários países, participou em mais de quinze filmes e em duas séries televisivas inesquecíveis: «Palavras Ditas» (1984) e «Palavras Vivas» (1991).

Impossível não recordar a sua leitura do Manifesto Anti-Dantas, de Almada Negreiros:



Ainda actual o Manifesto Anti-Cavaco, lançado por Mário Viegas durante a campanha eleitoral para as legislativas de 1995, em que foi candidato independente na lista da UDP. (Candidatou-se também à Presidência da República.):



E... a nêspera, claro:


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Um “pide” moderno

 


«Este é um artigo inútil. Nada do que aqui está, seja o que escrevi, seja o que “acontece” no que escrevi, muda alguma coisa. Se não achasse que é minimizar uma das figuras mais criativas da literatura, Dom Quixote de la Mancha, o Cavaleiro da Triste Figura, podia usar a classificação comum de “quixotesco”. Mais: não só não muda nada, como vai ser cada vez pior. As mais poderosas forças do mundo, boas, semiboas, más e muito más, vão todas no mesmo sentido e sem controlo. O controlo é do domínio da pura ficção. Quem quer usá-las usa e infelizmente há muita gente a querer usá-las, a começar por aqueles que deviam ter consciência dos seus riscos. Há pouca coisa realmente mais apocalíptica nos dias de hoje do que isto. O que é “isto”?

Imaginemos um “pide” moderno, e há muitos “pides” modernos. Senta-se para o trabalho diante de um conjunto de ecrãs, ligados a várias bases de dados, usando quer programas comuns e motores de busca vulgares, quer especializados. Qualquer serviço pidesco pode hoje comprar, num mercado mais especializado, programas e motores de busca usados por polícias e ladrões, serviços de informação nacionais e internacionais, que procuram não só na superfície da Rede mas também na sua parte “negra”. Eu já os vi a funcionar e garanto-vos que nem imaginam o que encontram, dados e contexto.

O “pide” moderno é jovem, como os últimos recrutamentos da PIDE em vésperas do 25 de Abril, e nem sequer precisa de ser um nerd nem um hacker, mas apenas de saber usar os seus instrumentos, que tem diante dos olhos. A maior parte do que recolhe é legal, qualquer um o pode fazer, mas alguma parte está na fronteira do abuso e outra é mesmo ilegal. Se houvesse uma suspeita fundamentada de crime, podia ser autorizado, por um juiz, o acesso aos metadados ou a escutas, mas eu estou a falar da vigilância sobre as pessoas comuns e não sobre criminosos.

O “pide” moderno começa a registar os meus dados. Sai de casa – horas. Ele sabe onde moro e pode contar o tempo entre a saída e o próximo sinal recebido por causa do pequeno-almoço, a factura. A factura está cheia de informação que o Estado, através do fisco, se arroga de ter: na factura bastava o valor global, mas está muita outra coisa. Está o que comi e bebi, está se tomei o pequeno-almoço sozinho ou acompanhado.

Depois passo por um multibanco, e levanto dinheiro e faço pagamentos. Durante o dia todo, os cartões de crédito registam um rasto de acções que, acompanhado pelas facturas, já permitem saber muitas coisas. Quando Monica Lewinsky comprou uns livros para dar a Clinton, um deles, Vox, de Nicholson Baker, uma ficção em que há uma relação de “sexo telefónico”, isso interessou ao procurador que perseguia Clinton. A livraria recusou-se, e bem, em mais um acto quixotesco, a dizer que títulos de livros tinham sido comprados. Eu podia, como faço quase todos os dias, também ir a uma livraria, e mesmo sem comprar o Vox (que já tenho e li) alguns títulos podem sobressaltar o “pide”, que não é muito de livros, mas pode ir ver os resumos à Rede – por exemplo, o Agente Secreto, de Conrad, levantou-lhe as sobrancelhas tratadas, quando foi a um destes barbeiros tão modernos como o “pide”. Ou uns fanzines anarquistas com títulos bombásticos ou o Mapa ou a Batalha, já para não falar no Avante!. Ele aí ganha o dia, para colmatar a falta de material das redes sociais, em si mesmo uma falta suspeita, de quem não tem Facebook, nem Instagram, nem qualquer outro fluxo de fotografias de almoços, pequenas e grandes fúrias, boatos e calúnias, nem sequer frases crípticas como “que farei quando tudo arde”, suspeita de incendiário que cita um tipo com nome nas ruas Sá de Miranda. Será que ele pensa incendiar alguma coisa na Rua Sá de Miranda? Embaixada, escritório, loja? O “pide” procura na Rede o que é que há na Rua Sá de Miranda de Lisboa, Porto, Coimbra. Que trabalheira, tanta Rua Sá de Miranda. Ou será uma escola secundária, ou será uma pessoa?

Depois, vêm os dados do almoço e do jantar, o que comeu, com quantas pessoas comeu. Uma é suspeito, duas é ainda mais suspeito, três começa a conspiração. A seguir chegam os dados da farmácia e, mais importante ainda, da Via Verde. Onde entrou e onde saiu, quanto tempo demorou. Parou numa área de serviço para ter um encontro, ou para entregar sub-repticiamente um pacote? Acede-se então às câmaras de vigilância. Saiu no Porto, será que a Rua Sá de Miranda onde “tudo arde” é no Porto? Bom, há ali umas instalações universitárias, e perto está o Jardim da Arca de Água e, como ele comprou o Ambientalista Céptico, será que vai envenenar os patos? O “pide” toma nota para posterior investigação. E por aí adiante.

A questão é simples: se houver uma deriva autoritária (e em muitos aspectos estas tecnologias “empurram” para essas derivas), o “pide” moderno não precisa de qualquer lei especial, só acesso. O “pide” lastima-se mentalmente pelo facto de os humanos ainda não terem chips como os cães e passa em revista os mil e um argumentos de eficácia que justificariam os chips. O problema é que os cidadãos comuns também cedem ao comodismo e à facilidade de andarem com a ficha médica e o número fiscal metido no corpo.

Como nos defendemos? Deixando de lado, ir para uma zona sem rede, não usar multibanco nem telefone, não ter conta bancária, etc., etc., e mesmo assim tudo imperfeito, não há defesa possível. Este é o mundo onde nascemos e onde vamos morrer, e nesta matéria é mau, muito mau, destruiu duzentos anos de luta pela privacidade, pela individualidade e por direitos dos cidadãos face ao Estado. Pode tudo ser mitigado, mas de forma pouco eficaz.

O “pide” anotou: atenção, ele está denunciar os nossos métodos, e vai à ficha electrónica e classifica-o como “libertário tecnológico”, partidário do general Ludd, ou um seguidor do Unabomber. Perigoso.»

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31.3.23

Morte medicamente assistida

 


Texto aprovado hoje, pela quarta vez, e pela quarta vez enviado a Belém.
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31.03.1974 – Últimas palmas para Marcelo Caetano

 


Quinze dias antes tinha falhado o golpe das Caldas, três semanas mais tarde terminaria a ditadura. No dia 31 de Março de 1974, teve lugar um Sporting – Benfica que viria a ficar célebre e não só porque os visitantes venceram por 3-5.

Num texto publicado em 1978, MC comenta: «Quando o alto-falante anunciou que eu me achava no camarote principal, a assistência calculada em 80.000 espectadores como que movida por uma mola oculta, levantou-se a tributar-me quente e demorada ovação que a TV transmitiu a todo o Pais. Isso foi interpretado como repúdio por aventuras militares.»

E é verdade – confirmo eu que lá estava. Houve vaias e muitas, sim, mas não na bancada onde eu me encontrava. À minha volta, só o grupo de amigos em que me integrava e, umas filas mais abaixo, Vasco Pulido Valente e Filomena Mónica, assistíamos, perplexos, ao entusiasmo generalizado.

Guardo a memória fotográfica desse momento e tive-o bem presente, no Largo do Carmo, no dia 25 de Abril. Estou certa de que muitos daqueles que nesse dia me rodeavam também tinham estado no estádio de Alvalade. Que tinham então aplaudido Caetano e que bateram palmas quando saiu do Carmo num blindado. As multidões gostam de vencedores, não de vencidos.


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Sejamos irrealistas, exijamos o possível

 


«Quando se concorda com a revolta do povo, ela é democrática. Quando se discorda, o povo polarizou-se. A conveniente tese da polarização deixa a esquerda, que nunca foi tão moderada, num dilema: se se revolta e tem a companhia da extrema-direita oportunista, é sua aliada; se desiste dos seus combates de sempre e os entrega à extrema-direita, ajuda-a. Quase 70% dos franceses estão contra a reforma da Segurança Social imposta por Macron ao Parlamento, no meio de uma crise. Boa parte votou nele, na segunda volta, para evitar a polarização. Até fingiu acreditar que ele passaria a governar em diálogo.

Para falarmos da reforma que pôs a França a ferro em fogo é preciso desmentir um equívoco: os franceses podem reformar-se aos 62 anos, mas só têm a reforma completa, sem penalizações de 5% por ano em falta, aos 67. A França tem uma idade média de reforma efetiva alinhada com a média europeia. A tese é que se tem de trabalhar mais porque se vive mais. A última reforma do sistema francês foi em 2014 e, desde então, a esperança de vida até caiu ligeiramente. Mesmo assim, lá vem outra. No pior cenário, o saldo negativo do sistema francês chegará a 1,9% do PIB em 2070, no melhor, a um saldo positivo de 1,5%. Sem qualquer revolução, basta diversificar as fontes de financiamento. De facto, em 2005, dois trabalhadores financiavam a pensão de um reformado. Hoje, são 1,7. Se esta relação fosse automática, há muito que seria impossível financiar as pensões. É possível graças ao crescimento da produtividade. E seria ainda melhor se o crescimento dos salários lhe fosse proporcional. Os dois problemas europeus são, além do demográfico, a desaceleração da produtividade e a perda relativa do peso do salário na economia. É isto que temos de debater para discutir a sustentabilidade do sistema.

Os sucessivos aumentos da idade da reforma são, eles sim, insustentáveis. Em França, a esperança de vida aumentou, nas décadas de 90 e 2000, três meses por ano e na seguinte apenas um mês por ano. O aumento não será eterno e a idade de vida saudável não acompanha o aumento da esperança de vida. Um sueco pode passar 75% de sua reforma sem invalidez, um francês apenas 50% — 25% os operários. Mas, acima de tudo, com a crescente precariedade, os funcionários públicos e os mais qualificados conseguem trabalhar até mais tarde, os restantes ficam, à primeira crise, demasiado novos para se reformarem e demasiado velhos para se empregarem. Não se reformam mais tarde, substituem a reforma pelo desemprego, subemprego ou apoios sociais. Por isso, em vez de se centrar na idade da reforma, a Finlândia concentrou-se na taxa de emprego dos mais velhos, investindo em formação ao longo da vida.

Certo é que o sistema está condenado se os salários continuarem a perder peso no conjunto da economia. Aí, ou se procuram novas fontes de financiamento — que de qualquer das formas são indispensáveis — ou teremos de trabalhar até morrer. E este é o problema português. Vale a pena ler “A Persistência da Desvalorização do Trabalho e a Urgência da sua Revalorização”, coordenado José Castro Caldas e Maria da Paz Campos Lima. Entre 2010 e 2015, o peso dos salários no PIB caiu de 47% para 44%. Entre 2015 e 2019, recuperou-se um ponto. Com a pandemia as atividades pararam, o PIB caiu a pique e muitos continuaram a receber salário, também graças ao Estado, o que correspondeu a um desvio estatístico. Com a inflação, os salários não estão a acompanhar os preços e regressamos ao ciclo de desvalorização suspenso durante a ‘geringonça’, no sentido inverso ao prometido por António Costa. Uma redução persistente que se baseia na aposta em setores intensivos em trabalho mal remunerado, como o turismo. Salários baixos levam à emigração dos mais qualificados, desperdiçando-se o investimento em formação e agravando-se a crise demográfica, com perda de recursos que paguem as nossas reformas. Só que os salários baixos não resultam de um modelo económico falido. Esse modelo é que resulta dos salários baixos. Exigir, sem pudor, que se trave a persistente desvalorização dos salários não é só imperativo de justiça, é um imperativo patriótico.

Os ingleses construíram o Estado social do pós-guerra com uma dívida superior a 200% do PIB. Quando, em 1936, Leon Blum defendeu as férias pagas, os patrões disseram que causariam “mais prejuízo à indústria do que as destruições da Grande Guerra”, prevendo “a ruína da França”. Foi assim com todos os avanços para os trabalhadores. Também hoje, o modelo de desenvolvimento que despreza os salários ou o insiste no constante aumento da idade da reforma, em vez de procurar formas de financiamento do sistema que reforcem a redistribuição da riqueza, não resultam de inevitabilidades contabilísticas, mas de escolhas políticas. Em 1968 gritava-se “sejamos realistas, exijamos o impossível”. Hoje, para vencer a barragem ideológica que decretou que, quando nunca produzimos tanto, a partilha da prosperidade é uma utopia irresponsável, temos de ser irrealistas apenas para pedir o possível. É o que os franceses estão a fazer. Inspiremo-nos no seu despudor.»

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30.3.23

Mais um candeeiro

 


Candeeiro de chuva de vidro batido e esmaltado, Escola de Nancy, França,1900.
Irmãos Daum.

[Mais informação «técnica» aqui.]


Daqui.
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Para sempre no baú das nossas vidas

 



Morreu José Duarte.
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Lutas salariais desavergonhadas

 

«O Governo anunciou um novo conjunto de medidas de apoio "às famílias mais vulneráveis e às empresas". No que se refere às famílias (vergonhosamente já temos um milhão e setenta mil famílias com direito a esse "excecional" apoio de um euro por dia), são pequeníssimas "esmolas", algumas delas apenas promessas incertas. Sendo uma resposta insuficiente e tardia, ela só existe porque há um crescendo da luta social. Todavia, a necessidade do aumento dos salários continua ausente dos discursos ministeriais e, sem esse aumento, nos setores privado e público, não se resolvem as carências com que os portugueses se debatem.»

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Acordo de cavalheiros: dá cá que logo se vê se dou

 


«Imaginem que Cláudia Azevedo ou Pedro Soares dos Santos assinavam um contrato com os produtores em que se comprometiam a reduzir-lhes um determinado encargo e em contrapartida estes se comprometiam a baixar os preços. Mas esse compromisso não tinha metas ou consequências em caso de incumprimento. Apenas um acordo de cavalheiros onde só um dos lados realmente estaria obrigado a cumprir a sua parte. O que fariam os acionistas? O que aconteceria às ações de uma empresa gerida de tal forma?

Pois foi isto que o primeiro-ministro assinou e, aparentemente, os acionistas, que somos nós, não estão aborrecidos. O compromisso das grandes superfícies fazerem refletir a descida do IVA no preço final não é apenas uma “fezada”. Pode nem sequer ser possível confirmar o seu cumprimento. Se os preços subirem nos próximos 15 dias até podem descer nos 15 dias seguintes sem refletirem a descida do IVA. Ou podem descer daqui a 15 dias e essa queda ser engolida por subidas posteriores ou por descidas que ficam por fazer apesar dos custos diminuírem. É absurda, porque são as grandes superfícies a controlar o preço, a composição desse preço, a manipulação ou não desses preços. Este acordo é vazio de conteúdo. Até o seu cumprimento é difícil de fiscalizar. O Estado tem uma quebra de receita de cerca de 410 milhões de euros à confiança.

Não me deito a adivinhar sobre os efeitos desta descida do IVA. O máximo que posso fazer é recordar o que aconteceu em Espanha, em que no segundo mês de vigência de medida semelhante (faltava-lhe o compromisso de honra) os alimentos subiram 16,6% face ao mesmo mês do ano passado, uma taxa superior aos 15,4% de janeiro e que ultrapassou o pico dos 15,7 % registado em dezembro. Ou o efeito nulo que teve a redução do ISP no preço do combustível - os defensores foram os mesmos, os que resolvem qualquer problema baixando impostos e depois nunca aqui estão para responder pela eficácia da medida. Ou a redução do IVA para a restauração. O que tem acontecido é que as empresas absorvem esse ganho. Não sei se se repetirá. Sei que não há qualquer garantia que assim não será, nem sequer que conseguiremos saber com toda a certeza se o fizeram ou não.

Estão, no entanto, de parabéns as carpideiras pelas grandes superfícies, empresas que vivem em oligopólio e há anos esmagam produtores e pequena concorrência, mas contam com exércitos de estranhos “liberais” para as defender. Era mais uns dias de debate e o Governo assinava um acordo para dar apoios públicos a estas empresas, ajudando-as a ultrapassar as notórias “dificuldades” por que passam, para assim poderem ajudar a baixar os preços. Suspeito que só por preconceito ideológico este governo marxista não o fez, aliás. Talvez venha a subsidiar as casas devolutas, para compensar.»

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29.3.23

Portas

 


Porta com vitrais, Casa Comalat, Barcelona, 1906-1911.
Arquitecto: Salvador Valeri i Pupurull.

[Mais informação sobre a Casa Comalat aqui.]


Daqui.
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Já eu vivi nas duas situações

 

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Tudo muda menos «a conversa do taxista»

 


Viagem de uns dez minutos em que o motorista, português normalíssimo da chamada meia idade, declarou estar indignado por ter acabado de transportar uma senhora que até desculpava o afegão por tudo o que tinha sofrido e pela perturbação mental que a vida lhe terá causado.

Onde ele se veio meter… Eu, que nem gosto de proselitismos inúteis, forcei-o a pôr-se na pele do homem e obriguei-o a responder a tantas perguntas que ele já nem sabia o que dizer! Que não conhecia nem metade do que eu estava a contar, que não ouve notícias, que só tem pena das três criancinhas…

Assim estamos, com uma agravante: isto já NÃO é só conversa de taxistas.
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Um homem afegão matou – chama-se uma oportunidade

 


«Duas mulheres morreram e um homem ficou gravemente ferido na sequência de um esfaqueamento. As vítimas têm nacionalidade portuguesa e o atacante nacionalidade afegã. À hora em que escrevo, desconhecem-se as motivações destes crimes. Pouco se sabe para já. Apenas que o homem costumava ir ao centro ismailita para ter aulas de português e receber apoio alimentar. É pai de três filhos menores e poderá ter um distúrbio mental. Mas o assunto de que vos quero falar terá atualidade independentemente do que vier a ser apurado sobre o atacante e as suas motivações.

O assunto aqui é que – apesar de quase nada se saber – houve quem se atrevesse a comentar os crimes atribuindo-os ao facilitismo das políticas de imigração portuguesas e incentivando ao ódio e à xenofobia.

Sem surpresa, André Ventura destacou-se como uma dessas vozes. Durante a tarde de ontem, declarou na rede social Twitter: “A política de portas abertas sem qualquer controlo deu nisto. O sangue destas vítimas é responsabilidade do criminoso afegão, mas está nas mãos do governo de António Costa.”

O líder de um partido político com representatividade dirigiu-se aos portugueses na sequência de uma tragédia, que causou vítimas, e não dirigiu uma palavra aos seus familiares. De igual modo não lamentou as mortes ou tão-pouco se solidarizou com a comunidade ismailita. Nem ao menos lhe ocorreu elogiar a intervenção dos agentes da PSP que conseguiram imobilizar e deter o homem atingindo-o apenas nas pernas. Este elogio faria todo o sentido atendendo ao historial de Ventura com as forças policiais e sobretudo atendendo ao bom trabalho dos agentes. Mas de nada disto se lembrou o líder do Chega.

Quis apenas tratar como oportunidade uma tragédia. Oportunidade para quê? Para incentivar ao ódio, à xenofobia e à discriminação e para atribuir responsabilidades – precipitadas e totalmente infundadas – a António Costa e ao Governo. Poderíamos falar, sim, das responsabilidades de quem propaga o racismo no cometimento de crimes de ódio racial – como o homicídio de Bruno Candé.

Mas quero aprofundar o sentido em que esta tragédia, ou estes crimes, se afigura como oportunidade para André Ventura.

Neste momento, mais do que difundir uma mensagem de extrema-direita por acreditar nesses ideais, André Ventura aproveita-se dos preconceitos e dos medos de muitos portugueses e diz o que sabe que muitos querem ouvir. Se não tivesse uma audiência pronta para valorizar e aplaudir aquelas palavras, o líder do Chega não as teria dito.

Houve tempos em que políticos de extrema-direita portugueses apregoavam ideários neofascistas, colonialistas e racistas contra a maré. Eram bons tempos. Dizia-se que cá o mal não pegaria; que estávamos imunes ao que assistíamos noutros países. Esses políticos não tinham o talento de André Ventura para dizer o que algumas pessoas querem ouvir. Tinham apenas convicções. Péssimas convicções, mas verdadeiras. Já André Ventura chegou a fazer uma tese de doutoramento de índole humanista em que alertava para os perigos do pânico social (resultante da ameaça de terrorismo) como susceptível de estigmatizar minorias e comunidades.

André Ventura propôs acabar com a escola pública, mas também marchou ao lado dos professores e apresentou-se como seu defensor. Temos assistido. Este oportunismo sem qualquer apego aos princípios, mesmo que sejam maus princípios, é a maior marca que este político deixa.

Estas não são boas notícias.

É que quando lemos o tweet de André Ventura podemos ter a certeza de que – mais do que o seu pensamento sobre o que aconteceu ontem em Lisboa no centro ismailita – ficamos a saber qual é o pensamento de uma parte significativa dos portugueses e que mensagem querem que seja dita, alto e bom som, em pleno espaço público. E isto é assustador. O problema já está numa fase muito avançada. Como um alquimista maligno, Ventura transformou sofrimento português em raiva portuguesa. O mal está feito.

Ventura jamais diria alguma coisa que soubesse que o iria fazer perder eleitorado. Aquele tweet resulta da radiografia que o líder do Chega fez aos portugueses. É o espelho do triste estado a que este país chegou: ser assim é popular e dá votos. É oficial.»

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28.3.23

Tinteiros

 


Tinteiro em prata dourada e esmalte, cerca de 1900. 
Eugene Feuillâtre.

[Penas de pavão em turquesa num fundo azul royal.]


Daqui.
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Ai, Mondego, Mondego…

 



Pois é, Almirante, o Mondego parece mais difícil de gerir do que Pfizer, Moderna e AstraZeneca.
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Um país encravado

 


Vale mesmo muito a pena ler este texto sobre o Cazaquistão.

Não só mas também por ter lá passado uns dias há uma meia dúzia de anos, sou especialmente sensível às notícias, cada fez mais frequentes, sobre a sua importância geoestratégica e às expectativas, ainda um pouco indefinidas e inseguras, quanto ao seu papel num futuro relativamente próximo. Mas esse papel existirá, quanto a isso não parece haver grandes dúvidas.
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Apoios sociais ou a realidade posta a nu

 


«O mínimo que se pode dizer é que a oposição erra o alvo nas suas críticas ao pacote que o Governo anunciou para combater os efeitos da inflação. Talvez por mero maniqueísmo, seguramente com pouco sentido das prioridades, critica o que deve aplaudir e poupa palavras para o que deveria denunciar.

Mas vamos por partes. É muito pouco sensato dizer, por exemplo, como veio dizer o PSD, que as medidas “chegam tarde”. Bastava, aliás, ter dado alguma atenção às declarações de Nazaré da Costa Cabral na passada semana. Vivemos numa conjuntura particularmente instável. À guerra e à inflação, veio agora juntar-se a ameaça de mais uma crise financeira. Para um país como Portugal, com uma dívida pública demasiado elevada e que, nas palavras da presidente do Conselho das Finanças Públicas, não nos “tira completamente do radar dos mercados financeiros”, será assim tão bizarro que se espere pelo resultado da execução orçamental de 2022 para definir, em concreto, a dimensão de apoios públicos para mitigar os efeitos da conjuntura?

Percebo o desnorte da direita com a transfiguração socialista com as “contas certas”, mas convenhamos que o facto de o PS ter acertado o passo em matéria de finanças públicas não deveria ser razão para o PSD se transformar – por mero impulso contraditório – no partido da irresponsabilidade financeira. Fez muito bem Medina ao esperar pelos dados do INE.

É também difícil atacar a opção de devolver às famílias, naquela que é uma conjuntura muito difícil, a folga orçamental gerada em 2022. É certo que se podem e devem criticar alguns aspetos concretos na forma como os apoios são estruturados. Não percebo, por exemplo, porque é que se opta por um aumento dos funcionários públicos ao invés de se escolher um alívio em sede de IRS que possa beneficiar também os trabalhadores do setor privado. Não me parece que os efeitos da inflação se abatam mais sobre uns do que sobre os outros. Também percebo que possa criticar o facto de o Governo, com a sua obsessão propagandística, anunciar uma redução do IVA antes ainda de ter a certeza de conseguir garantir que os efeitos da medida se façam efetivamente sentir nos bolsos de quem precisa. Mas a verdade é que o princípio geral de devolução do excedente orçamental às famílias é difícil de criticar por alguém que o queira apreciar de boa-fé.

Mas o que verdadeiramente espanta não é nada disto. Estamos todos habituados a uma certa tribalização e teatralização da discussão política. O que verdadeiramente espanta é que a oposição, que tanto critica (e nesse particular, muito bem) a política dos “Power points” não se tenha dado ao trabalho de reparar no slide número nove da apresentação de Medina. É que está lá tudo aquilo sobre o que verdadeiramente interessaria refletir: o Governo estima que existam cerca de três milhões de beneficiários dos apoios agora anunciados para as famílias mais vulneráveis. Leu bem. São três milhões.

É esta a realidade que estes apoios põem a nu e é esta realidade que importa discutir. Há três milhões de portugueses que o próprio Governo, num descuido de honesta candura, reconhece como “vulneráveis”. Eu traduzo. Há três milhões de portugueses (sensivelmente um terço de todos nós) que precisam da ajuda do Estado para fazer a sua vida com um mínimo de dignidade. Seja porque deixaram de conseguir pagar a renda da casa, seja porque não conseguem já juntar o suficiente para alimentar as suas famílias. Ora, a constatação deste facto não é senão a constatação do estrepitoso falhanço do nosso modelo de desenvolvimento económico e social. Mais do que apoios (que ninguém discute na atual conjuntura), estes portugueses precisariam de liberdade, autonomia e de independência. Precisariam, mereceriam viver num país capaz de gerar a riqueza que os dispensasse da misericórdia de um Estado cada vez mais disfuncional na hora de atender, com um mínimo de decência, às suas necessidades mais prementes.

Ninguém contesta, reitero, a necessidade de acudir, nesta emergência, às consequências da presente crise. Mas, quando um terço (!) da população de um país perde independência e autonomia para controlar o seu próprio destino, não terá chegado a hora de olhar, de uma vez por todas, sobretudo para as causas de tamanho falhanço coletivo?»

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Professores em Bruxelas

 

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27.3.23

Prédios

 


Vitrais e candeeiros de rua, Casa Cama i Escurra, Barcelona, 1902.
Arquitecto: Francesc Berenguer i Mestres.


Daqui.
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Paris: não dá para imaginar

 


Só vendo.
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Inflação: a resposta está nos salários

 


«Estou curioso para saber como o Governo conseguirá garantir que a descida do IVA nos produtos essenciais tenha um efeito diferente do que teve em Espanha, onde os preços não só não desceram como, recentemente, tiveram um novo aumento acentuado, engolindo as perdas do Estado. Ou diferente do efeito que tiveram as descidas do IVA na restauração ou do ISP nos combustíveis. Quando os dogmas são os da ideologia da moda, a negação prática da sua eficácia parece ser indiferente.

Só espero que esta descida não dependa de compromissos de honra de empresas que somaram 675 milhões de euros em coimas da Autoridade da Concorrência por concertação de preços. A julgar pela intemperada arrogância com que reagiram, não há razões para acreditar que estejam para aí viradas. Parece-me que os herdeiros ofendidos estão mais inclinados a colher os frutos políticos dos excessos impreparados do ministro da Economia.

Até ver, a descida de IVA, depois de uma provável primeira descida nos preços, terá o mesmo efeito contra a inflação que estão a ter as subidas das taxas de juro: nenhum. Mesmo que resultasse, o cabaz alimentar essencial, calculado pela DECO, passou de 183 para 230 euros, um aumento de 25,6%. Se viesse a ser refletida no preço final, não me parece que uma quebra de 6% se aproximasse do que é necessário.

DE ONDE VÊM OS AUMENTOS?

Dizem as associações empresariais e as grandes cadeias que, fruto da guerra entre dois dos maiores produtores alimentares do planeta, cereais, carne ou fruta têm subido em toda a Europa, e não apenas em Portugal. É verdade, a questão é que em Portugal sobem ao nível apenas encontrado nos países de Leste, paredes meias com a fronteira ucraniana ou russa. Em dezembro de 2022, os preços alimentares estavam 20% mais caros em Portugal, 15% em Espanha, 13% em Itália e França, 15% na Dinamarca e Bélgica. Apenas a Alemanha, um país onde a fatura energética tem pesado sobremaneira, regista o mesmo valor de Portugal.

O petróleo está ao preço do Natal de 2021, o gás natural de setembro de 2020, e mesmo os preços do trigo estão abaixo dos registados há mais de um ano e os fertilizantes de outubro de 2021, a cair, quase ininterruptamente, desde abril de 2022. Os custos de produção começam a ter as costas largas.

Como se explica neste post, que cita um estudo sobre a inflação e os lucros, os aumentos das margens, estejam eles onde estiverem a acontecer, costumam ser obtidos através da redução de custos, e não pelo aumento de preços. Mas quando os custos afetam um sector inteiro, isso funciona como coordenação para aumentos de preços. O impulso inicial foram os aumentos de preços nas matérias-primas e os constrangimentos na oferta em bens e serviços como os chips e o transporte marítimo. Depois o aumento da energia.

MÉTODO CRUEL

Entre grandes superfícies, transporte e produtores, todos passam a batata quente para o vizinho. É provável que cada um vá picando o seu bocadinho, aproveitando o aumento geral. Até é admissível que os produtores estejam a conquistar algum poder negocial. Uma coisa é certa: o dinheiro não está a ir para os salários dos trabalhadores das grandes superfícies. O acordo assinado com os sindicatos, e que está a ser seguido pela maioria das principais cadeias, garantiu um aumento médio de 4,8%, um valor muitíssimo abaixo da inflação. A perda não é compensável por prémios que, ao contrário da inflação, não ficam para o futuro.

Quanto aos salários em geral, não só não se confirmou, no último ano, o suposto risco de uma espiral inflacionista com esta origem, o disco riscado usado para os conter e aumentar ainda mais a transferência de recursos do trabalho para o capital, como o Banco Central Europeu divulgou um estudo demonstrando que “as margens das empresas, e não os salários, foram o principal motor de subida de preços na Zona Euro no ano passado”. Em Portugal, por cada 10 euros de valor gerado, menos de quatro são salários e quase 5,5 remuneração do capital.

Conhecedora desse documento, a número um do BCE fez um discurso referindo por 14 vezes a necessidade de contenção salarial, ignorando olimpicamente o aumento das margens. Na ata da reunião de fevereiro do BCE a palavra “salários” aparece 52 vezes, enquanto “lucro” e “margens” aparecem uma vez cada, na mesma frase. Dizer que é preciso arrefecer a procura, quando estamos a falar de bens alimentares, é a expressão moderna do “Não há pão? Comam brioches”. Aliás, o BCE pediu aos governos europeus para começarem a preparar o fim do apoio às famílias. É para impor a miséria a ver se a procura de bens essenciais baixa?

Concentrar na diminuição do poder de compra da população a resposta a uma inflação causada pelo aumento da energia e da comida, bens pouco ou nada afetados pelo aumento das taxas de juro, é uma escolha política. O antigo vice-presidente do BCE Vítor Constâncio tem vindo a alertar para o “método cruel e doloroso” como o banco central está a abordar a inflação. “Os lucros estão a ganhar e têm conduzido a inflação, seguindo-se os impostos e só depois os salários", escreveu no Twitter, pouco depois de partilhar dados que mostram como as margens de lucro nos EUA atingiram valores desconhecidos desde o rescaldo da Segunda Guerra Mundial. Robert Reich escreveu: “a inflação que estamos a experimentar não se deve aos ganhos salariais do excessivo poder dos trabalhadores. Deve-se a ganhos de lucro do excessivo poder corporativo. São os lucros, não os salários, que precisam de ser controlados.”

UM PASSO TÍMIDO, MAS CERTO, DO GOVERNO

A resposta são aumentos salariais ao nível da inflação. O Governo só pode começar pelos funcionários públicos e as carreiras que suportam serviços públicos essenciais para o país, travando a perda do rendimento disponível nos últimos anos. Que o Estado dê o exemplo, levando a que os privados vão atrás. Aí, podem seguir o exemplo de gestores e cargos de topo, que se aumentaram em média 9,6%. O que é bom para eles é bom para todos.

Não estamos seguramente a falar da atualização de 1% para trabalhadores do Estado. Ainda assim, é um primeiro passo. Sobretudo graças ao aumento do subsídio de refeição em 15,4%, subindo também a isenção fiscal sobre este subsídio, o que terá efeito também no privado. Assim, os funcionários públicos com menores rendimentos serão mais beneficiados. Com o apoio mensal de 30 euros para famílias mais carenciadas, o aumento do Indexante de Apoios Sociais (IAS) em 8,4% e o aumento do abono de família em 15 euros por criança haverá uma ainda tímida transferência do excedente orçamental para as famílias mais pobres, num movimento correto de alguma redistribuição.

Os mais pobres são punidos por esta crise de forma desproporcionada, porque os produtos que mais aumentam são os alimentares (dos 8,2% de aumento médio de preços face ao mês de fevereiro do ano passado, 4,6 pontos percentuais foram à custa dos bens alimentares e bebidas), que correspondem a uma proporção muito mais significativa dos seus gastos. Qualquer medida regressiva, como descer o IRS que não pagam, aumentaria ainda mais a regressividade da crise. Se esta inflação é regressiva todas as medidas devem ser progressivas para não aumentarem ainda mais a desigualdade. Medidas para a classe média devem estar concentradas, por exemplo, na mitigação aos efeitos do irresponsável aumento das taxas de juro, como o apoio ao pagamento das prestações da casa, que as atinge de forma especialmente dura.

Ao contrário da descida do IVA, aumentos salariais e de apoios sociais vão no caminho certo. Mas os trabalhadores não devem ficar à espera de medidas administrativas do Estado. A sua arma negocial, também no privado, é a força sindical e a greve. Sem isso, viverão cada vez mais de subsídios. Os apoios especiais podem ser importantes, mas não podem continuar a compensar a perda de salário. É insistir num modelo económico e social que premeia a pior moeda na nossa economia. O risco é termos o Estado a dar apoios passageiros para almofadar a descida permanente do salário real.

NÃO É UMA FATALIDADE, É UMA ESCOLHA

Verdades feitas e indesmentíveis como as que nos dizem “a inflação afeta sobretudo os mais pobres e os trabalhadores” não resultam de leis naturais. Resultam de escolhas políticas de quem acha que os preços devem evoluir sem interferência externa ao mercado, mas quando há sinais de que os salários os vão acompanhar, como inevitavelmente acompanhariam quando os custos de quem trabalha aumentam e o desemprego está baixo, começa a agitar com o perigo da “espiral inflacionista”, mesmo sabendo que essa espiral vem de outro lado, onde não quer tocar. A inflação não seria um problema grave para quem trabalha se os seus salários não perdessem valor. Só que o padrão de vida do trabalhador médio da zona do euro caiu 5%, em 2022.

Esta é a primeira grande crise inflacionista sem poder sindical. Os salários sobem abaixo da inflação porque, através da liberalização das leis laborais impostas, entre outros, por alguns dos políticos que hoje dirigem o BCE mascarados de técnicos (como Luis de Guindos ou Christine Lagarde), os trabalhadores ficaram numa posição de crescente fragilidade negocial. E porque, para além dos aumentos cada vez mais irracionais das taxas de juro, as únicas políticas contra a inflação apostam em reduzir consumo (até de bens essenciais) e aumentar o desemprego, com o objetivo de reduzir a pressão nos salários e mantê-los abaixo da inflação.

Não é de agora. Estes momentos são utilizados para acelerar uma transferência de recursos do trabalho para o capital que, na Europa, dura desde a última grande crise inflacionista dos anos 70 – os trabalhadores europeus ficavam com 70% do produto, hoje ficam com 56% - e, em Portugal, pelo menos desde o início deste século, com agravamento acentuado depois de 2010. É isto que tem de mudar. Sem luta, o salário será substituído pela esmola do Estado, quando houver excedente orçamental para isso.»

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Francisco new look?

 


Não, não: apenas uma imagem criada por Inteligência Artificial.
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26.3.23

Licores

 


Conjunto Arte Nova de jarro, copos de licor e bandeja, cerca de 1900-1905.
WMF / Orivit. .


Daqui.
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E assim foi

 


Já arrulharam de felicidade.
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É isto

 

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A roupa nova do imperador

 


«Uma vez fui a Vizela levar um banho de multidão. A campanha do PPM estava a correr mal. Tinha havido uma conferência de imprensa em que o único jornalista que compareceu — um estagiário muito bem-educado — tinha de fazer perguntas aos cinco membros da mesa. Estes faziam esticar as respostas, até porque estava lá a televisão e tudo.

“Vamos a Vizela, que tu precisas é de um banho de multidão!”, disse o meu amigo Luís, explicando que éramos o único partido a defender a elevação de Vizela a concelho e que os vizelenses, lendariamente exuberantes, queriam mostrar a gratidão.

Quando lá chegámos, não estava lá ninguém. Fomos à procura de alguém que nos explicasse o que se tinha passado, mas também não tivemos sorte. Voltámos para Lisboa sem ter tomado banho. Vizela tinha falado. Pouco tempo depois, quando fomos a votos, Portugal inteiro deu-lhe razão.

Foi por isso com um estranho alívio que tomei conhecimento da estátua que Vizela ergueu ao homem que conseguiu mesmo elevá-la a concelho: António Guterres. Investiram-se 400 quilos de bronze para elevar o Engenheiro a dois metros de altura, ao câmbio de 200 quilos por metro.

Não me detive no pormenor dos sapatinhos, subtilmente abertos ao diálogo. Embora curtos de biqueira, ostentam chorosos atacadores, quais choupos à beira dum rio seco.

Veja-se como fazem questão de se distanciar das bainhas das calças, recuadas nas barrigas das brônzeas pernas, ao estilo pour fuir la police que as jovens veraneantes portuguesas conhecem como “corsários”. Tão-pouco me deixei deslumbrar pelo mullet azul-cobalto com que o estadista desafia os padrões convencionais da beleza masculina. Mas aprendi uma coisa: com os inimigos e os gozões podemos nós bem. Temos é de ter cuidado com os homenageantes.

Nada é mais mortífero do que aquilo que é feito com boa vontade. Os heróis com pés de barro não são nada, comparados com os que foram enaltecidos com pés de bronze.

Que mais ninguém se meta com Vizela!»

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