3.8.24

Não temos cá disto (11)

 


Wat Phra That Doi Suthep, Chiang Mai, Tailândia, 2012.

É um dos templos budistas mais importantes do Norte da Tailândia, que começou a ser construído em 1386 no alto de uma montanha, a pedido do Rei Kuena.

Conta a lenda que esse rei tinha uma relíquia de Buda sem saber onde a guardar. Atou-a a um elefante e esperou para ver onde ele a colocava. O elefante subiu a uma montanha, ajoelhou-se e morreu. O rei decidiu então que o templo fosse construído nesse lugar.

Imane Khelif

 


A saga que invadiu as redes sociais sobre o combate entre a pugilista argelina e a italiana Angela Carini continua a ter uma tal extensão que já deve ter chegado aos deuses do Olimpo.

Precisamente por se tratar de um problema complexo, e pouco conhecido dos simples mortais, esperava-se calma, contensão, procura de alguma informação e até silêncio. Foi o que tentei fazer e ainda nem percebi tudo.

Mas não: armadilharam-se as espingardas com agressividade e vi várias dezenas de textos, e de comentários, em que é afirmado, em resumo, que Imane era um homem e que o combate tinha sido injusto. Isto mesmo por quem dizia nada saber sobre o tema e até nem ter lido acerca do mesmo. Quase todas as tentativas de esclarecimento falhavam.

Posso estar enganada, mas creio que não: há pouco tempo (dois ou três anos?), tudo era bem diferente. Discutia-se acaloradamente, mas sem maldade. Maldade, sim – pura e dura – é o que agora parece ter entrado para ficar. Entre os presentes e sobre ausentes.

03.08.1968 – and Pardon my French

 


Medalhas sem pódio

 


«A catarse coletiva há de fazer-se no final, mas podemos desde já antever uma avaliação crítica, ancorada nos afastamentos prematuros de atletas em quem se depositavam grandes esperanças. Portugal corre o risco de ficar aquém das metas nos Jogos Olímpicos. É verdade que ainda temos Iuri Leitão no ciclismo, o sempiterno Fernando Pimenta na canoagem e Pedro Pichardo no atletismo para nos fazerem sonhar com uma prestação, se não melhor, pelo menos equivalente a Tóquio 2020 (quatro medalhas e 15 diplomas, a bitola do Comité Olímpico e do Governo), mas importa olhar para o que foram dizendo, por estes dias, os nossos atletas afastados: deram tudo (disso ninguém pode duvidar), mas tudo não foi suficiente.

Os Jogos Olímpicos vivem de resultados. E, por mais injusto que seja resumir anos de treino, dedicação e sacrifício a uma prestação mal conseguida, é essa a dura realidade. São os desempenhos, e as medalhas, que ficam para a história, não a abnegação pessoal ou as frustrações individuais.

Andamos há décadas a carpir mágoas e a culpar o futebol por secar tudo à volta. Mas não podemos ignorar, como bem notava Luís Alves Monteiro, presidente da Associação dos Atletas Olímpicos de Portugal, que ficamos muito mal na fotografia quando nos comparamos com países idênticos: desde que participa nos Jogos, Portugal ganhou 28 medalhas; a Bélgica 157; a Hungria e a Suécia 500 e a Bulgária mais de 90. O efeito eucalipto do futebol (que é evidente) não desculpa tudo.

Há razões estruturais que explicam este desempenho, mas num país onde o associativismo desportivo é forte e onde a disponibilidade dos miúdos para praticarem diferentes modalidades é notória, não podemos deixar de ficar frustrados. Não com os atletas, que esses, olhando para as condições em que treinam e se formam, são medalhados que não carecem de pódio, mas com a forma como encaramos o desporto nas bases. Na escola, nas comunidades. Traduzindo, a longo prazo, a aposta em infraestruturas num esforço contínuo para privilegiar, de facto, os bons atletas, não os transformando em super-heróis ocasionais que têm de resistir a tudo e, no final, ainda ficarem obrigados a embelezar o medalheiro da pátria. Sem estratégia e foco não há medalhas. Sem desportistas motivados e orientados não há milagres. Já só faltam quatro anos para voltarmos a ter esta discussão.»


Sim, porquê?

 


2.8.24

Não temos cá disto (10)

 


Pagode Shwedagon. Yangon (Rangum), Birmânia, 2009.

Tem 98 metros de altura, está situado no principal centro religioso da Birmânia, numa plataforma em mármore de 5,6 mil hectares. É muito difícil dar uma ideia do que se trata, entre o kitsch (quando lé entrei, senti-me numa Disneylândia do budismo) e o muito belo e único.

O templo principal está rodeado por 72 edifícios dos mais variados tipos, incluindo quatro grandes templos que apontam para os pontos cardeais. A base do pagode principal é feita de tijolos cobertos com milhares de placas de ouro.

Ao fim de algumas horas, a verdade é que se sai estranhamente esmagado por tanta grandiosidade.

Zeca, 95

 


Zeca Afonso nasceu em 02.08.1929. Porque tudo já foi dito sobre um dos nossos maiores, repesco, em jeito de homenagem, uma bela crónica de Manuel António Pina:

Vampiros e eunucos

«Há 24 anos, feitos ontem, morreu José Afonso. Entretanto, vindos "em bandos, com pés de veludo", os vampiros foram progressivamente ocupando todos os lugares de esperança inaugurados em 1974, e hoje (basta olhar em volta) os "mordomos do universo todo/ senhores à força, mandadores sem lei", enchem de novo "as tulhas, bebem vinho novo" e "dançam a ronda no pinhal do rei", tendo, em tempos afrontosamente desiguais, ganho inaceitável literalidade o refrão "eles comem tudo, eles comem tudo/ eles comem tudo e não deixam nada".

Talvez, mais do que legisladores, artistas como José Afonso sejam, convocando Pound, "antenas de raça". Ou talvez apenas olhem com olhos mais transparentes e mais fundos. Ou então talvez a sua voz coincida com a voz colectiva por transportar alguma espécie singular de verdade. Pois, completando Novalis, também o mais verdadeiro é necessariamente mais poético.

O certo é que a "fauna hipernutrida" de "parasitas do sangue alheio" que José Afonso entreviu na sociedade portuguesa de há mais de meio século está aí de novo, nem sequer com diferentes vestes; se é que alguma vez os seus vultos deixaram de estar "pousa[dos] nos prédios, pousa[dos] nas calçadas". E, com ela, o cortejo venal dos "eunucos" que "em vénias malabares à luz do dia/ lambuzam da saliva os maiorais".

Lembrar hoje José Afonso pode ser, mais do que um ritual melancólico, um gesto de fidelidade e inconformismo.»

Jornal de Notícias, 24.02.2011

E o país vai bem, com a cabeça entre as orelhas

 


«Crescimento das receitas leva empresas cotadas em Bolsa a bater todos os recordes nos primeiros seis meses. Cinco maiores bancos do país somaram lucro de €2,6 mil milhões.»

Expresso, 02.08.2024

Ministra da Saúde: o conflito e a mentira como fuga

 


«Ainda antes de ser ministra, Ana Paula Martins ficou conhecida pelo estrondo com que se demitiu da administração do Hospital de Santa Maria, menos de um ano depois de tomar posse. A relação conflituosa com todos os que a rodeavam foi a marca que deixou no maior hospital do país. Quando tomou posse como ministra, disse e escrevi que isso poderia vir a ser motivo de preocupação para Montenegro. Não foi por especial clarividência, mas porque todos os dados permitiam traçar o perfil que se confirmou plenamente em apenas três meses. O oposto ao talento diplomático do ministro da Educação, numa área também complexa, mesmo que dele discorde profundamente.

Para perceber o que se está a passar naquele ministério basta revistar rutura de Ana Paula Martins com os obstetras de Santa Maria, que escreveram uma carta objetando a transferência deste serviço para o São Francisco Xavier, e cujo diretor clínico falava em “demissões por razões políticas”, a propósito das exonerações levadas a cabo pela administração hospitalar.

O estilo confirmou-se com a demissão de Fernando Araújo, inevitável depois da ministra fazer saber, pela imprensa, que a Direção Excutiva do SNS tinha 60 dias para apresentar um “relatório da atividade exigido pela tutela”. Voltou a confirmar-se quando acusou de “liderança fraca” as administrações dos hospitais, acusações que corrigiu pouco depois, dizendo que estava a criticar “toda a cadeia de liderança” do SNS – pior a emenda que o soneto. Ana Paula Martins é um automobilista em contramão que se vê como exceção à incompetência que a rodeia.

Na responsabilização dos outros, a ministra limita-se a continuar o que vem sendo a linha de pensamento do PSD na área da saúde: o SNS é mal liderado em todas as cadeias da sua estrutura e a solução é entregar o que se pode aos privados, que estes se encarregam de fazer melhor. Pouco importa que os médicos sejam os mesmos, que existam abundantes exemplos as mostrar que os casos mais complicados são remetidos do privado para o público, ou que os seguros de saúde, representando 40% do mercado, só respondam por 5% da despesa de saúde. Não deixa de ser sintomático, aliás, que no plano de emergência apresentado pelo governo não se fale na valorização e estabilidade das carreiras no SNS, não espantando por isso o início das greves dos médicos, como estão já a ter lugar.

Tendência para a mentira e a omissão

Para lá da tendência para o conflito, Ana Paula Martins tem uma relação tortuosa com a verdade, sendo desmentida por documentos apresentados publicamente, tanto no caso do INEM como da Direção Executiva.

O primeiro caso foi a divulgação de números falsos sobre doentes oncológicos a aguardar cirurgia. A novela que escreveu para o INEM, com a administração cessante a demitir-se por causa da incapacidade em renovar os contratos com os helicópteros de emergência, também é exemplar. Ficou provado por emails entregues no Parlamento que, durante meses, a direção pediu o reforço da dotação para abrir um novo concurso, depois do anterior ter sido anulado por todas as empresas apresentaram valores acima do estipulado. Como é evidente, o reforço do investimento exige decisão da tutela e isso ficou claro quando a nova direção, já escolhida por Ana Paula Martins, se demitiu uma semana depois, confirmando as palavras da anterior.

Os contantes desmentidos ao que Ana Paula Martins vai dizendo levaram o governo a optar por esconder a informação. Foi isso que fez com as urgências encerradas, numa tentativa de esconder que a situação está a piorar, mesmo depois da entrada em vigor do “plano de emergência”. O mesmo com a produção dos hospitais. Perante as perguntas do PS no Parlamento, o governo lá foi obrigado a dizer o que se passava e os números de junho deste ano são simples de perceber: face ao mesmo período do ano, as urgências obstétricas fechadas aumentam 40% face a 2023. O que parece ter caído a pique são as notícias e diretos sobre o tema.

A fama que vem de longe

As mentiras de Ana Paula Martins vêm de longe. A sua demissão da presidência do Conselho de Administração de Santa Maria aconteceu já depois de Marcelo Rebelo de Sousa anunciar eleições legislativas antecipadas para março. Nas notícias e comentários que ocuparam dias inteiros a falar sobre “o caos no SNS”, poucos perderam tempo para reparar que, antes de assumir o cargo, Ana Paula Martins tinha sido vice-presidente do PSD. O seu nome já era falado para ministra da Saúde e as mal-amanhadas razões para a sua demissão só reforçaram a ideia da motivação política.

Na origem da decisão, soube-se à altura, estava a sua objeção ao financiamento das Unidades Locais de Saúde com hospitais universitários, como é o caso de Santa Maria. A crítica era que estas unidades, com custos acrescidos da exigente formação médica nas universidades, recebiam o mesmo valor que todas as outras Unidades Locais de Saúde. Uma informação falsa, como se constata pelo relatório produzido por Fernando Araújo em resposta ao pedido do Ministério, e onde se percebe que “as ULS com hospitais universitários (São João e Santo António, no Porto, Coimbra, Santa Maria e São José, em Lisboa) recebem €1892 anuais por capita e as restantes €948. No caso do Santa Maria, o valor total fica acima dos €680 milhões”.

O que aconteceu com o diretor Executivo do SNS, um homem consensualmente competente, com toda a classe de administradores hospitalares e com dois diretores do INEM mostra que a personalidade conflituosa de Ana Paula Martins, já evidente quando dirigia o Hospital de Santa Maria, é tóxica num setor em dificuldades e junto de uma classe descontente. A sua tendência para mentira e omissão, foram evidentes nas razões apontadas para a sua demissão do Santa Maria, quando já se sabia candidata a ministra, na novela sobre os contratos com os helicópteros de emergência, nos números que divulgou das operações de oncologia e na tentativa de esconder quais eram as urgências fechadas.

O embate com anos de demagogia

Mas nada disto é o fundamental. O fundamental ultrapassa Ana Paula Martins. É a incapacidade de cumprir as expectativas criadas pelo PSD depois de anos a alimentar uma narrativa simplista e demagógica sobre o SNS.

A ideia de que um “plano de emergência” ia resolver debilidades do SNS através do reforço dos protocolos com os hospitais privados era infantil. Em primeiro lugar, porque as novas regras criadas pelo atual governo estão a atrasar a contratação de novos médicos, com concursos atrasados e métodos de seleção mais complexos e morosos. “Nivelou-se por baixo”, garante o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, Nuno Jacinto.

Depois, porque o constrangimento de profissionais também afeta os privados, nomeadamente na obstetrícia, mesmo que estes não precisem de cumprir os números mínimos decidido pela Ordem dos Médicos para as urgências “unilateralmente” e sem competência para tal de acordo com a PGR. A resposta do anterior bastonário, agora deputado do PSD, foi uma ameaça pouco velada: os hospitais são livres de seguir ou não o regulamento, “sendo que a responsabilidade será sempre dos hospitais se alguma coisa correr menos bem”.

Sempre falando do preconceito ideológico dos outros, a AD construiu, nos últimos anos, um discurso estritamente ideológico (quando não tem motivações piores) que encontra no privado todas as soluções para o SNS. Perante a complexidade dos problemas, restam duas hipóteses: mentir ou culpar outros. São as duas coisas a que esta ministra verdadeiramente se dedica.»


1.8.24

Não temos cá disto (9)

 


Dunas de Sossusvlei, deserto da Namíbia, 2007. 

São consideradas das mais altas dunas de areia do mundo, chegam a ultrapassar 300 metros de altura. Fazem parte do "Mar de Areia da Namíbia" (Namib Sand Sea).

Andei por lá uns dias, tê-las sobrevoado num pequeno avião é inesquecível (imagem possível neste «post»), percorrê-las numa carripana também, «contemplar» a duna 45, que dizem ser a mais fotografada do mundo, fica inevitavelmente registado.

Nunca tinha andado por nenhum deserto e, talvez por isso, esta experiência marcou-me bastante. Fui mais tarde ao de Atacama, mas é um outro mundo também esmagador.

Tomara

 




Paris, com ou sem Jogos

 



Bloco de notas para a época de banhos do Governo e da oposição

 


«Na sua merecida ida a banhos, o primeiro-ministro e o líder da oposição levam como caderno de encargos a resposta a uma pergunta incontornável: por que razão continuam colados nas sondagens depois de tanto se empenharem em ver quem dá mais em reduções de impostos, aumentos ou cortes de portagens aos portugueses? O país político cristalizou-se numa espécie de reticências. Caiu na armadilha do compasso de espera. As mãos largas para abrir os cordões à bolsa para calar protestos, seduzir corporações e apaziguar a tensão política tornaram-se regra. Com a folga orçamental deixada generosamente pelo anterior Governo, o desleixo e o empate não são o fim do mundo. Mas exigem reflexão. Felizmente, a receita não os premeia. O empate das sondagens é uma forma subliminar de os portugueses manifestarem o seu desconforto pela hegemonia da política partidária sobre a política do interesse público.

As férias chegam no exacto momento em que o duelo começava a ficar indecoroso. Depois da batalha dos anúncios, ou das aprovações de medidas como o IRS e a isenção das Scut, a guerra das mãos largas projectava-se já para o próximo Orçamento. O campo de batalha definido, o da “negociação”, não passa de um engodo. Já percebemos o que o Governo quer disputar nesse terreno: a exclusividade de ser bom para tudo o que mexe. Como sabemos o que quer o PS: aparecer como um paizinho bondoso, a quem o bom povo possa agradecer um aumento ou um subsídio. Haverá na dita “negociação” alguma coisa politicamente crucial, uma reforma, uma visão, um desígnio? Se há, não se consegue ver.

O que até agora se tem passado resume-se a um simples princípio: a AD e o PS estão concentrados em olhar para os interesses do seu umbigo. O país não passa de um cenário vago. Para muitos, os que analisam a vida pública como uma partida de xadrez, não há alternativas. Quando em causa está um Governo frágil e uma oposição forte, abre-se um parêntesis no qual uns e outros lutam pela hegemonia. Tudo bem, é a democracia a funcionar. O problema, porém, não está no modo como Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos se digladiam: está na substância que usam, esse velho doping da dádiva, do regabofe da distribuição a tudo e todos apenas porque há dinheiro no cofre.

O Governo de Montenegro é, nesta perspectiva, como a Rússia vista por Churchill: “Um enigma embrulhado num mistério dentro de um enigma.” Sabe-se da sua visão em favor da iniciativa privada, do estímulo fiscal às empresas ou dos jovens. Desconhece-se tudo o resto. Tornou-se um balcão de atendimento de reclamações. Até agora, dedicou-se a comprar estabilidade, pagando pelo silêncio das corporações. O seu elenco é um luxo se comparado com a manta de retalhos em que se transformaram os últimos governos de António Costa, mas isto de pouco serve. Aqui e ali, como na Educação, na Economia ou na Coesão, vislumbram-se sinais de quem quer governar a sério. Mas onde está uma visão abrangente, um programa, uma ideia de país?

Nota-se por ali o instinto de sobrevivência natural num governo minoritário, uma vontade de mostrar serviço, um desejo de ser amado, uma preocupação em cortar cerce qualquer foco de desestabilização. Não se detecta, pelo contrário, qualquer empenho em tomar medidas que vão para lá da emissão do cheque, em ousar ideias com impacto a longo prazo. Está algures entre o novo-rico desregrado e a corporação de bombeiros sempre pronta a apagar fogos. Não se trata seguramente de um Governo. Entre 1985 e 1987, o Governo minoritário de Cavaco Silva lançou as bases do planeamento e do ordenamento do território, a nova geração de políticas de ambiente, os prenúncios das privatizações, da moderna política de ciência ou a nova geração de políticas autárquicas. Foi premiado com uma vitória de 50,2% nas eleições que se seguiram.

Infelizmente, o tacticismo de matriz eleitoralista do Governo não encontra no PS um antídoto eficaz. Os socialistas caíram no ardil de uma parte do comentário político, sempre disposto a transformar o debate público numa arena de boxe, e entraram no jogo do ombro a ombro. Se o Governo quer "x" reduções no IRS, eles querem "x" mais "y"; se Montenegro pensa nos jovens, Pedro Nuno Santos ataca com a extinção de portagens nas Scut. O que se prenuncia nas “negociações” sobre o Orçamento é, está escrito, um leilão de dádivas, não uma definição de prioridades. Como o PSD, o PS caiu na tentação de acreditar que o que importa é ser bonzinho, é não escolher e não priorizar, é não afrontar interesses ou reivindicações, é dar tudo a todos na esperança de semear para colher uma votação expressiva quando houver eleições. Como Luís Montenegro, Pedro Nuno Santos ainda acredita que o eleitorado português permanece na fase da infância, o tempo em que as crianças se calam com um rebuçado.

É por isso que, passados quatro meses desde o empate das legislativas, os dois partidos continuam empatados. Com esta gestão casuística, ancorada no curto prazo, que eleitor do PS ou do PSD tem razões para mudar de campo? Que motivos têm os descontentes do Chega para reconsiderar? Com a disputa entre um e outro para ver quem mais prebendas distribui, como esperam que um eleitorado que deu uma maioria ao campeão da austeridade, António Costa de seu nome, acredite que o país e o mundo mudaram assim tão radicalmente de um ano para o outro? Como é possível entender que, depois de tanto tempo a dizer-se que não havia condições para dar tudo a todos, vivamos agora o milagre que permite cortes fiscais a eito ou aumentos salariais a rodos para quem seja capaz de organizar uma manifestação suficientemente ruidosa? Quando a esmola é grande, o pobre desconfia.

A persistência do empate é, por isso, um poderoso manifesto político. Uma forma elegante de dizer que não merecem mais. Entre um facilitismo e outro, venha o diabo e escolha. O que pode ser capaz de mudar opiniões é a coragem de abrir caminhos. De propor reformas no Estado, de racionalizar gastos, de exigir mais eficiência nos serviços públicos, de ousar mudanças profundas na Justiça. Medidas que impliquem tensão, ousadia e coragem. Iniciativas que nos garantam um país mais moderno e justo e um Estado mais ágil.

É difícil fazê-lo em minoria? Sem dúvida. Mas se a minoria servir apenas como cenário para o eleitoralismo, como está a ser, por que razão há-de um eleitor mudar de opinião? Talvez Montenegro e Pedro Nuno Santos possam perceber sob o sol e o mar o que está em causa com o empate. Um sinal de desdém por esta forma velha e relha de fazer política, quem sabe.»


31.7.24

Não temos cá disto (8)

 


Uluru, Ayers Rock, Austrália, 2017.

Uluru é um grande monólito de arenito, com 8,5 km de largura e 348 metros de altura, que vai mudando de cor conforme a incidência do Sol. Situa-se no Parque Nacional de Uluru-Kata e é o segundo maior monólito do mundo (depois de um outro, também na Austrália). É Património Mundial da UNESCO.

Fiz uma longa caminhada lá dentro, que me permitiu ver uma pequena parte do conjunto de desfiladeiros, covas, vegetação, lagos e símbolos da cultura aborígene – tudo isto com 39ºC.

Um dos pontos interessantes ligados a Uluru reside nas muitas lendas sobre as suas origens e características. Algumas das grutas são utilizadas para dar aulas a crianças que frequentam escolas aborígenes e são também usadas como cozinhas em momentos especiais ou noutro tipo de actividades.

É difícil descrever o fascínio que este «objecto» provoca, mas não se parece com nada onde eu tenha andado antes.

31.07.2017 – O dia em que Jeanne Moreau deixou o «tourbillon de la vie»

 


Com uma carreira longuíssima de actriz, realizadora e cantora, iniciada em 1950, e uma filmografia impressionante com cerca de 130 nomes listados, trabalhou com um rol notável de realizadores, entre os quais Luis Buñuel, Wim Wenders, Michelangelo Antonioni, Orson Welles, François Truffaut, Louis Malle, etc., etc.

Já agora, de sublinhar a sua participação em Gebo et l’Ombre, de Manoel de Oliveira (2012), onde faz o papel de Candidinha.



Momentos inesquecíveis? Entre outros, evidentemente, Le Tourbillon, em Jules et Jim de François Truffaut:



Aqui, num belíssimo duo com Maria Betânia:




O tempora, o mores!

 


Se o povo não quer Maduro, Maduro tem de sair

 


«Apesar de vários observadores internacionais não terem sido aceites pelo regime de Caracas – incluindo os da União Europeia, como é natural, tendo em conta as sanções impostas –, estiveram muitos observadores internacionais nas eleições venezuelanas. Entre eles, da ONU e do Centro Carter, com credibilidade indiscutível. Este último já pediu a divulgação das atas eleitorais. Neste momento, é isso que está em causa: transparência. Mas o cancelamento do relatório do Centro Carter e a retirada do seu pessoal do país não augura nada de bom.

Como disse o presidente do Chile, Grabiel Boric (de esquerda), é difícil acreditar, para usar um eufemismo, nos resultados anunciados pelo Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela, controlado pelo regime. Seria um fenómeno político que um presidente com os resultados económicos de Nicolas Maduro conseguisse uma maioria absoluta de votos. Ainda mais quando, em profunda crise económica, os eleitores foram em massa votar. Todo o comportamento do governo – dos bloqueios a candidaturas (até de esquerda) à opacidade do processo, que se resolveria com a divulgação de todas as atas das mesas eleitorais, passando pelo facto da CNE ter falado de "uma tendência contundente e irreversível” quando faltavam contar 20% dos votos e Maduro teria 51,2% – torna muitíssimo plausível a tese da fraude eleitoral.

O chavismo falhou. Não falhou sempre. A Venezuela não era um país próspero para a grande maioria da população, antes de Chávez. Era igual a boa parte dos países daquela região: uma cleptocracia em que quase toda a riqueza ficava nas mãos de uma pequena minoria de privilegiados. E isso explica a popularidade inicial de Hugo Chávez, que chegou ao poder pelo voto e pelo voto lá permaneceu muito tempo, com forte apoio das camadas mais pobres do país, desde sempre ignoradas pelo poder.

Os resultados iniciais foram positivos. Ainda assim, logo nessa altura, escrevi que a tragédia política era quase inevitável. O movimento que levou Chávez ao poder não veio das bases populares, de sindicatos, do ativismo cívico e político. Veio da elite militar, que Chávez, conhecedor do destino de tantos governos de esquerda latino-americanos às mãos de golpes militares, soube mimar e comprar. Todo o seu perfil era o de um caudilho. Como é tradição latino-americana, aliás.

O exemplo de Lula

Na fase inicial, o chavismo conseguiu redistribuir riqueza num país fortemente desigual. Por isso ganhou eleições. Hoje, distribui pobreza, tendo substituindo uma elite económica corrupta por uma nova burguesia “bolivariana” igualmente corrupta. Conseguiu conquistar a soberania sobre os seus próprios recursos num continente onde impera o extrativismocolonial – sem falar disto é impossível compreender quase todos os conflitos políticos na América Latina ou em África. A interferência externa é um fantasma bem real para todas as nações com recursos que não estão do lado do poder. Mas não conseguiu mudar estrutura económica do país, deixando-o no mesmo lugar para o futuro.

A questão geral que se levanta é se, num país fortemente desigual e onde vigora o extrativismo colonial, é possível fazer mudanças por via daquilo a que chamamos democracia liberal. É possível que a democracia não seja meramente superficial quando boa parte da população está excluída da economia formal e de quase todos os direitos sociais? É possível os governos eleitos determinarem o futuro de um país quando potências muito mais fortes dependem da exploração barata dos seus recursos?

Lula mostrou que é possível fazer diferente sem pôr em causa as regras democráticas. Mostrou que é possível retirar milhões da pobreza, defender a soberania e respeitar a democracia. É verdade que só o conseguiu em tempo de vacas gordas, quando a redistribuição não implicava retirar poder e dinheiro às elites económicas do país. Mal a coisa ficou difícil arranjaram forma de derrubar inconstitucionalmente o governo de Dilma e de meter Lula na prisão, impedindo-o de concorrer a eleições que provavelmente venceria.

Mesmo assim, Lula percebeu que se saísse das baias democráticas, mesmo quando o sistema as ignorou, estaria perdido. Mesmo depois do golpe constitucional, mesmo depois de uma prisão ilegal, respeitou as eleições e as instituições. Não terá sido fácil. Mas percebeu que só dentro dessas baias se liberta um povo da tirania da miséria e da desigualdade. Quando se esmaga a democracia também se esmaga a luta pela igualdade. Sem democracia social, a democracia política é um jogo para os privilegiados, mas a democracia social é uma mentira quando se tira ao povo o direito a determinar o seu futuro.

Dirão que Lula não mudou o sistema económico do Brasil. Nem Chavez ou Maduro o fizeram, na Venezuela. O chavismo, na versão revolucionária inicial ou na sua fase mais decadente, limitou-se a despejar petróleo sobre os problemas e a mudar as dependências na divisão internacional de produção, onde a Venezuela continuou a ser fornecedora de matérias primas, só que agora para potências mais distantes. Era evidente que quando o petróleo deixasse de pagar o bolivarianismo o regime e a sua nova elite se agarrariam ao poder e aos privilégios. E, apesar das sanções, Maduro nem se pode queixar da sua atual posição externa. Desde que a guerra na Ucrânia começou, clientes improváveis voltaram a bater-lhe à porta. Talvez isso ajude a explicar, aliás, a invulgar reação relativamente moderada do ocidente.

O mau currículo da oposição

Com comunicação social alternativa, ainda alguns governadores da oposição e partidos políticos, a Venezuela não é uma ditadura pura. Mas a cada eleição que passa, com cada vez menos instituições nas mãos da oposição, com cada vez menos poder para o parlamento, com a destruição de uma justiça independente e com fim da comunicação social mais plural, é nisso mesmo que se está a transformar, às mãos de Maduro.

Ao viciar estas eleições, o ainda presidente da Venezuela pôs fim à soberania popular. Todas as conquistas sociais que ainda quisesse atingir perderiam o seu valor. Só que já nem isso existe. Com uma política económica feita à imagem da degeneração do regime, a miséria e a fome tomaram conta da Venezuela. A sobrar alguma coisa, seria a resistência à potência colonial do continente. Não chega para segurar o regime. Ainda assim, talvez seja isso e a memória de uma mudança social real no início deste século a explicarem porque é que ainda há tantos venezuelanos a defender um governo que destruiu, em dez anos, 70% da sua economia. Só que parece ser dos mais pobres que vem o maior desespero. Exatamente aqueles que levaram Hugo Chávez ao poder.

É verdade que, logo em 2002, a oposição supostamente democrática tentou um golpe contra o presidente legitimamente eleito. Apoiada, como tem sido costume nestes casos, pelos Estados Unidos, que tinham naquele produtor petrolífero um ativo estratégico que não queriam dispensar. E não demoraram a impor sanções (que nunca aplicaram a ditaduras amigas) e a tentar impor presidentes. Foi o caso de Juan Guaidó, um homem em que os venezuelanos nunca tinham votado. Uma manobra de Donald Trump, esse exemplo de respeito por resultados eleitorais, que foi seguida por vários países, incluindo Portugal. Como explicou o senador democrata Chris Murphy, “tentámos construir um golpe na Venezuela em abril de 2019 e ele explodiu-nos na cara”.

É verdade que a oposição quase nunca reconheceu resultados eleitorais, mesmo quando perdeu realmente. É verdade que a candidata de facto a estas eleições, María Corina Machado, pediu, entre 2018 e 2020, o “uso da força internacional” no país, num apelo claramente dirigido aos Estados Unidos. Infelizmente, o confronto, na Venezuela, não é entre democratas e antidemocratas, entre patriotas e corruptos. Essa é a parte difícil em muitos conflitos naquele continente: raramente ele é pela democracia, mas entre alternativas económicas e dependências externas que estão contra ou a favor da democracia conforme precisem ou não dela.

Ver Javier Milei, que mal chegou ao poder esmagou os protestos com brutal violência e tenta uma suspensão democrática para aplicar o seu programa revolucionário, a falar da democracia na Venezuela deixa isto bem claro. O silêncio do mundo perante duas tentativas golpe na Bolívia – uma delas depôs governo para depois perder as eleições – mostra que andam quase todos a escolher o seu líder autoritário. O desespero, em vários destes países latino-americanos, é ser muito difícil encontrar quem acredite na democracia quando o lado oposto promete uma forte mudança social e económica. E muito difícil encontrar quem, fora do continente, tenha um critério coerente.

O isolamento de Maduro

A alternativa a Maduro pode não ser democrática e patriótica, como se apresenta. Mas não é isso que está em causa. O que está em causa é a vontade de mudança manifestada pelo povo soberano e um regime incapaz de distribuir mais do que miséria e repressão. Em nome do povo, só fala o povo. E o povo parece ter escolhido o que qualquer povo escolheria perante a atual situação da Venezuela: derrubar um governo que lhe oferece pobreza. Derrubar a nova elite que tomou o lugar da anterior e que foi incapaz de mudar o sistema económico para sustentar as políticas sociais que a levaram ao poder. Parece ter votado contra Maduro, apesar da trágica oposição, muito provavelmente. E isto inclui os mais pobres, que sempre foram leais aos chavismo, mas que sentem a violência da crise económica dos últimos dez anos.

Quando os presidentes do Chile e da Colômbia – numa vertigem isolacionista, Maduro já expulsou o embaixador do Chile, governado pela esquerda –, pressionam o regime a aceitar a derrota, percebemos que estamos perante o estertor. Ele pode ser mais ou menos violento, mas o fim está à vista. Sobram-lhe aliados com quem não tem afinidades ideológicas, apenas proximidade oportunista, como a Rússia ou o Irão. O último sinal foi dado por Lula, ainda antes da sua conversa com Joe Biden – seria excelente que os EUA, com um trágico currículo na defesa da democracia na América Latina, se envolvessem o menos possível. Contrariando a posição do seu partido, o presidente brasileiro pediu para Maduro dar acesso às atas eleitorais.

O que está em causa, nestas eleições, é, antes de tudo, o respeito pelo voto popular, em relação ao qual não pode haver adversativas. Isto não obriga a qualquer simpatia pela alternativa que se apresenta. Não a tenho. Nada no seu passado me leva tê-la. Mas obriga a defender a soberania popular que se exerce através do voto. Parece evidente que Maduro perdeu. Maduro deve sair.»


30.7.24

Não temos cá disto (7)

 


Templo Ta Prohm, Siem Reap, Camboja, 2009.

Ta Prohm faz parte do complexo de templos construídos na zona de Angkor, a antiga capital do Império khmer entre os séculos IX e XV, e pesquisas recentes concluíram que poderá ter ocupado 3.000 km² e tido uma população de 500.000 habitantes («a maior cidade pré-industrial do mundo»). Nela foram encontradas ruínas de mais de 1.000 templos.

Ao contrário da maioria dos templos de Angkor, Ta Prohm foi deixado sem ser reconstruído, ficando envolvido nas árvores que, ao longo do tempo, se foram entrelaçando com a pedra, o que o tornou uma das grandes atracções do conjunto. (Houve alguma intervenção em 2013, sobretudo para o defender dos turistas, mas foi assim que o vi.)

30.07.1974 - «A morte do colonialismo»



 

Há 50 nos, milhares de pessoas concentraram-se junto ao Palácio de Belém para manifestarem ao Presidente da República a alegria pelo fim da guerra colonial. A manifestação foi convocada pelos três partidos representados no II Governo Provisório: PS, PPD e PCP.

Na véspera, tinha sido assinado, em Argel, o acordo que reconhecia a independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde.

Vale a pena ver a composição do II Governo Provisório:

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30.07.2007 – O dia em que Antonioni e Bergman nos deixaram

 


Há 17 anos, com a morte de Michelangelo Antonioni e de Ingmar Bergman, ficaram dois lugares vazios na lista dos grandes do cinema ainda vivos. Mas continuam bem no fundo da nossa memória que ajudaram a moldar.

Em jeito de homenagem, aqui ficam pequenos excertos de «L'Eclisse» e «Blow Up» do primeiro e de «O sétimo selo» e «Morangos silvestres» do segundo.








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Cultura Nacional da Cunha

 


«Passou despercebido um número que o Chefe da Casa Civil da Presidência da República revelou na sua audição na Comissão Parlamentar de Inquérito ao chamado "caso das gémeas", na última semana.

Revelou Frutuoso de Melo que desde que Marcelo Rebelo de Sousa tomou posse, em 2016, Belém já recebeu cerca de 190 mil pedidos de ajuda.

Fazendo as contas, a Presidência da República recebeu 87 pedidos de ajuda por dia útil desde que Marcelo Rebelo de Sousa é Presidente.

87 pedidos por dia! Este número revela duas características do regime: os serviços do Estado, a administração pública e as instituições portuguesas não funcionam bem e continua a ser alimentada uma cultura de cunha e favor em Portugal.

A cultura da cunha e do favorzinho é uma nefasta instituição nacional que, como se vê, continua a estar institucionalizada para que políticos possam exercer esse poder em seu nome.

O regime do Estado Novo usou a distribuição de cunhas e favores estrategicamente colocados como ajuda para exercer, controlar e manter o poder. Uma cunha do Presidente do Conselho para aquele filho que precisa de um emprego no Estado valia muito, e essa cultura descia pela escada hierárquica, sendo o recurso que os portugueses podiam ter para fugir da miséria em Portugal. Um favorzinho do senhor doutor podia mudar uma vida.

Em democracia a cultura manteve-se. É caso paradigmático Krus Abecasis, Presidente da Câmara de Lisboa, que "levava uma hora da porta da Câmara até chegar ao gabinete para ouvir os pedidos das pessoas que se plantavam a pedir casas e só não dava se não podia". O poder discricionário na atribuição de habitação é "uma realidade histórica" na autarquia que remonta aos tempos de Aquilino Ribeiro Machado. A Câmara de Lisboa deu ao longo do tempo milhares de casas a pessoas que as pediram, com casos conhecidos de pessoas que não precisariam, apenas porque há um pedido e uma decisão pessoal de um político.

Mas estes casos do passado continuam a ser uma realidade em várias Câmaras Municipais do país que, pela sua natureza e falta de escrutínio, continuam a funcionar na base da cunha, do favorzinho, do amiguismo e do clientelismo.

Percebeu-se agora que a Presidência da República também funciona num regime de atendimento de pedidos dos portugueses, usando o suposto cumprimento do artigo 41º do Código do Procedimento Administrativo como justificação para um conjunto de diligências efetuadas neste âmbito.

Até se podia considerar o argumento válido já que o referido artigo diz que “quando seja apresentado requerimento, petição, reclamação ou recurso a órgão incompetente, o documento recebido é enviado oficiosamente ao órgão titular da competência, disso se notificando o particular”. Mas o cumprimento desta diligência não só obriga à manutenção de uma estrutura pesada paralela ao Estado, como o facto de não haver qualquer registo ou rastreabilidade sobre ações subsequentes torna o sistema perverso e permeável às cunhas e favores.

Quantos destes pedidos foram encaminhados e sucedidos por telefonemas da Presidência da República a indagar sobre o seu estado? E quantos não tiveram direito a esse telefonema e ficaram apenas perdidos numa qualquer caixa de e-mail? Quantos foram efetivamente tratados pelos órgãos competentes e em que prazo? Quantos foram diretamente tratados por vontade do Presidente da República, agindo como se fosse um Rei que decide quem tem direito às boas graças e quem não tem?

É completamente natural que os portugueses, sem terem soluções para os seus problemas e muitas vezes já em completo desespero, procurem qualquer porta aberta que os possa ajudar. O que tem de melhorar muito é a capacidade operacional dos serviços do Estado.

A interface entre os cidadãos e o Estado em todos os seus serviços deveria ser ágil, acessível, transparente, rigorosa, registada e rastreável, com tempos de resposta definidos. Todos os pedidos registados e com alarmes definidos para prazos a expirar. Clareza na prioridade de tratamento de pedidos, com critérios definidos. O cidadão deve poder acompanhar o seu processo e saber o que esperar.

Por muito que os políticos possam gostar do poder discricionário que alguns cargos lhes dão para resolver pedidos pessoais que lhes chegam, esta forma de o Estado funcionar e de o dinheiro dos contribuintes ser usado está errada.

Enquanto tivermos um Estado mastodôntico onde os problemas dos portugueses ficam perdidos e acharmos que é função do Presidente da República ser um distribuidor operacional de resoluções para serviços do Estado, não vamos conseguir ter um país mais funcional e evoluído.»


29.7.24

Não temos cá disto (6)

 


Metéora, Grécia, 2016.

Em Metéora, na Grécia Central, encontra-se um dos mais importantes conjuntos de mosteiros bizantinos, apenas ultrapassado pelo Monte Atos. Cravados na rocha, mais ou menos suspensos, hoje são seis, já foram mais de vinte.

Entrei em dois, de monjas. Só se visita as igrejas, cheias de belos ícones. Infelizmente, é proibido fotografar o que quer que seja.

Não se conhece exactamente a data da fundação de Metéora (a palavra significa «suspenso no ar»), mas pensa-se que os primeiros eremitas se instalaram nesta espécie de cavernas no século XI. Absolutamente impressionante pelas características do terreno!

PCP e Venezuela

 


𝐂𝐮𝐬𝐭𝐚 𝐚 𝐚𝐜𝐫𝐞𝐝𝐢𝐭𝐚𝐫, 𝐧ã𝐨 é? 𝐈𝐧𝐟𝐞𝐥𝐢𝐳𝐦𝐞𝐧𝐭𝐞 𝐧ã𝐨 é 𝐧𝐨𝐭í𝐜𝐢𝐚 «𝐟𝐚𝐤𝐞».

Ler AQUI.

Pedro Tamen

 


Três anos sem ele. Não sei se já entranhei, era mesmo um amigo de décadas.

29.07.1890 – O dia em que Van Gogh morreu

 


Tudo se sabe sobre este extraordinário pintor nascido nos Países Baixos, mas prefiro recordar a sua estadia em Arles porque voltei a passar por lá há poucos anos.

Foi em Arles que o pintor se exaltou com a luz do Sul e pintou muitos dos quadros que tão bem conhecemos, desde os famosos girassóis aos ciprestes, à casa amarela onde viveu, ao célebre quarto, ao autoretrato com a ligadura depois de ter cortado a orelha por causa de uma forte zanga com Gauguin – 185 quadros entre Fevereiro de 1888 e Maio de 1889.

Depois do corte da orelha, a população considerou-o cada vez mais louco e exigiu o seu internamento definitivo no Hotel de Deus da cidade, misto de asilo e hospital. O claustro está hoje intacto (foto no topo deste post), tal como ele o pintou. Pediu depois para ser transferido para um hospital psiquiátrico perto de Saint-Rémy-de-Provence e regressou mais tarde aos arredores de Paris.

Se não o tratou bem em vida, Arles tira hoje todo o partido possível da estadia de Van Gogh nas suas terras.




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Quando vamos assumir que o turismo se tornou um problema?

 


«“O turismo pode desempenhar um papel fundamental na promoção do desenvolvimento económico, mas os seus impactos são muitas vezes económica, social e ambientalmente desequilibrados, e os benefícios nem sempre revertem a favor das comunidades locais.”

Este aviso vem no último relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) sobre o turismo mundial e Portugal tem motivos de sobra para o levar a sério. Em 2023, recebemos quase 20 milhões de turistas, um crescimento de 12,1% face a 2019, o que constitui o terceiro maior aumento entre os 38 Estados-membros daquela organização. No ano anterior, o sector representou 8,9% do PIB português, o valor mais elevado (e mais do dobro da média) dos países da OCDE para os quais existem dados disponíveis.

Os indicadores mais recentes sugerem que o turismo em Portugal continua a crescer. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), o número de dormidas em estabelecimentos turísticos aumentou 7,4% no 1.º trimestre de 2024, face ao mesmo período do ano anterior, enquanto as receitas correspondentes cresceram 15,3%. A redução da inflação, a retoma da economia europeia e a persistência de um baixo valor do euro face ao dólar fazem prever que a tendência irá continuar nos próximos tempos.

Os responsáveis políticos recebem estas notícias com entusiasmo e percebe-se porquê. No imediato, o aumento do turismo traz mais actividade económica, mais emprego e mais receitas fiscais e contributivas. Para quem governa, não há nada melhor do que anunciar estatísticas que dão uma imagem favorável da situação do país e mais margem orçamental. Assim se percebe a resistência que os governantes têm em questionar o peso crescente do turismo na economia nacional. Na verdade, a tendência dos decisores políticos é promovê-lo ainda mais.

Das 60 medidas que constam do programa Acelerar a Economia, anunciado há poucas semanas pelo executivo de Montenegro, 17 visam impulsionar este sector em específico (nenhum outro sector de actividade merece sequer metade da atenção naquele programa). Mas a fixação dos políticos com a promoção do turismo não é de agora, nem deste Governo: em 2016, o então presidente da Câmara de Lisboa (e, mais tarde, ministro das Finanças socialista), Fernando Medina, dizia não saber “o que é ter turistas a mais”, acrescentando que “esse conceito não existe, não tem sentido”.

Mas não é isso que nos diz a OCDE, nem outras instituições internacionais, nem algumas abordagens económicas mais atentas ao desenvolvimento estrutural das economias.

Alguns dos problemas decorrentes de um crescimento excessivo do turismo são evidentes e bem conhecidos de toda a população. A OCDE alerta para aspectos como as pressões sobre os preços do alojamento (que dificultam o acesso à habitação dos residentes e também dos trabalhadores sazonais), sobre as infra-estruturas e os serviços colectivos (traduzindo-se, por exemplo, na sobrelotação dos transportes públicos ou na acumulação de lixo nas zonas mais frequentadas) e sobre o ambiente (aumentando a poluição e pondo em causa a sustentabilidade dos ecossistemas e a biodiversidade). Os crescentes protestos populares em zonas de grande intensidade turística – como Barcelona ou Málaga, para dar dois exemplos recentes – são um sinal de que o excesso de turismo existe de facto e que está a tornar-se um problema político sério em diferentes partes do mundo.

A Organização Internacional do Trabalho, por sua vez, tem alertado para as más condições laborais no sector, marcado pela prevalência do trabalho ocasional e informal, horários de trabalho variáveis e longos, salários baixos e fraca protecção social (decorrente da informalidade, da sazonalidade e dos rendimentos reduzidos dos trabalhadores).

Para além dos impactos mais directos e evidentes, o turismo tem implicações estruturais para o desenvolvimento das economias a prazo. Há três aspectos que vale a pena ter em consideração a este respeito.

O primeiro tem que ver com a relação entre turismo e imobiliário. A expansão rápida da actividade turística num determinado território está frequentemente associada a um aumento do investimento imobiliário em hotéis e alojamento local, mas também em estabelecimentos comerciais e de restauração. O crescimento dos preços desses activos pode dar origem a fenómenos especulativos, que põem em causa a estabilidade financeira do país.

Segundo, o aumento dos preços do imobiliário representa um acréscimo de custos para a generalidade das actividades produtivas (não apenas as que estão directamente associadas ao turismo). Para além disso, o grande afluxo de turistas – que, em geral, têm um poder de compra superior à média dos residentes – traduz-se num aumento geral dos preços dos bens e serviços, reduzindo assim o rendimento disponível da população local e aumentando ainda mais os custos para as empresas de todos os sectores.

Estes fenómenos inflacionistas, a par da disputa de recursos humanos, financeiros e materiais, originam um fenómeno conhecido por “doença holandesa”, ou seja, o crescimento do turismo provoca uma perda de competitividade em outros sectores de actividade mais expostos à concorrência internacional, em particular as indústrias transformadoras. Isto tem efeitos nefastos a nível estrutural: embora o turismo estimule a actividade económica e o emprego no curto prazo, em geral não tem o mesmo potencial de desenvolvimento tecnológico e de aumento da produtividade que o sector industrial. Ao favorecer a desindustrialização das economias locais, a sobre-especialização no turismo põe assim em causa o desenvolvimento da economia a prazo.

Por fim, a actividade turística é particularmente vulnerável à ocorrência de fenómenos extremos – como pandemias, desastres naturais, alterações climáticas, ataques terroristas, conflitos armados, entre outros – tornando ainda mais arriscada a sobreespecialização económica neste sector.

É por estes e outros motivos que as organizações internacionais têm vindo a alertar para a necessidade da adopção de planos de turismo sustentável por parte das autoridades nacionais e locais. É possível e desejável fazer do turismo uma parte relevante da estratégia de desenvolvimento económico, social e ambiental do país. Isto faz-se gerindo fluxos, diversificando ofertas, reforçando o investimento em infra-estruturas públicas e serviços colectivos, limitando o seu efeito predatório sobre a habitação nas grandes cidades (e não só), regulando e fiscalizando as condições de trabalho no sector. O primeiro passo, no entanto, é pararmos de olhar para o turismo como a galinha dos ovos de ouro da economia nacional.»


28.7.24

Para alguns, foi “uma Sena triste”

 


«- É estúpido ficares aí sabendo que vai chover tanto. Dizem que chove intensamente durante toda a cerimónia. - É. Mas também é estúpido ir embora, porque quem fugir não vai poder contar o caos que vai ser.

Este diálogo, entre Paris e Lisboa, foi tido nesta sexta-feira, a três horas do início da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos, na qual as bancadas de imprensa e de espectadores não tinham cobertura – ou sequer um mero toldo.

A decisão final foi ficar para assistir, numa clara atracção pelo abismo – e, por absurda que possa parecer, é essa atracção que permite dizer que o que se passou nesta sexta-feira em Paris foi um novo nível de bizarria.

É até cómico que uma cerimónia grandiosa e pensada ao detalhe tenha sido, para alguns, importunada por algo tão singelo como... chuva. Só chuva. Nem foi preciso granizo, trovoada ou vento. Só chuva.

A chuva que colocou jornalistas a dividirem protecções de plástico com os seus computadores – em rigor, não dava para ambos – e que justificou limpeza de mesas e cadeiras encharcadas em plena bancada de imprensa. Limpeza feita com a mão e com as mangas das camisolas, que panos são coisa de primeiro mundo. E, como todos sabem, não estamos na pobrezinha Paris, estamos no luxuoso Taiti, em cavaqueira com os amigos do surf olímpico.

O conceito para esta cerimónia era ter tudo ao ar livre – tudo menos a tribuna presidencial, claro. Há limites para o contacto com a natureza.

Espectadores, bem como fotógrafos e jornalistas, cuja maquinaria não se deu bem com chuva, teriam de ver tudo dali e deu-se um fim de tarde triste, que prometia ter sido de grandiosidade nunca vista em olimpíadas.

Mas paremos o queixume. Afinal, a maioria dos espectadores espalhados pelo mundo assiste a tudo nas suas casas – houve, portanto, uma larguíssima maioria de espectadores a verem esta cerimónia em boas condições.

Se for uma questão de números, a coisa até correu bem, porque uns milhares de jornalistas são só isso: uns milhares de jornalistas. E se o apertadíssimo e modesto orçamento dos Jogos já derrapou com bancadas destas, seria um desastre financeiro se houvesse investimento em toldos.

Para os jornalistas na tribuna de imprensa, não havia sequer linha visual para o rio Sena, mas sim para a Torre Eiffel, para o palco e para a tribuna presidencial – aquela com uma bela cobertura.

A cerimónia foi gira, sim, mas, por aqui, vista pela televisão. Tal como por aí.»