«É interessante como a normalidade garantida por quem, respeitando a democracia e as instituições, passou o testemunho sem qualquer sobressalto quase fez esquecer que o homem que tomou posse na segunda-feira tentou, há quatro anos, um golpe contra a democracia. Que esta tomada de posse só foi pacífica porque ele venceu. E que a próxima, daqui a quatro anos, só o será se ele voltar a vencer.
A vontade de arrefecer o clima político é tal que todos estão dispostos a esquecer o que não é passado, é presente e futuro. Alguém que recusa a democracia e só aceita o voto popular se vencer concentra, a partir de hoje, um poder inimaginável. E um dos seus primeiros gestos foi perdoar os que assaltaram o Capitólio, mostrando que a única coisa que mudou é que desta vez não precisa de tentar tomar o poder pela força. O que se celebrou na segunda-feira, não foi a saudável transferência pacífica de poder. Foi a transferência condicionalmente pacífica de poder para um homem que, em qualquer democracia saudável, estaria preso. Mas quando todas as instituições se mostram frágeis perante estes autoritários, resta-nos a segurança das liturgias.
No entanto, o ambiente é muitíssimo diferente a 2016. Dir-se-ia que parecem estar menos coisas em risco. O que vimos, lemos e ouvimos foi uma total normalização de Donald Trump. Uns terão finalmente aderido à sua retórica, outros já não se chocam com ela e, não se chocando, já não reagem. E é nestes momentos, e não contra heroicas resistências, que os autoritários e as suas ideias se impõem.
Quem esperava sinais de pacificação teve a resposta no discurso de tomada de posse, o menos errático dos três que fez no dia 20. Nem o Canal do Panamá ficou de fora. A normalização de Trump não se faz pela sua adaptação. É o mundo que se adapta a ele. É por isso que conquista votos e dá esperança. As pessoas sentem que ele molda mesmo o futuro. Mesmo assim, no entanto, não faltou quem sublinhasse a moderação da sua intervenção. Primeiro estranha-se, depois entranha-se. O segredo é ir esticando o limite o extremismo fica a parecer moderado.
Nas ordens executivas que assinou encontramos o triângulo do autoritarismo reacionário e neoliberal. A recusa de políticas ambientais que põem risco o lucro (nisso, Musk tem de partilhar o seu poder com outros milionários), acelerando a agressão ao planeta. A deportação de imigrantes, que não tem de ter a dimensão anunciada (deportar mais de 4% da população é financeiramente incomportável e teria um efeito devastador na economia), porque a função é outra: criar um ambiente de estado de exceção permanente e alimentar o inimigo interno, dois pilares de qualquer poder com pretensões autoritárias. E, como reação à suposta ditadura woke, perseguir minorias e impor a uniformização moral para que se aceite uma “normalidade” de Estado. Como sempre, tudo em nome da liberdade (dos mais fortes) e contra a elite (que se sentou na segunda filha da tomada de posse e o apoiou nesta eleição).
No essencial, nada disto é novo. Novo é o poder de Trump. Não só por ter conseguido a eleição depois do que aconteceu a 6 de janeiro de 2021. Não só por ter, para além do Senado e da Câmara dos Representares, uma inédita inimputabilidade oferecida pelo Supremo. Mas, acima de tudo, por ter ao seu lado, não apenas os homens mais ricos do mundo, mas aqueles que, através do controlo das plataformas tecnológica (e da Inteligência Artificial), moldam e moldarão as opiniões públicas e a própria noção de verdade. Os engenheiros das almas do século XXI.
O que aconteceu na segunda-feira não foi a repetição de 2016. Foi uma mudança de regime. Nos EUA e em todo o Ocidente. No mundo. Os tímidos limites que a democracia ainda impunha aos mais poderosos cairão nos próximos anos. Para gozar essa nova “liberdade”, só têm de se vergar perante o imperador que deixou de ter limites institucionais.»