«Durante décadas, a política portuguesa foi um compasso previsível: um partido sai, outro entra, o essencial mantém-se. O centro era poder e o poder fingia bastar-se no centro. No domingo, o tabuleiro deu de si.
Ainda sem os votos da emigração, o expectável é que o PS ceda o segundo lugar ao Chega. A AD venceu sem glória, por falta de concorrência. E o velho equilíbrio — dois partidos grandes, outros tantos acessórios — perdeu o eixo. A geometria do regime inclinou-se.
O discurso de Ventura é rudimentar. Mas não precisa de ser sofisticado quando o terreno está seco. Não tem soluções. Tem alvos. Aponta para a insegurança, para a imigração, para os “comentadadeiros”, para o “jornalixo”, para o “sistema”. E, sobretudo, preenche o vazio que os outros deixaram.
E houve muito vazio.
A oposição foi feita de sombras, de temas reciclados, de indignações episódicas. Pedro Nuno Santos tinha à sua frente um Governo minoritário (de apenas um ano, é certo), uma economia a acender sinais de alerta, um SNS que começou a recusar grávidas sem chamada prévia, uma erosão de confiança num Primeiro-Ministro ausente. E, ainda assim, não conseguiu explicar em que é que o seu projecto político se diferenciava.
A AD, entretanto, completava o seu recentramento performativo: falava com os pensionistas, negociava com os sindicatos da função pública, prometia estabilidade. O PSD ocupava, sem pudor, o espaço que o PS esvaziou. Revalorizava as carreiras dos professores com o excedente orçamental que Fernando Medina tinha deixado em cofre. Para o eleitorado, o contraste foi penoso: à frente, um reflexo diluído; atrás, oito anos de governação que foram ficando indistintos do seu próprio sucedâneo.
A resposta do eleitorado foi clara. Não por entusiasmo. Por subtração.
Alegremente se dizia que o Chega tinha deixado cair a bandeira da imigração. Não deixou. Só a afixou mais alto. Capitalizou a ausência de todos. O discurso de Ventura não tem densidade. Tem volume. Não tem soluções. Tem alvo. Aponta para a insegurança, para a imigração, para a “bandalheira”, para o “jornalixo”, para os “comentadeiros”, para o “sistema”. E ninguém contrapôs. Nem com dados. Nem com presença. Nem com coragem.
Bastava ter dito o básico: que a criminalidade não aumentou. Que a perceção de insegurança é manipulável. Que há uma diferença entre o que se sente e o que é. Mas ninguém quis complicar o discurso com factos.
Porque, no fundo, é isso que está em causa: não a realidade, mas a forma como ela é apresentada. A criminalidade não aumentou. O que aumentou foi a exposição a um enredo. Como num filme de terror: os sons da casa não mudam, mas, depois dos créditos, cada barulho em casa parece ameaça. O medo não vem dos factos. Vem da predisposição. E o Chega soube escrevê-la.
Ninguém desmontou essa predisposição. Nem com números. Nem com política. Nem com presença. E foi nesse vácuo que a percepção se consolidou como verdade.
A Iniciativa Liberal colou-se ao poder. Pagou o preço. O Bloco implodiu. O PCP ficou à margem do seu tempo. Livre avançou — mas só até à linha urbana. E Montenegro, que não apresentou ruptura nem brilho, venceu por ser o último que parecia de pé. Não foi esperança. Foi contenção. O Chega incendiou o mapa. Montenegro segurou os cantos. Os restantes deixaram cair o papel.
O populismo cresce onde há raiva. Não (só) por afinidade ideológica, mas por identificação emocional. Vidas demasiado longas para salários demasiado curtos, e uma indignação que nenhuma campanha conseguiu absorver. A esquerda, que há décadas reclama o monopólio da justiça social, foi incapaz de a traduzir.
O problema não é apenas o grito. É tudo o que o antecedeu. O silêncio. A ausência. A ideia perigosa de que bastava estar certo para continuar a ser ouvido.
É fácil, e sobretudo cómodo, rotular todos os eleitores do Chega como racistas ou extremistas. Há quem o seja. Mas há também quem esteja apenas à procura de uma linguagem que os reconheça. Gente que já não vê futuro. Que não sente que a política fale a partir do mesmo lugar. Que não acredita em quem, nos debates, promete mundos sem nunca desce ao deles.
Nada disto exige branquear o Chega. Portugal continua a ser um país mal resolvido com o seu passado colonial, tentado por fantasias de autoridade. O Chega cavalga esse desconforto, e empurra-o para o extremo. Abre uma porta perigosa. E essa porta não se fecha sozinha.
O erro foi pensar que bastava denunciá-la. Que bastava gritar “perigo” do lado de fora, sem nunca entrar para disputar o espaço. O erro foi acreditar que a indignação chegava, quando o que faltava era resposta.
Não basta indignação. É preciso dar resposta à pergunta que nenhum cartaz responde: “e eu, onde fico no meio disto tudo?”. Enquanto isso, o Chega continuará a crescer.
Não por ser forte, mas porque os outros estão a falar sozinhos.»