11.10.24

Quando não escrevíamos cartas em teclados

 


Tinteiros Arte Nova, cerca de 1900.
Daum Nancy.


Daqui.

Um pouco mais de azul (15)

 




O Governo que não gosta de perguntas de jornalistas

 


«No ano passado, assisti à conferência de imprensa do orçamento que fez o antigo ministro das Finanças, Fernando Medina, e aquilo não acabava. Esta tarde, Joaquim Miranda Sarmento "despachou-se" num instante.

A decisão do Ministério das Finanças é muitíssimo grave e põe em causa o direito à informação. Não vale a pena estar com rodriguinhos. Põe em causa, ponto final.

Não estamos a falar de uma proposta que seja simples (e mesmo se fosse…). O ministro das Finanças apresentou um documento de alta complexidade e acha que pode ser explicado ao povo sumariamente. Pior: acha que não tem que explicar nada, ou muito pouco, através da mediação jornalística, porque eventualmente os jornalistas não são de "fiar". Já sabemos que quem não sabe coisas estará sempre mais feliz do que quem sabe. Esta parece ser a regra determinada por este Governo e a sua gravidade não tem sido suficientemente escalpelizada.»

Ana Sá Lopes
Newsletter do Público, 10.10.2024

Opiniões polémicas sobre um pano

 


«O pintor americano Maxfield Parrish, autor de vários nus artísticos, costumava receber jovens modelos no seu estúdio. Uma vez, para adiar o momento de se confrontar com a tela branca, propôs à rapariga que iria posar para ele nesse dia que tomassem um café antes da sessão de pintura. Mal tinham acabado de se sentar à mesa quando tocou a campainha. E Parrish, tomado por um súbito pânico, disse: “Depressa, dispa-se. Vem aí a minha mulher.”

Nesta altura, já o leitor estará exasperado. “Temos parábola”, há-de pensar, farto do estratagema. Não há dúvida de que se trata de um hábito muito irritante. Em vez de irmos logo ao assunto, andamos entretidos com uma história cuja relação com o tema é, na melhor das hipóteses, longínqua. Pior só aquela mania de imaginar o que o leitor está a pensar.

Creio que não poderia ter menos interesse no vestido que a fadista Ana Moura levou à gala dos Globos de Ouro. Mas tenho muito interesse no debate que se gerou sobre o vestido que a fadista Ana Moura levou à gala dos Globos de Ouro. O primeiro factor de interesse é a própria existência do debate. Bem sei que há quem dê muita importância ao significado daquilo que se traz vestido, mas não é o meu caso. Normalmente, a minha roupa significa sempre o mesmo, a saber: “Eis uma pessoa que achou que era melhor vestir-se antes de vir para a rua.”

Ora, a história do pintor é útil para explicar que, embora o Eclesiastes não o refira, há um tempo para vestir e um tempo para despir. Se vamos à igreja, talvez seja boa ideia irmos vestidos; se vamos à passadeira vermelha de uma chatíssima gala, podemos optar por aquilo que se costuma designar por “ousadia”. É para isso que servem as passadeiras vermelhas, o que acaba por constituir um paradoxo curioso: se aquele é o sítio próprio para ousar, surpreenderemos tanto mais quanto não ousarmos coisa nenhuma. É o que eu costumo fazer: como sou uma pessoa muito ousada, não ouso onde se espera que eu ouse.

Ana Moura decidiu ousar, o que é normal. Perante a ousadia, formaram-se instantaneamente dois grupos: de um lado, quem se escandalizava com o vestido de Ana Moura como se fosse o fim do mundo, por causa da indecente pouca-vergonha; do outro, quem se maravilhava com o vestido de Ana Moura como se fosse o início de um novo mundo, por causa da audácia de quebrar tabus, que é tão transformadora. Curiosamente, ambos os grupos concordavam num ponto: o mundo acaba por causa de um vestido. Uns acham que acaba definitivamente e outros acham que acaba para dar lugar a outro melhor. Mas que estamos perante um apocalipse motivado por uma opção estética, disso ninguém duvida.

Pessoalmente, julgo que o mundo tem resistido bastante bem durante os últimos milénios, e é improvável que acabe por causa de um pano. Até recomendaria que, para promover a paz entre ambos os grupos, fosse içada uma bandeira branca. O problema é que a bandeira branca também é um pano, pelo que antecipo nova polémica.»


Ricardo Araújo Pereira

10.10.24

Uma bela entrada

 


Porta e entrada da Casa Montero (conhecida como "Casa de Gaudi"), Bilbao, 1902.
Arquitectos: Jean Batiste Darroquy e Luis Aladrén Mendivil.

Daqui.

Um belo dia para recordar este texto

 


19.12.1915 – 10.10.1963: Édith Piaf

 


Uns dizem que morreu em 10 de Outubro de 1963, outros que foi no dia seguinte, poucas horas antes do seu grande amigo Jean Cocteau.

Piaf colou-se para sempre à pele da minha geração, como tantos outros cantores sobretudo franceses, quando este país era quase tão sombrio como os vestidos pretos que ela nunca largou. Mas acrescento uma nota pessoal: acabada de regressar de Portugal, onde tinha vivido a primeira parte da crise académica de 1962, eu vi-a e ouvi-a, em Lovaina, no mesmo dia (vim a sabê-lo algumas horas mais tarde) em que muitas centenas de estudantes foram presos na Cantina da Cidade Universitária de Lisboa. «L'hymne à l'amour» ficou para sempre associado, em mim, ao Dia do Estudante.








.

Se em Gaza são homens

 


«Quando, a 27 de outubro, os soldados israelitas entraram em Gaza, levaram seus telemóveis. Como os atacantes do Hamas, nos massacres de 7 de outubro, deram muito material de horror ao mundo. Foi a partir daí que a Al Jazeera decidiu trabalhar, fazendo o que qualquer órgão de comunicação social poderia ter feito: contar os crimes de guerra filmados pelos próprios criminosos.

Este está a ser, como disse a romancista palestiniana Susan Abulhawa à Al Jazeera, o primeiro genocídio ao vivo. Está tudo no Instagram, no Facebook, Tiktok, no YouTube, filmado e muitas vezes assinado próprios autores, com detalhes do local e do dia. É um autêntico arquivo de crimes de guerra.

A sensação de impunidade resulta da banalização da barbárie, muito para lá do campo de batalha. No TikTok, jovens mulheres militares, com o especto ocidental que nos permite sentir empatia por elas, dançam e cantam, fardadas, nos quartéis, tornando o genocídio instagramável. O povo israelita vê e naturaliza a alegria da guerra e, numa discoteca à pinha, canta "que a aldeia pegue fogo!" Vídeos de influencers parodiam a falta de água e eletricidade em Gaza, que mata milhares de crianças em Gaza, e os ferimentos supostamente simulados dos palestinianos.

Apesar de ter contribuído fortemente, a insensibilidade coletiva, que acompanha todos os crimes mais monstruosos da história, não resulta apenas do trauma de 7 de outubro. Foi incutida por um governo de extremistas: “Não é verdade que os civis não estejam envolvidos, é uma nação inteira que é responsável”, disse o Presidente Isaac Herzog. Não são palavras. São atos quotidianos em Gaza, com uma punição coletiva em larguíssima escala, que dura há um ano.

CRIMES NAS REDES

O jornalismo e a justiça têm as provas que precisam, entregues pelos próprios criminosos, tal é o sentimento de impunidade que lhes foi incutido pelos superiores. A própria Al Jazeera, que investigou 2500 contas nas redes sociais, ficou espantada com a facilidade do trabalho, quando esperava gastar muito mais recursos e tempo. Mostrou-as a especialistas e cruzou com o trabalho de terreno das suas equipas, procurando testemunhas e as imagens de drones israelitas.

Nos vídeos e nas fotos, encontramos destruição arbitrária, sem qualquer fim militar, de infraestruturas e casas; maus tratos a detidos; e a utilização de escudos humanos, acusação que costumam fazer aos seus inimigos. Tudo violações do direito internacional, tudo crimes de guerra.

Podemos ver a destruição e a pilhagem do interior de casas de palestinianos, registadas com alegria, para publicar nas redes. Charlie Herbert, um ex-general britânico entrevistado pela Al Jazeera, fala de uma falta de disciplina institucionalizada, bem diferente de excessos pessoais. E a destruição de todas as infraestruturas, sem qualquer critério militar. Uma política de terraplanagem para tornar a reconstrução material, económica, cultural e emocional impossível. Basta ver as imagens de satélite de Gaza para perceber até que ponto esta ilegalidade foi levada. O inimigo não é o Hamas, é todo um povo, como avisou o Presidente.

O pináculo da destruição sem interesse militar, detonando edifícios vazios, aconteceu em Khirbet Khuza’a, uma cidade de 13000 habitantes perto do muro que separa Gaza de Israel. Foi toda, mesmo toda, dinamitada. Razão? É a cidade mais próxima de Nir Oz, o kibutz mais violentamente atacado a 7 de outubro. Vingança planeada pelos comandos, não uma loucura de jovens soldados perturbados pela guerra.

Também vemos a humilhação de detidos, exibidos e filmados nas suas roupas íntimas. Ou filmados vendados e de joelhos, urinam de medo. Ou em posições que os ridicularizam. Ou relatos de quem foi obrigado a deitar-se sobre cadáveres quase em decomposição. Detidos foram violados, espancados, arrastados pelo chão, exibindo com orgulho as marcas de umas costas torturadas... A estrela de David cravada nas costas de um deles talvez seja das imagens mais sinistras, por revelar, insultando o povo mais perseguido, a amnésia histórica de quem ali espetou a faca.

Depois, há os escudos humanos. De forma sistemática e organizada, soldados israelitas usam detidos como armadilhas para emboscadas ou para inspecionar edifícios, pondo-lhes câmaras e monitorizado-os através de drones, para evitar que sejam os soldados a correr riscos. Põem-nos à frente de tanques ou prendem-nos a veículos militares, para evitar ataques. Um detido, depois de ser espancado e torturado, foi usado como mensageiros para mandar evacuar um hospital. No fim, foi abatido à distância. Está tudo registado.

NINGUÉM OS IMPEDIRÁ

A Al-Jazhera complementa, para garantir que o contexto confirma as imagens, com testemunhos de familiares, no terreno. Um dos testemunhos conta o que ouviu de um militar israelita, enquanto o filho era torturado no quarto ao lado: “Nada nos impede de matá-lo. Poderíamos simplesmente matar-vos a todos. Ninguém nos impedirá e ninguém nos ligará para prestar contas.”

E há a utilização de snipers treinados para disparar sobre jornalistas, crianças, quem dá apoio médico. Ou os ataques a ajuda humanitária autorizada, porque a fome é, em Gaza, uma poderosa arma de guerra.

A parte menos impressionável deste programa é a que nos devia assustar mais. Exatamente pela sua limpeza tecnológica. Segundo a revista israelita “+972” (a IDF nega), Israel terá marcado milhares de habitantes como suspeitos, socorrendo-se de Inteligência Artificial, que tem um algoritmo que cruzou vários critérios para as selecionar. E, para que os ataques fossem mais rápidos do que um humano conseguiria, também a usou para a localização destas pessoas, escolhendo o momento em que estavam em casa (mais fácil) para o ataque – com os “danos colaterais” que se imagina. Este segundo programa chama-se "Onde está o papá?" Não é novidade a industrialização da morte, quando é preciso responder à necessidade de rápida produtividade, usando tecnologia avançada e organização metódica. É bastante admirada por quem tem pouca memória.

NO BANCO DOS RÉUS

Todos estes soldados têm comandantes que, se houver justiça, terão de ser punidos. No topo do comando está Benjamin Netanyahu, primeiro responsável pela morte de 40 mil pessoas em Gaza (nem dos reféns quis saber) e veremos por quantas mais no Líbano e na Síria. Como não partilho dos seus valores, não quero que façam com ele o que fez com Haniyeh ou Nasrallah. Desejo vê-lo no banco dos réus. Se isso não acontecer, assumamos o que diz Susan Abulhawa: “conceitos como diretos humanos e direto internacional são para pessoas brancas e ocidentais”.

Esta é a parte da lei. Mas os cúmplices políticos são os que podiam travar os crimes e não o fizeram. São os EUA, a Alemanha, a França ou o Reino Unido que, durante a carnificina, dão armas, informação e apoio militar e operacional ao criminoso, ao mesmo tempo que lançam sonsos apelos de cessar-fogo.

O título deste artigo é inspirado no livro de Primo Levi, “Se isto é um Homem”, que relata a sua terrível experiência em Auschwitz. Não procuro paralelos. Mas, se decidirmos isolar a experiência da desumanização do outro a um único momento da história, dificilmente aprenderemos alguma coisa com ela com ela.

“Poderíamos simplesmente matar-vos a todos, ninguém nos impedirá”, disse o soldado carregado de razão. Na reportagem, uma palestiniana grita, em desespero, para o cameraman: “Estás a filmar para quem? Ninguém se importa connosco!” Os palestinianos sabem isso. E ninguém pode dizer que não sabe. Está tudo espalhado nas redes.»


9.10.24

John Lennon – Seriam 84

 



09.10.1978 – O dia em que Jacques Brel morreu





Adormeceu num 9 de Outubro. Excepto que estava muito longe de ser velho como os velhos que tão bem cantou: «Les vieux ne meurent pas, ils s’endorment un jour et dorment trop longtemps».



Mais:






.

Acabar com a RTP e ter jornalistas domesticados?

 



A crise dos média, os governos e os jornalistas

 


«Os governos acham sempre que sabem melhor do que ninguém como se faz bom jornalismo. Normalmente preferem-no vagaroso a ofegante, esperam que os jornalistas se mantenham tranquilos e com uma visão positiva da actividade governativa. Há uma fase em que, para a generalidade dos governos (talvez a excepção tenha sido o governo de Santana Lopes), esse vagar e essa tranquilidade são mesmo a marca de água de uma comunicação social que entende dar o benefício da dúvida a quem chegou recentemente ao poder. Chama-se estado de graça.

Como é por demais evidente, este governo goza desse estado de graça e não vive com uma comunicação social particularmente agressiva. O exercício do poder desgasta a relação com os jornalistas e há uma grande diferença entre meio ano e oito anos e meio no governo. Importa pouco que quem deixa o poder mude de líder, o estado de graça não se aplica à oposição.

Feito este preâmbulo, importa dizer igualmente que a comunicação social, que faz uma análise crítica do exercício do poder, também pode ser criticada. Este texto não é a defesa corporativa da profissão que exerço. Acompanho o primeiro-ministro na crítica que faz ao surfar permanente na crista da onda de um jornalismo que muitas vezes é incapaz de ver para lá da polémica, que alimenta à exaustão. É claro que Luís Montenegro não deve fazer a mínima ideia do que é um direto de televisão, nem qual é a função de um auricular e de um bloco de notas digital incorporado num smartphone, mas isso são outros quinhentos.

O que verdadeiramente me incomodou como jornalista, numa conferência organizada pela Plataforma de Media Privados em que o governo foi anunciar o plano que tem para o sector, foi ver o primeiro-ministro aproveitar o palco que lhe foi oferecido para, na prática, dizer aos jornalistas: vocês não são qualificados, eu ajudo, mas vejam lá se amansam. Montenegro é, talvez, o primeiro-ministro que mais recusa responder às perguntas dos jornalistas e o que tem para nos dizer é que essas perguntas (essência da profissão) são muitas vezes sopradas aos ouvidos desses mesmos jornalistas. Por quem!? Se é por outros membros da redação significa que as redações funcionam e isso é bom, se é por alguém fora das redacções então a acusação é grave e convém que o chefe do governo concretize.

Acompanho o elogio generalizado à vontade do Governo assumir a responsabilidade de fazer a sua parte para garantir uma comunicação social livre, mas fico sempre com a pulga atrás da orelha quando vejo alguém destratar quem diz querer ajudar. O negócio da comunicação social não aguarda pela resolução do problema da quadratura do círculo, ele é inviável a longo prazo se não assentar na independência do jornalismo face ao poder instituído. É, por isso, que também me parece saudável que se separe o serviço público de comunicação social do negócio da comunicação social.»