21.10.24

François Truffaut morreu num 21 de Outubro




François Truffaut nasceu em Paris em 1932. Morreu muito cedo, em 21 de Outubro de 1984, mas deixou-nos 26 filmes que o mantêm connosco. Com uma infância atribulada, que acaba por retratar parcialmente em Les quatre cents coups, Truffaut fundou um cineclube aos 15 anos e foi rapidamente descoberto por André Bazin que viria a ter uma influência decisiva na sua carreira, introduzindo-o junto dos grandes nomes da época e nos celebérrimos «Cahiers du Cinéma». Tornou-se um dos principais representantes da «Nouvelle Vague» francesa e, nesses tempos áureos do cinema francês, era sempre com ansiedade que se aguardava a estreia de um novo título.


Foi um dos meus cineastas de referência. Quando Paris era a nossa praia de liberdade, vi Baisers Volés três vezes seguidas, sem sair da sala.

Entre muitos inesquecíveis: Baisers Volés (1968) e Les quatre cents coups (1959):





Last but not the least, esta canção inesquecível de Jules et Jim:


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A militarização da UE traz segurança?

 



A Paz não pode ser uma língua morta

 




Viriato Soromenho-Marques

A vitória do Chega no Congresso do PSD

 


«Fazer a bancada do Chega passar de 50 deputados para 5 é um objectivo patriótico, partilhado por todos aqueles que não se revêem nos discursos xenófobos do partido português irmão de Marine Le Pen.

É verdade que o Chega foi buscar muita da sua votação ao praticamente extinto CDS (a AD deu ao partido uma nova vida a que a solidão de uma candidatura autónoma o condenaria) e aos votos que já foram do PSD. Também foi buscar à abstenção.

Como se recuperam estes votos? A questão é difícil, mas o discurso de Luís Montenegro no final do congresso foi um exemplo de como a direita tradicional está a tentar desesperadamente diminuir a votação do Chega à conta de comprar bandeiras perigosas – o discurso anti-imigrante, o discurso reaccionário contra as “aulas de cidadania de facção”, o discurso securitário.

A estratégia não é de hoje. Apesar de todos os números que são apresentados sobre a necessidade profunda de imigrantes em Portugal, Luís Montenegro tem-se gabado de que, desde que é Governo, o número de pedidos de autorização de residência diminuiu. Não sei como são as conversas do primeiro-ministro com os representantes do patronato, assustadíssimos com as políticas anti-imigração, mas tinha curiosidade em saber.

No Governo, considera-se que esta estratégia pode colher votos a prazo no eleitorado do Chega e que Luís Montenegro a faz sem pôr em causa os princípios constitucionais. O problema é que, não tendo evidentemente o discurso xenófobo de André Ventura, o primeiro-ministro toca-o e dá-lhe uma vitória.

Em que é que as aulas de cidadania não são propriamente constitucionais, como o primeiro-ministro sugeriu no seu discurso? Por lá se admitir a existência de famílias diversas? Mas isso é totalmente constitucional. Trata-se simplesmente de ir buscar uma das principais bandeiras do Chega, a que aliás o outrora muito liberal Pedro Passos Coelho já tinha recorrido no discurso de apresentação do já famoso “livro da família”.

O discurso anti-imigração começa por ser bastante anti-cristão (é interessante ver como tantos alegados católicos não se revêem na doutrina da Igreja neste domínio). É também antipatriótico: até aos anos 70, Portugal foi um país de emigrantes e não dos emigrantes qualificados que o Governo agora tanto diz acarinhar. Eram pessoas que fugiam da fome e da pobreza, e eram muitas vezes humilhados e ofendidos nas terras de destino, tal como os imigrantes que hoje chegam a Portugal. Qualquer discurso anti-imigrantes é um insulto à memória deste país, mas a extrema-direita e agora a direita – às vezes tão ciosa dos nossos “heróis nacionais” – nem se apercebe disso.

A extrema-direita pode ganhar tudo, mesmo que o Chega venha a diminuir substancialmente a votação em próximas eleições. O Chega é um exemplo da transumância entre a direita tradicional e a direita populista: tanto André Ventura como muitos dos seus dirigentes vieram do CDS e do PSD. O problema é que agora pode ocorrer em sentido inverso, com a AD a captar o discurso do Chega.

A nível europeu, já estamos a assistir à contaminação total das ideias da direita radical pelo establishment. O recente encontro do primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, trabalhista, com a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni, para discutir imigração, foi um exemplo. Starmer é um óbvio flop nesta como em outras matérias: combateu a “política Ruanda” do governo conservador e agora aconselha-se com Meloni.

A classe política tem de fazer uma reflexão profunda sobre as razões do Chega ter atingido os 50 deputados. Saquear-lhes as bandeiras, contaminando o discurso social-democrata com a retórica da extrema-direita, é uma estratégia que apavora.»


Foi assim...

 


20.10.24

Não é azul, mas é bem original

 


Vaso de porcelana, 1908.
Fanny Garde (para Bing & Grøndahl).


Daqui.

A segurança dos jornalistas

 

«Não existe democracia sem cidadãos informados e sem instituições que estruturem as intermediações no funcionamento da sociedade. No tempo presente, o direito à informação é espezinhado, cultiva-se a opacidade, e está a “normalizar-se” a morte de jornalistas que tentam informar-nos a partir de teatros de guerra e conflito, que proliferam. (…)

Os média tradicionais (sem dúvida importantes) sofrem a influência dos outros. Além disso, estão sujeitos a pressões vindas da estratégia ultraliberal que marca a ação política, do clima belicista que acentua análises dicotómicas entre o bem e o mal, dos negócios do mercado onde se movem atores influentes da geopolítica com objetivos diametralmente opostos. E, a volúpia do imediatismo é tentação fatal. (…)

A Comunicação Social está em estado periclitante que ameaça a democracia. A melhoria das condições de trabalho dos jornalistas e uma melhor utilização da digitalização e de novos média são duas medidas estruturais indispensáveis.»


O país cor-de-rosa do congresso laranja

 

Nilson Garrido

«O congresso do PSD reunido este fim-de-semana em Braga criou uma realidade paralela. Era preciso afastar as ameaças e os desafios com que está condenado a sobreviver, ou não haveria lugar para a festa do regresso ao poder. De Luís Montenegro ao mais anónimo dos militantes, todos se empenharam em contrariar a fragilidade que marcou o primeiro meio ano de vida do Governo. A minoria absoluta da sua base de apoio parlamentar, o estouro da bipolarização entre a esquerda e a direita que levou à fragmentação, as dificuldades internas e externas com que se confronta na recta final da discussão do orçamento, foram deliberadamente escondidas no armário das prioridades. No seu primeiro dia, o Congresso do PSD transformou-se numa história amena, cor-de-rosa, sobre a qual o Governo constrói uma história de sucesso e extrai a fé que necessita para acreditar no cumprimento da legislatura.

A base desta convicção e desta história está na interpretação que o PSD faz da sensibilidade das pessoas sobre estes seis meses de mandato. Vários oradores o disseram e Sebastião Bugalho, a nova estrela do partido que agora tem cartão de militante, disse-o de forma ainda mais clara: “Saiam à rua e perguntem aos portugueses se é a mesma coisa o Governo do PS e o Governo do PSD.” Mesmo que as sondagens tenham registado nas últimas semanas uma tendência favorável ao PSD, nenhum estudo prova o grau de apoio que o congresso garante ter por parte dos cidadãos. Não havendo factos, o PSD precisa de fé. E, de ministros a militantes anónimos, fé é coisa que não falta.

Para legitimar essas narrativas, o PSD socorre-se da teoria das probabilidades. O Governo que está a promover “a maior transformação do país dos últimos oito anos”, como a definiu o ministro das Finanças Miranda Sarmento, só pode merecer respeito, admiração e, vai daí, apoio por parte dos portugueses. A tónica das mudanças, as medidas que permitiram sarar feridas abertas nas escolas, nas forças de segurança e defesa ou nos enfermeiros só podem merecer a gratidão da sociedade. “Dizem que fizemos o mais fácil”, notou Luís Montenegro, para depois perguntar: “Se é assim, por que é que os outros não o fizeram?” Ou, de uma forma mais explícita, “o Governo começou bem e o país está a rever-se no seu trabalho”, como apontou o ministro Manuel Castro Almeida.

Mas se o mérito pela mudança que faz a diferença entre o suposto reformismo do PSD e a alegada inércia do anterior Governo é de todo o partido e do Governo no seu todo, há nesta apologia de um país feliz e grato um destinatário especial: Luís Montenegro. Ao longo do dia, vários congressistas empenharam-se em criar o altar do líder providencial que trouxe de novo o partido à esfera da governação. Alguns vêem nele os méritos humanistas de Francisco Sá Carneiro, o sentido de Estado de Francisco Pinto Balsemão, o reformismo de Cavaco Silva. Entre todos, Paulo Rangel foi o mais expressivo no elogio ao líder. “Tem sido um privilégio” trabalhar com ele, “vê-lo crescer todos os dias”, notar que é cada vez mais “a força tranquila da mudança”.

Juntando todos os nós – a suposta adesão dos portugueses, a proclamada energia reformista e a elogiada liderança do primeiro-ministro –, o congresso chegou de forma natural à quarta grande mensagem, para dentro e para fora: o PSD é por estes dias, garantem, o grande factor de estabilidade política no país. “O nome da estabilidade é o primeiro-ministro de Portugal”, diria Manuel Castro Almeida, uma tese repetida por muitos outros oradores.

Neste país de tons suaves liderado por um homem indiscutível e focado em mudar o país, não couberam as realidades do contexto político. Não há lugar para o imbróglio que se pressente nas negociações do orçamento na especialidade, para as coligações negativas que colocam o Governo num eterno fio da navalha ou para as ameaças da Madeira ou dos Açores, outra vez dispostos a cobrar caro pela aprovação das contas do Estado. O dia era de festa, e no espírito do congresso não cabiam ansiedades. Não se sabe o que o encontro reserva para o seu último dia, mas uma coisa é certa: quando a realidade da política voltar, já na segunda-feira, o PSD lá terá de regressar à penosa tarefa de governar em minoria.»


19.10.24

Mais um

 


«Vaso Eucalipto», de vidro opalescente, com decoração de folhas moldadas e cachos de frutas vermelhas nos pés, 1925.
R. Lallique France (gravado na base).

Daqui.

Vivalma?

 

Carlos Botelho

«Portugal é um país pequeno. Os transportes melhoraram muito. A Internet mudou tudo. E é cada vez mais fácil fazer encomendas que vêm trazer a casa. Para além disso, as grandes cidades estão cada vez mais apinhadas e caras, sujas e poluídas, descaracterizadas e impessoais, destituídas de encanto e de mistério.

Cidades como Lisboa estão já a ser abandonadas pelos habitantes.

A princípio, parecem ser só os bairros tomados de assalto pelos turistas – mas qualquer coisa morre para sempre, quando os lisboetas começam a fugir dos sítios mais bonitos da cidade.»


Doze anos sem ele

 


Leite da humana ternura

 


«The milk of human kindness é uma citação de Shakespeare, que aparece no Macbeth, no mesmo exacto sentido com que a uso para título. Ou seja, Lady Macbeth queixa-se que o seu marido é demasiado mole para fazer o que ela quer, por excesso de bondade ou ternura. Do que ela precisava era de um homem cruel, que não hesitasse em praticar a mais extrema violência para conseguir os seus objectivos, era sangue que queria e não leite.

É esta frase que de que me lembro sempre ao ver o espectáculo cruel de exibir um homem destruído por dentro, para obter determinados objectivos e com indiferença pela mais frágil humanidade, com que essa exibição é usada para obter imagens fortes e audiências. Ninguém teve a humanidade de respeitar o destroço humano de Ricardo Salgado, nem o mostrando aos jornalistas nem exibindo-o nos noticiários e em fotografias.

Todos os dias esse desrespeito pela humanidade mínima está cada vez mais presente, fruto de uma forma de radicalização que usa tudo o que pode. Como aconteceu com a violência do Chega com a mãe das gémeas, ou com a quotidiana exploração da dor nos noticiários televisivos que cada vez mais toma conta das audiências, tornou-se normal fazer aquilo que representa um retrocesso civilizacional, por vontade de ganhar, ganhar uns pontinhos na política e prevalecer na ganância de vender mais televisão para publicidade. A atitude correcta seria dizer "não mostramos imagens do fantasma de Ricardo Salgado, porque isso contraria um princípio básico da nossa deontologia", que aliás vem escrito em todos os livros de estilo, mas ninguém cumpre na competição dos nossos dias.

É informação mostrar Ricardo Salgado assim? Não, não é. É uma mistura de exibicionismo e de vingança, não há um único sentimento bom, humano, nestas imagens. É maldade pelo dinheiro, pela humilhação, porque estamos no reino de Lady Macbeth. Os advogados ficaram contentes, os jornalistas salivaram e os lesados acham que se vingam assim do homem que os roubou.

Comecemos pelos advogados que usaram o homem transformado em coisa para obter resultados no processo. Percebe-se muito bem o que eles querem e, na verdade, são os primeiros culpados. A família foi cúmplice porque podia ter negado o espectáculo. Os juízes também colaboraram numa exibição para evitar “alarme social”, rigorosamente uma treta. Se para ter a certeza que o homem estava doente era preciso mostra-lo, que valor têm os médicos?

Mas isso não isenta os outros, que lhes fazem o serviço de os ajudar a obter o que pretendem do tribunal, com total indiferença. Os advogados manipulam o fantasma, os jornalistas sabem que é isso mesmo que eles querem, e fazem-lhes o frete porque as imagens do destroço dão audiências. É uma vergonha, mas já ninguém tem vergonha.

É Ricardo Salgado um criminoso que deu cabo da vida de muita gente? Muito provavelmente é, mas quem anda ali não é o criminoso que eles passeiam diante das câmaras, é a sombra de uma coisa, de um homem que já não existe e que se chamava Ricardo Salgado. Não quero saber das minudências jurídicas e respeito aqueles a quem ele prejudicou e que devem ser ressarcidos, mas não é possível fazer isso indo-lhe aos bens e aos dos cúmplices que ele teve? Certamente que sim, não era preciso este espectáculo cruel.

Voltemos ao reino de Lady Macbeth. Cada vez mais a radicalização da política, o aumento de agressividade na sociedade, o papel das redes sociais e a transformação de tudo em espectáculo vão no mesmo sentido: os sentimentos de respeito pela humanidade dos outros estão de tal maneira em baixo que é possível ver crescer a indiferença, pela vida humana, pela infelicidade, pela violência sobre os indefesos, sem isso gerar nenhuma reacção significativa. Mostrar crianças mortas em Gaza, ou a berrar de dor nos hospitais, é precedido com a hipócrita prevenção de que as imagens seguintes são chocantes. Pode-se argumentar que a sua passagem se destina a gerar indignação com o que se passa. Talvez, mas duvido que seja esse o verdadeiro motivo. Do mesmo modo o “estilo Trump”, violento, insultuoso, sem peias, do homem que vê um seu apoiante desmaiar e responde-lhe fazendo de conta que dança, parece não incomodar milhões de americanos.»