10.11.24

Mais azul é difícil

 


Jarro azul-marinho, de gargalo esguio e pegas geométricas. 1882.
Rookwood Pottery.

Daqui.

Talvez respostas simples

 


Que o capitalismo age à rédea solta, como máquina afinadíssima de concentração de riqueza, de exploração de quem trabalha (e as “classes médias” cilindradas), de reprodução contínua de pobreza e miséria, mesmo em países onde se produz, ou onde circula, imensa riqueza. Os elevadores sociais são boicotados. Nunca os mais ricos foram tão ricos, e nunca foram tão poderosos. O capitalismo ultraliberal promove o ultraconservadorismo e o fascismo, nos EUA, na Europa e noutras latitudes. Já não os dispensa. E precisa da guerra.»


10.11.1948 – Mário Viegas

 


Mário Viegas festejaria hoje os 76, mas morreu novo, muito novo, antes de chegar aos 48. Fundou três companhias de teatro, actuou em vários países, participou em mais de quinze filmes e só quem for muito jovem não se recordará das séries televisivas «Palavras Ditas» (1984) e «Palavras Vivas» (1991).

Celebérrima ficou a sua leitura do Manifesto Anti-Dantas de Almada Negreiros:



Mas existiu também um Manifesto Anti-Cavaco, lançado por Mário Viegas durante a campanha eleitoral para as legislativas de 1995, em que foi candidato independente na lista da UDP (candidatou-se também à Presidência da República).



E inesquecíveis:




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Em Loures e na América

 


«Faltaram a Kamala Harris os votos de todas as causas que não abraçou; faltou o élan que, apesar de todo o seu bom humor, não se instalou no terreno. Ela participa — e é exemplo — do erro geral que as forças progressistas estão hoje a cometer: procuram conluios à direita de si, sem se aperceberem de quanto nessa aproximação vão perdendo as suas convicções maiores.

Sobre o porte de armas, Kamala afirmou sentir o dever ético e coletivo de estar ao lado da luta dos jovens e dos professores por uma escola livre de violência armada. Lembrou e lamentou o número de feridos e vítimas mortais desses incidentes — 82 em 2023 e 58 em 2024. Poderia também ter-se mostrado preocupada com a saúde mental dos americanos e daí progredir para a erradicação da pobreza, causas seguras da maioria destes incidentes. Podia falar do seu sonho de pacificar a América e de a tornar emocionalmente segura ao ponto de as armas caírem em desuso, uma coisa fora de moda. Ainda que lírico, este discurso inspira, tem essa qualidade política — e poética — tão necessária. Mas o que a candidata fez em vez disso foi proclamar aos quatro ventos que também ela tinha uma arma.

Harris lê os relatórios, sabe que o fracking é uma atividade com sérios impactos no ambiente terrestre. E sabe que não investir no seu fim tem um custo acrescido a jusante, com a mitigação de desastres humanos e materiais infligidos por um clima zangado e intempestivo. Mas, a meio da campanha, muda de ideias; afinal não é contra o fracking, ou pelo menos não o irá banir absolutamente. Resultado: ambientalistas furibundos, clamores de “traição”.

Da Palestina, chegavam imagens abissalmente contrastantes com a exuberância dos comícios da campanha democrata. Sobre o conflito, Kamala reafirma a sua determinação em estar ao lado de Israel, mas devia na frase seguinte condenar as práticas de guerra do atual Governo israelita, identificando-o como extremista e instando-o a fazer diferente, com urgência, porque, com armas americanas e de forma indevida, estavam a morrer muitos palestinianos, todos os dias. Mas não, tristemente refugiou-se, ou teve de se refugiar, em declarações de impotência bem-intencionada, numa indignação contida de que quem adia consente.

Kamala resultou numa candidata programada, sem ginga ou swag, em oposição ao improviso laranja e tagarela do seu rival. Não existiu assim uma sinceridade nova à qual aderir, muito graças a esta recém-adquirida mania de arrastar o pé para a direita, num medo parolo de se ser tomado por extremista, socialista, comunista, radical, ou, mais recentemente, por woke. Quando Kamala é acusada de “perigosa marxista”, podia ter esclarecido que conhece mal o marxismo — o que deve ser verdade —, mas que a justiça social é um imperativo universal e que ninguém, nenhum nome ou ideologia, se pode dela apoderar. Em vez disso, distanciou-se de tudo o que pudesse figurar ligeiramente à esquerda de si.

Harris, em lugar de se tentar distinguir como implacável promotora pública que mandava resmas de homens maus para a prisão, tipo heroína bidimensional da Marvel, podia ter construído uma figura apaixonada pela justiça ao ponto de ter uma moral e uma sinceridade suas. Poderia ter manifestado um ideário justo, esperançoso, com valores progressistas e sarapintado de utopia. Se no cômputo geral isso lhe traria mais ou menos votos, fica por saber. Uma vantagem seria certa: todos estaríamos hoje mais preparados, unidos, animados e inspirados por uma “agenda” capaz de enfrentar o que aí vem. Por mim, não se arreda o pé; seja na América ou na Câmara de Loures.»


Comentar o governo, eu?

 



9.11.24

É mesmo bonito!

 


Vaso "Hibisco", cerca de 1897.
Estúdios Tiffany,


Daqui.

09.11.1975 – «O povo é sereno, é apenas fumaça!»

 


Há 49 anos, a pouco mais de duas semanas do 25 de Novembro, os ânimos andavam bem exaltados.

PS e PPD, secundados por CDS, PPM e PCP(m-l), convocaram uma manifestação de apoio ao VI Governo Provisório e ao primeiro-ministro, com o lema: «Pinheiro, em frente, tens aqui a tua gente!». O Terreiro do Paço encheu-se, mas ninguém recordaria hoje o facto (todos os espaços se enchiam, dia sim dia sim…) sem as granadas de fumo e de gás lacrimogéneo e mais alguns tiros que deflagraram durante o discurso de Pinheiro de Azevedo. Iniciativa de autoria não muito clara e objecto de acusações cruzadas, mas que foi um enorme susto para muitos e gáudio para a esquerda da esquerda que viu a cena em casa, em directo televisivo.

«O povo é sereno, é apenas fumaça!», gritou o então primeiro-ministro, numa tirada que ficou para a pequena história dos últimos dias do PREC e que pode ser ouvida neste vídeo:


09.11.1989 – O dia em que caiu um muro em Berlim

 


Crise da democracia

 

Jackson Pollock

«Tudo é mau nos resultados eleitorais dos EUA. Acontece. Já não é a primeira vez na história que demagogos, populistas, protoditadores ganham eleições e, sem excepção, os efeitos são sempre maus. Não são maus para toda a gente, nem são maus para tudo, mas no geral são maus, em primeiro lugar, para a democracia, depois, dependendo do país, são maus para outros países ou para o mundo. No caso de Trump, são maus para quase tudo, a não ser para a direita radical em todo o mundo e para a Rússia porque, como se vê, eles são “estranhos companheiros de cama”, para não dizer em inglês.

Como quem me lê sabe, não foram uma surpresa estes resultados e a preocupação com a possibilidade e depois com a sua concretização. Estando a escrever dos EUA, em plena Trumplândia, e tendo tido já várias discussões com votantes no Trump, lendo a propaganda republicana, ouvindo as rádios como a Patriot Radio, tenho uma noção do que levou Trump ao poder. Percebe-se muito bem como os MAGA e Trump ganharam primeiro a guerra cultural, depois a guerra política, por esta ordem. A esquerda que anda há mais de uma década convencida das suas “causas fracturantes”, que nos EUA tem consequências práticas, muito mais absurdas do que na Europa, acantonou-se nas elites e perdeu as suas bases sociais, a começar pelos sindicatos. Se lessem Marx, perceberiam que trocar “bases sociais” por “bases intelectuais” é derrota certa. Não é razão única, mas foi a fundação em que todo o resto se construiu: medos, ódio ao “outro”, identidade construída contra o “outro”, radicalidade grupal, substituição da ciência e do saber por fake news e teorias conspirativas, ignorância agressiva, discurso violento nas redes sociais que são excelentes para isso, dissolução de muitos mecanismos que são fundamentais para haver democracia. Não é um anátema contra os votantes de Trump, mas é isso mesmo que os “faz”.

Eu não me irrito com muita coisa, mas a minimização do Trump, antes e depois das eleições, sob várias formas e feitios, deixa-me “balístico” e a cantar o hino nacional como se fazia antes do 25 de Abril, com uma subida do tom de voz numa certa parte da letra. A Marselhesa também serve. E a Constituição americana também.

Não tenham ilusões: há muita gente em Portugal, no processo de radicalização à direita dos últimos anos, que está feliz com a vitória de Trump, e não é só o Chega. Estão felizes com a derrota dos “outros”, os socialistas, os bloquistas, os centristas, os do “sistema”, e essa felicidade transparece por todo o lado.

Sem dúvida que é necessária análise no comentário e na academia sobre as “razões” do que se passou, até porque há muita coisa nova no movimento MAGA e nas razões do seu crescimento e no papel carismático de Trump. Mas para quem sabe o que é a fragilidade da democracia, há um combate político imediato a travar. Nós não estamos nos anos 30, mas também estamos nos anos 30.

Por tudo isto, deve denunciar-se a minimização em curso do que se passou, e as suas várias formas – uma delas é só falar dos malefícios e asneiras dos democratas em tom de fúria, muito trumpista, aliás, para evitar falar dos desmandos de Trump; outra é dizer que não se deve tomar à letra o que ele diz, que hoje tem uma equipa e um programa (um susto de equipa e o programa é o do Project 2025), que não vai fazer o que disse que ia fazer (esquecendo que ele é um narcisista patológico e, pelo menos, vai tentar, deixando um rastro de estragos pelo caminho), que não vai entregar a Ucrânia a Putin, que não vai aprovar taxas aduaneiras retaliatórias, que não se vai vingar (vai, vai) dos seus opositores, e que não vai fazer nada do que prometeu no “primeiro dia” em que quer ser “ditador”. Esquecem-se de que Trump é um criminoso que se vai perdoar a si próprio e aos assaltantes condenados do 6 de Janeiro, e que não há hoje para um homem como Trump quaisquer “checks and balances”, com uma interpretação absoluta do poder presidencial, tendo na mão o Supremo Tribunal, o Senado e talvez a Câmara dos Representantes.

Deixei para o fim a questão, que presumo alguns vão logo fazer depois de lerem o primeiro parágrafo deste artigo: "E, então, a pujança da democracia americana, o valor do voto popular, a escolha inequívoca dos americanos?" É que há um pequeno problema, o mesmo com que faz que seja uma asneira dizer que Hitler subiu ao poder democraticamente: é que a democracia não é apenas a vontade popular expressa no voto, é o primado da lei, o valor dos procedimentos constitucionais, o respeito pelos limites e separação dos poderes. Democracia apenas com o voto, sem a lei, é demagogia e a demagogia é o terreno ideal para os ditadores. Esperem por seis meses de Trump e voltamos aqui.»


8.11.24

Há mais vida para além de Trump!

 



António Capinha


Edmundo Pedro: seriam 106

 


Tive o privilégio de ser sua amiga, de gostar muito de conversar com ele, de ler muitos dos seus textos por vezes antes de serem publicados. Quando fez 99, referimos a festa inevitável que teria lugar para assinalar os 100 – festa que já não existiu.

Retomo um resumido «percurso existencial», de que gosto muito, escrito pelo próprio:

«Comecei a trabalhar aos doze anos numa oficina de serralharia. Daí em diante, interrompi o curso diurno da Escola Industrial Machado de Castro e passei a estudar à noite. Aos treze, entrei para o Arsenal da Marinha. Aí conheci dois vultos cimeiros do movimento operário de então, meus colegas de trabalho na oficina de máquinas do Arsenal: António Bento Gonçalves e Francisco Paula de Oliveira. Este último viria a celebrizar-se sob o pseudónimo de “Pavel”.

O primeiro era então Secretário-geral do PCP, o segundo Secretário-geral da Federação da Juventude Comunista. Ambos exerceram no meu espírito uma influência determinante.

Filiei-me na Juventude Comunista aos treze anos, pouco depois de ser admitido naquela empresa do Estado.

Fui detido pela primeira vez pela polícia política no dia 17 de Janeiro de 1934, pouco depois de ter completado os 15 anos de idade, por estar envolvido na preparação da tentativa de greve geral que deflagraria no dia seguinte. A minha primeira detenção está, pois, estreitamente ligada ao movimento de protesto contra a liquidação do sindicalismo livre. Esse movimento ficaria conhecido na história das lutas operárias como o «18 de Janeiro». Pela minha acção na preparação desse evento, fui condenado pelo Tribunal Militar Especial, acabado de criar por Salazar, à pena de um ano de prisão e à perda dos «direitos políticos» durante cinco anos…

Logo que fui libertado, retomei a oposição à ditadura como militante da Juventude Comunista. Em Abril de 1935 fui eleito, com Álvaro Cunhal, entre outros, para a direcção da Juventude Comunista.

Preso, uma vez mais, em Fevereiro de 1936, sob a acusação de ser dirigente da JC, acabaria, em Outubro desse ano, por ser deportado para Cabo Verde, onde fui estrear o tristemente célebre Campo de Concentração do Tarrafal. Ao fim de nove anos, regressei a Lisboa para ser, de novo, julgado no Tribunal Militar Especial. Depois de ter aguardado julgamento, ao todo, durante dez anos, fui condenado, por aquele tribunal de excepção, à pena de vinte e dois meses de prisão correccional, acrescida da perda dos «direitos políticos» pelo período de dez anos!

Ao longo de todo tempo que mediou entre o fim de 1945 e o 25 de Abril de 1974, conspirei sempre contra a ditadura. De forma especialmente activa, a partir da campanha para a Presidência da República do general Humberto Delgado, durante a qual comecei a preparar, com Piteira Santos, Varela Gomes e outros, um movimento insurreccional que pusesse fim à ditadura.

Estive envolvido, com o grupo inspirado por Fernando Piteira Santos, no «12 de Março» de 1959. Mas, dessa vez, não fui referenciado na polícia política.

Dois anos depois, no dia 1 de Janeiro de 1962, tomei uma parte muito activa no chamado «golpe de Beja», ocorrido na madrugada daquele dia, no Quartel de Infantaria Três, aquartelado na cidade de Beja. Depois daquele movimento ter abortado, fugi para o Algarve onde fui detido, em Tavira, na manhã desse mesmo dia, junto com Manuel Serra e o então capitão Eugénio de Oliveira. Pela minha intervenção nesse movimento fui condenado, em 1964, a três anos e oito meses de prisão maior e à perda do «direitos políticos» pelo período de quinze anos. Cumpri quatro anos de cadeia. Fui libertado no fim de 1965.

Aderi ao Partido Socialista, por intermédio de Mário Soares, em Setembro de 1973. Sou, portanto, um dos fundadores daquele partido.

No primeiro congresso realizado na legalidade, em Dezembro de 1974, fui eleito para a sua Comissão Nacional e, em seguida, para a sua Comissão Política. Fui integrado no seu Secretariado Nacional em 1975. Em 25 de Abril de 1976, nas primeiras eleições legislativas, fui eleito Deputado pelo PS. Exerci esse cargo durante onze anos. Em 1977/78, fui designado Presidente da RTP. Actualmente continuo no PS, mas como militante de base.

Ninguém na minha família escapou à repressão salazarista. O meu pai estreou comigo o Campo de Concentração do Tarrafal. Esteve ali, tal como eu, cerca de nove anos. Foi, reconhecidamente, o mais perseguido de todos os presos daquele presídio de má memória. É considerado o mártir do Tarrafal. Morreu no exílio, em França, dois anos antes do 25 de Abril. A minha mãe esteve detida durante longo tempo por ser militante do PCP. A minha irmã Gabriela, que fugira de Portugal para evitar ser detida pela sua actividade no âmbito do movimento estudantil, morreu em Paris, aos vinte anos, na emigração política. Um irmão meu, o João Ervedoso, foi assassinado no âmbito de uma manifestação estudantil, por um provocador ao serviço da polícia política, quando tinha acabado de completar catorze anos. O meu irmão Germano, o mais novo dos três, entretanto falecido, esteve detido durante três anos por envolvimento na preparação da tentativa insurreccional de Beja. A minha própria mulher, para não fugir à sina da família, também experimentou os cárceres da polícia política.»
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É a classe, estúpido!

 


«Trump ganhou entre os hispânicos porque eles se preocupam com a segurança, com a economia, com os temas de que se fala à volta da mesa da cozinha”, disse, no encerramento da noite eleitoral da CNN, David Urban, conselheiro de Trump na campanha de 2016. Van Jones, advogado de direitos cívicos e democrata, respondeu-lhe com as afro-americanas magoadas por não assistirem à vitória de uma delas, com os trans e com os imigrantes indocumentados. Disse, com razão, que não será a elite a pagar o preço desta eleição. Mas não concedeu na parte em que o republicano tinha razão: sendo brancos, negros, hispânicos ou homossexuais, os americanos que fizeram a diferença, votando em Trump ou ficando em casa, fizeram-no por causa da economia, dos salários, das contas para pagar. Aquilo de que a esquerda costumava falar.

Esta foi, antes de tudo, uma derrota dos democratas. Trump até perdeu 1,6 milhões de votos. Só que Kamala perdeu mais de 13 milhões. Desta vez, não são precisos cientistas políticos para explicar o resultado das eleições: 72% dos norte-americanos estão insatisfeitos com a situa-ção do país, dois terços dizem que a economia está mal e, destes, 70% votaram em Trump. Kamala ficou abaixo de Biden em todo o lado, perdeu voto negro e, acima de tudo, perdeu voto hispânico. Durante dois anos, a inflação superou o aumento dos salários. Apesar de isso ter sido, em grande parte, compensado nos dois últimos anos, com um aumento real de salários, a cicatriz ficou lá. Quase todos os governos democráticos foram castigados pela crise inflacionista. Assim como Trump foi castigado pela pandemia. Não sendo os números da economia maus, procuramos a razão do voto em erros de perceção dos eleitores. Mas de que andaram os democratas a falar, durante este tempo todo? Da democracia, com razão. Se ainda deram alguma luta foi por causa disso. E do que acham que interessa a cada nicho eleitoral em que pensam quando pensam em política. Porque teimam em seccioná-lo pela etnia, género ou orientação sexual para explicar um fenómeno que está nos velhos livros de política: a economia, estúpidos!

Diz-se que os democratas abandonaram os trabalhadores brancos, mas o que toda a gente ouve é a palavra “brancos”, não a palavra “trabalhadores”. Essa é a grande vitória do trumpismo. Como se viu pelo comportamento eleitoral, quando a condição social supera a identitária, trabalhadores hispânicos e negros votam como os trabalhadores brancos. E, no entanto, continuamos a falar como se o racismo e o sexismo de Trump fossem o maior segredo para a sua vitória. Quando, num debate, em 2018, o instalado congressista democrata Joe Crowley exibia o seu trabalho pelas minorias, Alexandria Ocasio-Cortez, a jovem de 29 anos que o iria derrotar, não lhe recordou que era uma mulher porto-riquenha. Disse-lhe: “O que está em causa não é a diversidade ou a raça, é a classe.” Só que a palavra “classe”, ao contrário de “etnia” e “orientação sexual”, passou a ter um peso ideológico que a tornou impronunciável. Esta é a derrota histórica que deu à extrema-direita a hegemonia na classe trabalhadora num dos países mais desiguais do mundo desenvolvido. De tal forma, que já nem compreendemos um fenómeno eleitoral que nada tem de extraordinário.

Nestas circunstâncias, Kamala até fez milagres. Em três meses, com baixa popularidade e sem ter ido a primárias, preparou um debate que venceu e fez campanha por todo um continente. E ainda teve mais votos do que Hillary, em 2016. O pecado original foi a recandidatura de Biden. Kamala só foi apanhar os cacos. Ainda assim, como é que Trump, depois do 6 de janeiro, consegue ser um dos dois republicanos que, desde 1988, vence no voto popular? Porque o sistema normalizou uma tentativa de golpe contra a democracia. Nisto, não há meios termos: ou era condenado e preso, ou um candidato como os outros.

Este não é o Trump de 2016. Controla a Presidência, o Senado e provavelmente a Câmara dos Representantes. O Supremo tornou-o inimputável, mudando a natureza do regime. Esmagou o partido republicano, que é um mero suporte institucional do movimento MAGA. E rodeou-se de gente ainda mais fanática e perigosa do que ele. Começa, em janeiro, uma nova ordem de bilionários tecnológicos que se sentarão na cadeira do poder político para moldar o mundo aos seus sonhos distópicos. As duas guerras que nos assustam seguirão para o seu epílogo trágico. Esta vitória vai-se disseminar por todo o mundo ocidental. E vai ser tudo demasiado rápido para nos prepararmos. Mas podemos, ao menos, perceber que as respostas que temos dado não resultam. Talvez as certas sejam as que esquecemos.»