«Quando, a 27 de outubro, os soldados israelitas entraram em Gaza, levaram seus telemóveis. Como os atacantes do Hamas, nos massacres de 7 de outubro, deram muito material de horror ao mundo. Foi a partir daí que a Al Jazeera decidiu trabalhar, fazendo o que qualquer órgão de comunicação social poderia ter feito: contar os crimes de guerra filmados pelos próprios criminosos.
Este está a ser, como disse a romancista palestiniana Susan Abulhawa à Al Jazeera, o primeiro genocídio ao vivo. Está tudo no Instagram, no Facebook, Tiktok, no YouTube, filmado e muitas vezes assinado próprios autores, com detalhes do local e do dia. É um autêntico arquivo de crimes de guerra.
A sensação de impunidade resulta da banalização da barbárie, muito para lá do campo de batalha. No TikTok, jovens mulheres militares, com o especto ocidental que nos permite sentir empatia por elas, dançam e cantam, fardadas, nos quartéis, tornando o genocídio instagramável. O povo israelita vê e naturaliza a alegria da guerra e, numa discoteca à pinha, canta "que a aldeia pegue fogo!" Vídeos de influencers parodiam a falta de água e eletricidade em Gaza, que mata milhares de crianças em Gaza, e os ferimentos supostamente simulados dos palestinianos.
Apesar de ter contribuído fortemente, a insensibilidade coletiva, que acompanha todos os crimes mais monstruosos da história, não resulta apenas do trauma de 7 de outubro. Foi incutida por um governo de extremistas: “Não é verdade que os civis não estejam envolvidos, é uma nação inteira que é responsável”, disse o Presidente Isaac Herzog. Não são palavras. São atos quotidianos em Gaza, com uma punição coletiva em larguíssima escala, que dura há um ano.
CRIMES NAS REDES
O jornalismo e a justiça têm as provas que precisam, entregues pelos próprios criminosos, tal é o sentimento de impunidade que lhes foi incutido pelos superiores. A própria Al Jazeera, que investigou 2500 contas nas redes sociais, ficou espantada com a facilidade do trabalho, quando esperava gastar muito mais recursos e tempo. Mostrou-as a especialistas e cruzou com o trabalho de terreno das suas equipas, procurando testemunhas e as imagens de drones israelitas.
Nos vídeos e nas fotos, encontramos destruição arbitrária, sem qualquer fim militar, de infraestruturas e casas; maus tratos a detidos; e a utilização de escudos humanos, acusação que costumam fazer aos seus inimigos. Tudo violações do direito internacional, tudo crimes de guerra.
Podemos ver a destruição e a pilhagem do interior de casas de palestinianos, registadas com alegria, para publicar nas redes. Charlie Herbert, um ex-general britânico entrevistado pela Al Jazeera, fala de uma falta de disciplina institucionalizada, bem diferente de excessos pessoais. E a destruição de todas as infraestruturas, sem qualquer critério militar. Uma política de terraplanagem para tornar a reconstrução material, económica, cultural e emocional impossível. Basta ver as imagens de satélite de Gaza para perceber até que ponto esta ilegalidade foi levada. O inimigo não é o Hamas, é todo um povo, como avisou o Presidente.
O pináculo da destruição sem interesse militar, detonando edifícios vazios, aconteceu em Khirbet Khuza’a, uma cidade de 13000 habitantes perto do muro que separa Gaza de Israel. Foi toda, mesmo toda, dinamitada. Razão? É a cidade mais próxima de Nir Oz, o kibutz mais violentamente atacado a 7 de outubro. Vingança planeada pelos comandos, não uma loucura de jovens soldados perturbados pela guerra.
Também vemos a humilhação de detidos, exibidos e filmados nas suas roupas íntimas. Ou filmados vendados e de joelhos, urinam de medo. Ou em posições que os ridicularizam. Ou relatos de quem foi obrigado a deitar-se sobre cadáveres quase em decomposição. Detidos foram violados, espancados, arrastados pelo chão, exibindo com orgulho as marcas de umas costas torturadas... A estrela de David cravada nas costas de um deles talvez seja das imagens mais sinistras, por revelar, insultando o povo mais perseguido, a amnésia histórica de quem ali espetou a faca.
Depois, há os escudos humanos. De forma sistemática e organizada, soldados israelitas usam detidos como armadilhas para emboscadas ou para inspecionar edifícios, pondo-lhes câmaras e monitorizado-os através de drones, para evitar que sejam os soldados a correr riscos. Põem-nos à frente de tanques ou prendem-nos a veículos militares, para evitar ataques. Um detido, depois de ser espancado e torturado, foi usado como mensageiros para mandar evacuar um hospital. No fim, foi abatido à distância. Está tudo registado.
NINGUÉM OS IMPEDIRÁ
A Al-Jazhera complementa, para garantir que o contexto confirma as imagens, com testemunhos de familiares, no terreno. Um dos testemunhos conta o que ouviu de um militar israelita, enquanto o filho era torturado no quarto ao lado: “Nada nos impede de matá-lo. Poderíamos simplesmente matar-vos a todos. Ninguém nos impedirá e ninguém nos ligará para prestar contas.”
E há a utilização de snipers treinados para disparar sobre jornalistas, crianças, quem dá apoio médico. Ou os ataques a ajuda humanitária autorizada, porque a fome é, em Gaza, uma poderosa arma de guerra.
A parte menos impressionável deste programa é a que nos devia assustar mais. Exatamente pela sua limpeza tecnológica. Segundo a revista israelita “+972” (a IDF nega), Israel terá marcado milhares de habitantes como suspeitos, socorrendo-se de Inteligência Artificial, que tem um algoritmo que cruzou vários critérios para as selecionar. E, para que os ataques fossem mais rápidos do que um humano conseguiria, também a usou para a localização destas pessoas, escolhendo o momento em que estavam em casa (mais fácil) para o ataque – com os “danos colaterais” que se imagina. Este segundo programa chama-se "Onde está o papá?" Não é novidade a industrialização da morte, quando é preciso responder à necessidade de rápida produtividade, usando tecnologia avançada e organização metódica. É bastante admirada por quem tem pouca memória.
NO BANCO DOS RÉUS
Todos estes soldados têm comandantes que, se houver justiça, terão de ser punidos. No topo do comando está Benjamin Netanyahu, primeiro responsável pela morte de 40 mil pessoas em Gaza (nem dos reféns quis saber) e veremos por quantas mais no Líbano e na Síria. Como não partilho dos seus valores, não quero que façam com ele o que fez com Haniyeh ou Nasrallah. Desejo vê-lo no banco dos réus. Se isso não acontecer, assumamos o que diz Susan Abulhawa: “conceitos como diretos humanos e direto internacional são para pessoas brancas e ocidentais”.
Esta é a parte da lei. Mas os cúmplices políticos são os que podiam travar os crimes e não o fizeram. São os EUA, a Alemanha, a França ou o Reino Unido que, durante a carnificina, dão armas, informação e apoio militar e operacional ao criminoso, ao mesmo tempo que lançam sonsos apelos de cessar-fogo.
O título deste artigo é inspirado no livro de Primo Levi, “Se isto é um Homem”, que relata a sua terrível experiência em Auschwitz. Não procuro paralelos. Mas, se decidirmos isolar a experiência da desumanização do outro a um único momento da história, dificilmente aprenderemos alguma coisa com ela com ela.
“Poderíamos simplesmente matar-vos a todos, ninguém nos impedirá”, disse o soldado carregado de razão. Na reportagem, uma palestiniana grita, em desespero, para o cameraman: “Estás a filmar para quem? Ninguém se importa connosco!” Os palestinianos sabem isso. E ninguém pode dizer que não sabe. Está tudo espalhado nas redes.»