19.10.24

Leite da humana ternura

 


«The milk of human kindness é uma citação de Shakespeare, que aparece no Macbeth, no mesmo exacto sentido com que a uso para título. Ou seja, Lady Macbeth queixa-se que o seu marido é demasiado mole para fazer o que ela quer, por excesso de bondade ou ternura. Do que ela precisava era de um homem cruel, que não hesitasse em praticar a mais extrema violência para conseguir os seus objectivos, era sangue que queria e não leite.

É esta frase que de que me lembro sempre ao ver o espectáculo cruel de exibir um homem destruído por dentro, para obter determinados objectivos e com indiferença pela mais frágil humanidade, com que essa exibição é usada para obter imagens fortes e audiências. Ninguém teve a humanidade de respeitar o destroço humano de Ricardo Salgado, nem o mostrando aos jornalistas nem exibindo-o nos noticiários e em fotografias.

Todos os dias esse desrespeito pela humanidade mínima está cada vez mais presente, fruto de uma forma de radicalização que usa tudo o que pode. Como aconteceu com a violência do Chega com a mãe das gémeas, ou com a quotidiana exploração da dor nos noticiários televisivos que cada vez mais toma conta das audiências, tornou-se normal fazer aquilo que representa um retrocesso civilizacional, por vontade de ganhar, ganhar uns pontinhos na política e prevalecer na ganância de vender mais televisão para publicidade. A atitude correcta seria dizer "não mostramos imagens do fantasma de Ricardo Salgado, porque isso contraria um princípio básico da nossa deontologia", que aliás vem escrito em todos os livros de estilo, mas ninguém cumpre na competição dos nossos dias.

É informação mostrar Ricardo Salgado assim? Não, não é. É uma mistura de exibicionismo e de vingança, não há um único sentimento bom, humano, nestas imagens. É maldade pelo dinheiro, pela humilhação, porque estamos no reino de Lady Macbeth. Os advogados ficaram contentes, os jornalistas salivaram e os lesados acham que se vingam assim do homem que os roubou.

Comecemos pelos advogados que usaram o homem transformado em coisa para obter resultados no processo. Percebe-se muito bem o que eles querem e, na verdade, são os primeiros culpados. A família foi cúmplice porque podia ter negado o espectáculo. Os juízes também colaboraram numa exibição para evitar “alarme social”, rigorosamente uma treta. Se para ter a certeza que o homem estava doente era preciso mostra-lo, que valor têm os médicos?

Mas isso não isenta os outros, que lhes fazem o serviço de os ajudar a obter o que pretendem do tribunal, com total indiferença. Os advogados manipulam o fantasma, os jornalistas sabem que é isso mesmo que eles querem, e fazem-lhes o frete porque as imagens do destroço dão audiências. É uma vergonha, mas já ninguém tem vergonha.

É Ricardo Salgado um criminoso que deu cabo da vida de muita gente? Muito provavelmente é, mas quem anda ali não é o criminoso que eles passeiam diante das câmaras, é a sombra de uma coisa, de um homem que já não existe e que se chamava Ricardo Salgado. Não quero saber das minudências jurídicas e respeito aqueles a quem ele prejudicou e que devem ser ressarcidos, mas não é possível fazer isso indo-lhe aos bens e aos dos cúmplices que ele teve? Certamente que sim, não era preciso este espectáculo cruel.

Voltemos ao reino de Lady Macbeth. Cada vez mais a radicalização da política, o aumento de agressividade na sociedade, o papel das redes sociais e a transformação de tudo em espectáculo vão no mesmo sentido: os sentimentos de respeito pela humanidade dos outros estão de tal maneira em baixo que é possível ver crescer a indiferença, pela vida humana, pela infelicidade, pela violência sobre os indefesos, sem isso gerar nenhuma reacção significativa. Mostrar crianças mortas em Gaza, ou a berrar de dor nos hospitais, é precedido com a hipócrita prevenção de que as imagens seguintes são chocantes. Pode-se argumentar que a sua passagem se destina a gerar indignação com o que se passa. Talvez, mas duvido que seja esse o verdadeiro motivo. Do mesmo modo o “estilo Trump”, violento, insultuoso, sem peias, do homem que vê um seu apoiante desmaiar e responde-lhe fazendo de conta que dança, parece não incomodar milhões de americanos.»


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