«O meu problema com a entrevista de Pedro Nuno Santos, na parte relativa à imigração, não é ter recuado na manifestação de interesse. Sei que a solução atual é uma mentira. Como continuamos a precisar de imigrantes e a única forma deles virem legalmente é por via de consulados que nunca poderão dar esta resposta, só se permitirá a imigração ilegal. A que compete com salários decentes e direitos e fomenta a marginalidade. A que agrava todos os problemas que se dizem querer resolver.
É possível que seja difícil, com uma União com fronteiras internas abertas, um país manter uma política de imigração decente quando todos os outros, reagindo à extrema-direita, optam por transformar a Europa numa temerosa e decadente fortaleza. Mas para se a dizer que os imigrantes vinham por causa da Manifestação de Interesses, porque esta funcionava como chamada, e não porque há trabalho para eles, têm de se apresentar dados que demonstrem essa relação de causalidade.
Em 2023, foram concedidas cerca 330 mil autorizações de residência, mas a esmagadora maioria foi ao abrigo do novo visto CPLP, com os brasileiros, grandes beneficiados da nova lei, a representarem 70%. Apenas 11% dos imigrantes usaram a manifestação de interesse para se regularizarem. Na entrevista, as respostas Pedro Nuno Santos foram confusas. Veremos, quando apresentar as propostas concretas do PS, se houve uma mudança sustentada de discurso ou se também anda a trabalhar com perceções.
É verdade que as escolas, que até precisavam de mais alunos em muitas regiões do país, não se prepararam para o impacto de receber crianças que não falam a língua. É verdade que a aprendizagem da língua, incluindo para adultos, é um elemento central (e até obrigatório) para a integração. É possível que o SNS se tenha de adaptar a este aumento da população. Concentre-se então o Partido Socialista em propostas para agir sobre estas carências, de uma forma positiva e distinguindo-se do oportunismo da AD, que trata os imigrantes como um problema que deveríamos evitar. Porque se precisamos dos imigrantes (e não apenas na produção), é na preparação para a sua receção, e não na redução do número de imigrantes de um país muitíssimo envelhecido, que está a resposta.
Mas tudo isto é um debate em que não estão em causa fronteiras ideológicas ou civilizacionais. Há muitas formas de regular os fluxos migratórios e não trai os valores da esquerda estar disponível para os debater. Bem diferente é dizer que os imigrantes têm de partilhar “a nossa cultura, os nossos valores” e o nosso “modo de vida”. Nossos, de quem? Os meus e os de Ribeiro e Castro? Os do Pedro Nuno Santos e de Mário Machado? Esta conversa, sim, é um problema para alguém de esquerda. Porque assume que os países têm valores homogéneos.
Pedro Nuno Santos explica, falando dos direit§os das mulheres. Num país com enormes níveis de violência doméstica, onde a igualdade laboral ainda é uma miragem, partilhamos todos esses valores? Não me parece.
O que os imigrantes têm de respeitar é a lei e a Constituição. Como todos nós. Nem mais nem menos do que isso. Ou por ventura exigimos a um português que partilhe qualquer valor moral que não esteja plasmado na lei ou na Constituição? Imaginando que existem valores nacionais, exigimos aos imigrantes que sejam “mais portugueses” do que os próprios portugueses? Pedro Nuno Santos até fala da lei, mas não como único limite.
Muita gente viu esta intervenção como uma tentativa de recentramento do PS. Esta leitura contem dois equívocos.
O primeiro resulta da conversa que instalou, para fins eleitorais, quando se percebeu que Pedro Nuno Santos ia ser o próximo líder do PS: que ele é um radical. Não é. Nunca foi. No papel do Estado na economia e no que deve ser o Estado Social, é (ou era) da esquerda clássica que a direita passou a achar radical quando impôs toda a sua mundividência. Manteve-se mais fiel aos valores da social-democracia tradicional do que outros socialistas, é verdade. Mas em muitos dos outros temas até será mais conservador do que António Costa ou José Sócrates.
O segundo equívoco é achar que empurrar o PS para a direita é recentrá-lo. É apenas deslocar o centro para a direita. Porque a posição que o PS tinha sobre imigração era, é bom recordar, a consensual ao centro. O centro era, neste tema, o PS.
Compreendo que Pedro Nuno Santos não queira concentrar o debate político na imigração ou na segurança, temas confortáveis para a direita. Que queira que se volte a falar de trabalho, economia, Estado Social, temas onde a esquerda ainda disputa a hegemonia. Que não queira acantonar a esquerda numa redutora aliança de minorias, que matou o partido democrata nos Estados Unidos.
Só que a imigração também é um tema do mundo do trabalho. Bem antigo, por sinal. E ao inclinar este debate para a direita, sobretudo quando lhe acrescentou a ideia de que existem “valores nacionais”, em vez de se concentrar na defesa transversal dos direitos sociais e laborais, Pedro Nuno Santos fez o que tanto criticou à terceira via, no debate económico: aceitou a derrota e adaptou-se. Os temas são outros porque os tempos são outros. Apenas isso.
Seria diferente se, a esta deslocação em matérias como a imigração, correspondesse uma diferenciação clara com a AD em matéria económica e fiscal ou na defesa do papel regulador do Estado. Se não correspondesse ao um suposto “recentramento”, como comentadores de direita celebraram, mas a uma mudança de prioridades. Mas vendo a cedência no IRC, no IRS Jovem ou na lei dos solos e desconhecendo seja o que for em que essa firmeza se sinta, fica a pergunta: Pedro Nuno Santos é à esquerda de Antonio Costa em quê, exatamente?
Pelo contrário, e esse foi um risco que apontei no passado, esperando sempre que não se confirmasse, são os que sentem que têm de provar permanentemente que não são radicais que, muitas vezes, empurram os seus partidos ainda mais para a direita, gerindo a sua própria derrota. Veremos se é o caso.»