26.8.23

Taças

 


Taça Silberiris com decoração de esmalte, cerca de 1900.
Loetz.


Daqui.
.

Políticas que metem medo

 

«Mete medo sabermos que, nas praças de jorna que contratam médicos à tarefa, é atribuído um valor remuneratório mais elevado às horas trabalhadas por aqueles que mais altas passam aos doentes. A ganância e a impunidade dos interesses privados sobrepõem-se ao direito à vida. Uma engrenagem perversa, com cada vez mais tentáculos, vem sugando e atrofiando o Serviço Nacional de Saúde (SNS). E todos os governantes sabem que as políticas se desenham e efetivam por ação ou por inação.»

.

26.08.1914 – Julio Cortázar

 


Julio Cortázar nasceu na embaixada argentina em Ixelles, Bruxelas, poucos dias depois de as tropas alemãs terem entrado na cidade. Com três anos foi para a país de origem dos pais, de onde viria a sair com 37, em oposição à ditadura. Instalou-se então em Paris e foi lá que viveu até morrer.

Inovador como poucos, mestre no conto curto, iniciou uma nova forma de fazer literatura latino-americana e com ela influenciou muito e muitos. «Blow-up», de Michelangelo Antonioni, baseia-se num dos seus contos: «As Babas do Diabo».
.

Será Prigojin o último rir?

 


«Há poucos dias, Evgueni Prigojin, chefe do grupo Wagner, foi ao Mali, a sua maior base em África, onde se fez fotografar de arma na mão e anunciou que ia "fazer uma Rússia ainda maior em todos os continentes". Fez depois uma escala em Damasco, voltou à Rússia, a bordo de um Ilyushin, aterrando em Moscovo. Tomou imediatamente o seu avião pessoal, um Embraer, na companhia de outros chefes do Wagner, entre eles o número dois, Dmitri Utkin, com destino a São Petersburgo. O avião explodiu pouco depois. Dias antes, Prigojin exibira-se na cimeira russo-africana de São Petersburgo. Pouco mais sabemos e o enigma do desastre pode perdurar por muito tempo. Apenas não há dúvidas quanto ao mandador: Vladimir Putin.

Em lugar de saber se o avião foi abatido pela artilharia antiaérea ou, mais provavelmente, por uma bomba escondida numa caixa de vinho, a digressão do mercenário suscita duas grandes dúvidas. "Foi claro durante dois meses que Prigojin foi deixado voar quando e para onde quisesse", disse ao Financial Times uma fonte próxima do Ministério da Defesa russo.

"Agora compreendemos porquê: aquela liberdade era a armadilha em que caiu o chefe dos mercenários do Wagner." Segunda perplexidade: os chefes militares, tal como os chefes dos governos ou das máfias, não costumam viajar no mesmo avião. É patente o excesso de confiança de Prigojin, que passava por ser desconfiado.

Prigojin é o nome que faz os títulos, mas o sujeito desta história é Vladimir Putin. "Os autores de golpes raramente morrem velhos", diz o politólogo Brian Klaas ao magazine The Atlantic. Todos ficaram surpreendidos pelo perdão de Putin ao chefe do amotinamento do Wagner e da "marcha sobre Moscovo," a 23 de Junho.

Putin denunciou a "traição" e a "punhalada pelas costas". Mas a seguir foi clemente e tanto Prigojin como Utkin voltaram à vida normal. "Nenhum ditador se pode dar ao luxo de tolerar este tipo de deslealdade. Em todo este período, Prigojin viveu fazendo Putin parecer fraco, um ditador forçado ao compromisso com o homem que o desafiou, simplesmente porque a Rússia ainda precisava do grupo Wagner na sua desastrosa guerra", argumenta Klaas.

Foram meses anormais. Explica o analista Abbas Galyamov, antigo speechwriter do Presidente: "Prigojin continuar a viver baralhava a nossa compreensão do regime de Putin. A regra era que ninguém podia fazer nada contra Putin. Durante dois meses, tudo parecia virado do avesso. Prigojin criou um tremendo problema a Putin, humilhou-o."

O "czar" sabia certamente que deixar Prigojin vivo reforçava os seus inimigos e a criava novas ameaças. As ditaduras podem organizar pseudo-julgamentos contra opositores. Mas o Kremlin não podia submeter Prigojin a um tribunal marcial: ele sabia demais e vangloriava-se disso. De resto, era popular perante uma parte dos russos: uma sondagem indicou que, depois da insubordinação, tinha a simpatia de 20% dos inquiridos. Putin não perdoou. Soube esperar. Mas a decisão, crêem os analistas, foi tomada logo após o 23 de Junho.

Os efeitos políticos não são ainda claros. Putin voltará a ser temido. E, diz o opositor russo Marat Gelman, é um óbvio sinal para as elites, para as mais liberais e para as ultranacionalistas: "Vocês não podem ser contra a guerra, não podem conduzir a guerra melhor do que Putin. [O general] Girkin e Prigojin eram mais entusiastas sobre a guerra do que Putin, mas foram punidos."

O historiador Dmitri Minic, especialista na Rússia, escreve no Monde: "Longe de ser uma anomalia, a evolução do Wagner e o percurso do seu chefe são uma emanação lógica dos fiascos militares russos numa guerra imprevista e não controlada, das especificidades do regime putiniano, mas também do pensamento e da cultura estratégicos pós-soviéticos. Uma situação extremamente perigosa para elites político-militares pouco aptas às profundas transformações e para um regime interessado na sua própria sobrevivência, mas que não se pode reformar sem assumir o risco de se desmoronar."

Putin deve ganhar a curto prazo. Mas adverte Klaas: "Quando um ditador assassina um alto oficial e não jornalistas, candidatos da oposição e dissidentes, então o medo generaliza-se. (…) Por vezes, erros catastróficos tornam-se mais prováveis – e podem de facto desencadear o fim do regime. Ninguém diz que o mortífero regime de Putin esteja nas últimas horas. Mas, a longo prazo, os custos do aparente assassínio de Evgueni Prigojin podem levar a que o falecido Evgueni Progojin venha a ser o último a rir na sua sepultura."»

Jorge Almeida Fernandes
Newsletter do Público, 25.08.2023
.

25.8.23

Casas

 


Casa Enric Ribalta, Barcelona, 1903.
Arquitecto: Jeroni Granell i Manresa.


Daqui.
.

1944 – A libertação de Paris

 



Entre 19 e 25 de Agosto de 1944, a libertação de Paris pôs fim a quatro anos de ocupação. Desde 22 de Junho de 1940, a cidade era administrada pela Alemanha.

Charles de Gaulle, chefe do Governo Provisório, fez um discurso à população, que ficou célebre e imortalizado em algumas frases: «Paris outragé! Paris brisé! Paris martyrisé! Mais Paris libéré!».






E há também canções «eternas»:


.

Algures em Kiev

 


E ficará arquivado nos anais da história.
.

Chiado: há 35 anos foi assim

 


.

Espanha mostrou-nos como se deve lidar com o assédio sexual

 


«A forma como as autoridades espanholas responderam ao assédio sexual flagrante, que vitimou a estrela de futebol Jennifer Hermoso, é uma lição importante para as empresas e organizações em geral, em todo o lado: Tomar medidas contra o infractor mesmo quando a vítima não se queixa.

Políticos proeminentes, incluindo o primeiro-ministro em exercício Pedro Sánchez e o ministro do desporto Miquel Iceta, e dirigentes desportivos, criticaram Luis Rubiales, o presidente da federação de futebol do país, por ter dado um beijo indesejado nos lábios de Hermoso depois de a Espanha ter vencido a Inglaterra na final do Campeonato do Mundo, na Austrália.

Depois de ter começado por considerar os críticos como "idiotas e estúpidos", Rubiales emitiu tardiamente um pedido de desculpas numa declaração em vídeo: "Porque as pessoas se sentiram magoadas com isso, tenho de pedir desculpa, não há alternativa."

A resposta da própria Hermoso à controvérsia foi inicialmente hesitante. De acordo com o Athletic, numa transmissão em directo do balneário após o jogo, a atleta disse às colegas de equipa que lhe perguntaram sobre o beijo: "Sim (aconteceu), mas eu não gostei." A federação divulgou então um comunicado, citando Hermoso como tendo dito que não tinha qualquer problema com "um gesto mútuo que foi totalmente espontâneo devido à imensa alegria de ganhar um Campeonato do Mundo". Alguns relatos em Espanha dizem que Hermoso foi pressionada a aparecer no vídeo de desculpas gravado por Rubiales, mas que recusou.

Esta situação será familiar para as vítimas de assédio em todo o lado, porque é difícil falar num local de trabalho tóxico — um inquérito realizado pela Deloitte em 2023 revelou que apenas 59% das mulheres que afirmaram ter sido assediadas comunicaram o facto aos seus empregadores, contra 66% no ano passado.

E quando os incidentes são relatados por terceiros, as vítimas são frequentemente pressionadas a negar que a ofensa ocorreu — e a ajudar o infractor a livrar-se da responsabilidade. Isto permite que os empregadores lavem as mãos de qualquer responsabilidade e não façam nada quanto à toxicidade do ambiente de trabalho.

Se Rubiales e a federação estavam a contar com a relutância de Hermoso em denunciar o assédio para desanuviar a controvérsia, calcularam mal. Em vez de colocar o ónus de apresentar uma queixa formal sobre Hermoso, o chefe do conselho desportivo do Governo disse que tomaria medidas disciplinares contra Rubiales se a federação de futebol não o fizesse. A liga espanhola de futebol feminino profissional apresentou uma petição ao conselho para desqualificar o ex-jogador como presidente da federação. "O facto de um patrão agarrar a cabeça de uma funcionária e beijá-la na boca é, simplesmente, inaceitável", declarou a liga num comunicado.

O apoio de tantas entidades poderosas parece ter finalmente dado a Hermoso a confiança necessária para dar o próximo passo. Na quarta-feira, a jogadora emitiu um comunicado dizendo que o FUTPRO, o sindicato dos jogadores, estaria a agir em seu nome. O sindicato, por sua vez, disse que as acções de Rubiales "jamais devem ficar impunes".

Os pedidos de demissão de Rubiales estão a aumentar, antes de uma reunião de emergência da direcção da federação na sexta-feira. Com a simpatia da opinião pública a favor das mulheres, e não apenas devido à sua vitória, a federação tem agora a oportunidade de fazer uma limpeza completa. Não há dúvidas de que as espanholas jogam num ambiente tóxico. A estrela americana Megan Rapinoe chamou a atenção para o "profundo nível de misoginia e sexismo" daquela federação. E Rubiales não é o único dirigente sob os holofotes: o treinador Jorge Vilda está a ser alvo de escrutínio por causa de um vídeo em que parece tocar no peito de uma assistente enquanto celebra o único golo do jogo final.

No período que antecedeu o Campeonato do Mundo, 15 das melhores jogadoras do país escreveram à federação pedindo para não serem convocados para a equipa devido à gestão pouco profissional dos treinadores. Entre outras coisas, as jogadoras disseram que os treinadores exigiam que eles mantivessem as portas dos seus quartos de hotel abertas até a meia-noite e inspeccionavam as suas malas após as saídas. Jennifer Hermoso não estava entre as que escreveram a carta, mas manifestou apoio às que o fizeram.

A resposta da federação foi criticar as jogadoras e apoiar os treinadores, liderados por Vilda. "A federação está em primeiro lugar", disse Ana Alvarez, responsável pelo futebol feminino na federação, exigindo que as jogadoras que protestavam pedissem desculpa se quisessem voltar à equipa. Este é um testemunho da gravidade da situação que, confrontados com a escolha entre participar no Campeonato do Mundo — a última ambição de qualquer jogador de futebol — ou recuar, 12 das 15 manifestantes escolheram a segunda opção. O facto de Hermoso e as suas companheiras de equipa terem ganho o torneio nestas circunstâncias é quase um milagre.

Por muito que mereçam elogios por terem agido contra Rubiales, as autoridades espanholas têm de assumir a responsabilidade pelo seu próprio papel nos maus-tratos infligidos às jogadoras. Se, na altura, Sanchez, Iceta e o conselho desportivo do Governo se tivessem pronunciado energicamente a favor das jogadoras em protesto, a federação poderia ter sido obrigada a fazer uma limpeza à casa.

Depois de terem feito o que estava certo em relação a Hermoso, as autoridades deveriam agora estender essa consideração a todo o futebol feminino em Espanha — e dar mais um exemplo salutar para as organizações de todo o mundo.»

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post
.

24.8.23

Vaso japonês

 


Vaso em esmalte cloisonné do período Taisho, trabalhado em fio de prata e cobre e embutido em preto, branco, cinza e vermelho. Japão, início do século XX.
Ando Jubei (?)

Daqui.
.

24.08.1916 – Léo Ferré

 


Léo Ferré nasceu no Mónaco, o pai trabalhava no Casino, a mãe era costureira e Léo, com 7 anos, já cantava no coro da catedral.

Deixou-nos preciosidades que resistem a todas as décadas, com letras suas ou de Aragon, Rimbaud e mais uns tantos. Três entre muitas outras:






,

Violência?



 .

Oportunidade perdida

 


«Se há tema emergente em Portugal é o da habitação. E está à vista de todos, por várias razões, mesmo correndo-se o risco de se ser simplista. A que existe é cara, muitas vezes com problemas estruturais de construção, o arrendamento impossível, quem detém casa própria, e são milhares as famílias (mais de 70%, segundo o último Censo), vive dias de intranquilidade com o aumento das taxas de juro.

Foi por isso de louvar que a bandeira reformista do Governo assentasse num programa ambicioso que resolvesse o problema de moradas condignas, ao ponto de ser comparado ao que Cavaco Silva fez nos inícios da década de 1990 para erradicar as barracas.

Acrescem dois dados: temos cerca de 700 mil fogos devolutos, muitos dos quais do Estado, que por sua vez é na Europa dos que ostentam uma das taxas mais baixas de oferta de habitação pública.

Esta era a oportunidade para se criar um plano de ação a médio e longo prazo capaz de alterar o atual estado da arte. Mas o que já se percebeu é que, tal como não houve qualquer propósito de acolher propostas de diferentes quadrantes, políticos e da sociedade civil, e de dar prioridade à prioridade do país, também não será agora que a discussão será aberta, apesar do veto de Marcelo Rebelo de Sousa, no qual o presidente expressa as suas dúvidas, entre as quais a pobreza e a provável ineficácia do diploma.

No final de contas, no exercício que deve ser o da política, continuamos a fazer valer posições sem construir soluções. E o que está preconizado é demasiado pouco para as necessidades do país.

Sucede que os próximos passos são previsíveis, com uma guerra extremada, pedidos de fiscalização ao Tribunal Constitucional sobre aspetos do diploma que tornarão a proposta governamental um imbróglio sem atalhos ou remendos.

Infelizmente, mais cedo do que tarde, quando se fizer o balanço daquela que poderia ter sido a grande reforma estrutural e símbolo de uma liderança do país, António Costa terá grandes dificuldades em apresentar resultados.

Ficamos todos a perder.»

.

23.8.23

Vitrais



 

Casa Fernandini, Cercado de Lima, Peru, 1913.
Arquitecto: Claudio Sahut.

Daqui.
.

23.08.1927 – Sacco & Vanzetti

 


Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti foram acusados do homicídio de duas pessoas, nos Estados Unidos, e acabaram por ser condenados à pena de morte e electrocutados em 23 de Agosto de 1927, apesar de, cerca de dois anos antes, uma outra pessoa ter confessado ser autora dos crimes.

Na sessão do tribunal em que a sentença da condenação foi lida, Vanzetti incluiu o seguinte nas suas longas declarações finais:

«I would not wish to a dog or to a snake, to the most low and misfortunate creature of the earth. I would not wish to any of them what I have had to suffer for things that I am not guilty of. But my conviction is that I have suffered for things that I am guilty of. I am suffering because I am a radical and indeed I am a radical; I have suffered because I am an Italian and indeed I am an Italian...if you could execute me two times, and if I could be reborn two other times, I would live again to do what I have done already.»

Nunca pararam as reacções e os protestos contra um caso que, com toda a sua trama, passou a funcionar como um símbolo de desrespeito flagrante pelos princípios da justiça na América.

Deu origem a um filme, inspirou escritores, pintores, músicos como Woody Guthrie. Joan Baez viria a consagrar uma das canções mais divulgadas, até Dulce Pontes interpretou «The Ballad of Sacco e Vanzetti», etc., etc.







.

Habitação, ainda

 

«Este pacote prevê a preservação de um quadro legislativo que favorece e estimula a iniciativa privada, valoriza o funcionamento do mercado imobiliário como solução para o problema da habitação e não o investimento público, prevê a criação de incentivos fiscais aos proprietários para trazer casas ao mercado de arrendamento, mantém os benefícios fiscais que levaram o mercado ao rubro como o regime de residentes não habituais, etc. Mais: esta proposta não se atreveu a interferir com a famosa “lei Cristas”, que agilizou despejos e fomentou a especulação imobiliária, e afinal vai manter os “vistos gold”. A sério que chamam a isto marxismo?»

.

Sorrir é preciso

 

.

Juros do fim do “bloco central de palácios”

 


«Um dos ministros deste Governo, Pedro Adão e Silva, quando ainda era comentador político, vaticinou, em 2016, que entre o recém-eleito Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa havia tudo para ir além da “cooperação estratégica” que se tinha estabelecido em primeiras núpcias entre Cavaco e Sócrates.

E assim foi. O “bloco central de palácios”, como ele crismou, vigorou durante muito tempo, superou incêndios, epidemias e guerras, até que deixou de fazer sentido tanto para o morador de São Bento como para o de Belém. Como na altura justificava Adão e Silva, a conjugação de interesses existia porque Costa tinha “um apoio frágil à esquerda” e porque Marcelo queria “demonstrar que é o Presidente de todos os portugueses”.

Com maioria absoluta, Costa já não necessita de cultivar apoios e deixou cair a ideia de “maioria de diálogo” que tentou passar nos primeiros momentos do actual executivo. As críticas de Marcelo à falta de consenso no pacote de habitação servem para reforçar esse isolamento que, a prazo, irá cobrar os seus juros em desgaste para os socialistas. Não é certo que os portugueses já estejam reconciliados com as maiorias absolutas.

Em tempo de segundo mandato, Marcelo também já não necessita da abrangência em que transformou a sua reeleição num caminho sem escolhos e estará bem consciente de que as sucessivas críticas a que tem submetido o executivo cobrarão juros, pagos com a erosão do consenso em que viveu. Só que a margem para desgaste ainda é grande e o Presidente certamente preferirá ficar na história como alguém que ajudou a tirar ao PS a possibilidade de ficar no poder durante 15 anos consecutivos. Já lhe bastou a maioria absoluta.

Claro que o sucesso do Governo ficará sempre mais dependente daquilo que conseguir fazer do que das críticas que lhe façam. Mas, no caso da habitação, as probabilidades de correr bem são mínimas, e, a prazo, deverá pagar com juros as críticas que Marcelo já deixou agendadas para o futuro.

Nesta luta de titãs, Luís Montenegro corre o risco de passar despercebido, com o Presidente a tirar-lhe protagonismo na agenda de oposição que tanto lhe tem custado conquistar. Não terá sido por acaso que ontem quis voltar a falar de impostos, quando toda a gente falava de habitação. Mas nem que tenha de pagar os juros de ser secundarizado por um Marcelo sempre activo, a prazo capitalizará sempre do desgaste a que um Presidente sem freio continuará a sujeitar os socialistas.»

.

22.8.23

Fachadas

 


Casa Galimberti, Milão, 1903.
Arquitecto: Giovanni Battista Bossi.

Considerada uma das peças mais importantes do «stile Liberty» (variante italiana da Arte Nova), graças ao revestimento de grande parte da fachada exterior com azulejos de cerâmica figurativa, ferro forjado e flores.

Daqui.
.

Nem Marcelo promulga, nem o povo habita

 

«O PS alega que é a garantia de equilíbrio no meio do radicalismo de toda a Oposição, mas nem inquilinos, nem proprietários se mostram satisfeitos com as soluções apresentadas. Sem bala de prata para resolver uma das mais graves crises sociais do país, os socialistas ficam entregues à sua própria sorte. Não procuraram fazer consensos nem à Esquerda, nem à Direita para resolver uma crise que é responsabilidade de todos e chegarão às próximas legislativas a terem de responder sozinhos, porque simplesmente essa foi a opção que fizeram.»

.

Há menos de três séculos

 

.

Pacote habitação: tanto barulho para tudo

 


«Como o Governo já estaria informado há dias, e aliás era óbvio pela insistência do Presidente em várias declarações sobre o assunto, sobretudo pelo anúncio da presunção de não-inconstitucionalidade ao fim de alguns dias de reflexão, teria de haver veto. O que se segue é um jogo de cartas marcadas, uma vereda estreita da qual ninguém quer ou prefere sair: a maioria absoluta reaprovará a legislação, renovando as críticas dos vários lados, e Marcelo ficará satisfeito pela tomada de posição, que lhe permite ainda o tempo útil da verificação – em 2024 não haverá as 26 mil casas prometidas solenemente por Costa em campanha eleitoral tanto em 2019 quanto em 2022, não se comemorarão os cinquenta anos do 25 de Abril com a solução do problema mais urgente da habitação e, no final deste mandato, os preços e as rendas continuarão a destacar as nossas cidades entre as mais caras da Europa. É fatal como o destino.

A vitória do Governo neste braço de ferro será uma das mais caras que poderá pagar nas eleições, pois destruir a saúde pública e criar a espiral imobiliária serão as duas heranças em que o Governo parece ter mais empenho e ambas contarão nos protestos populares desde já e nos votos depois.

Há quem se pergunte a razão para o Governo se meter nesta alhada, ainda por cima com alguns laivos de tragicomédia: lembra-se de que o primeiro-ministro deu um ralhete em público à ministra recém-empossada, marcando três meses para a apresentação do pacote legislativo, e que quando este foi apresentado teve as suas reviravoltas, sobretudo quanto à tributação do sector e ao tratamento dos fundos imobiliários?

Pois terminada essa saga, ficou um pacote pastilha-elástica, que podia ser explicado e esticado em vários sentidos, mas cuja consequência, como seria de esperar, era simplesmente entregar ao mercado algumas facilidades (nas regras do licenciamento, o que não incomodou Belém) e esperar que a sua mão resolva os problemas e baixe os preços, ao mesmo tempo que se tomam todas as medidas para que a espiral especulativa possa continuar.

No meio de tudo isto, a persistência dos Vistos Gold tornou-se um dos mais fascinantes tabus do regime, sobrevivendo aos escândalos, à revelação de redes mafiosas, à exibição dos casos, e ultrapassando promessas ferozes dos governantes. Some-se-lhe a teia meticulosa de vantagens asseguradas aos fundos imobiliários e temos um retrato do que é a política de habitação do Governo.

Em resumo, o Governo defende energicamente as condições que garantem a continuidade dos preços altos e, mesmo que haja redução dos rendimentos reais na população portuguesa, a pressão da suficiente procura por estrangeiros anima o mercado a escolher a construção mais cara, entusiasma os intermediários a lutarem pelas suas comissões e faz do preço de luxo o padrão da nossa economia. Dá vergonha ver os preços das casas em Madrid ou Barcelona, ou Roma ou Berlim e compará-las com Lisboa e Porto, tal é a medida do sucesso do que foi feito até hoje na habitação e do que vai continuar a ser feito. Por esse motivo, o Presidente joga uma carta garantida. Bastará apontar os preços dentro de um ano e de dois anos e não haverá dúvidas sobre este pacote: terá funcionado para conseguir o contrário do que anunciou.»

.

21.8.23

Estações

 


Estação Ferroviária de Porto - São Bento. Abertura provisória 1896, definitiva 1916.
Arquitecto: José Marques da Silva.
Azulejos pintados por Jorge Colaço.

Daqui.
.

Alexandre O’Neill

 


Deixou-nos há 37 anos.
.

21.08.1968 - Era madrugada em Praga



Na noite de 20 para 21 de Agosto de 1968, as tropas do Pacto de Varsóvia invadiram a Checoslováquia , pondo fim à chamada Primavera de Praga que durou pouco mais de sete meses.



..



(Fotos de Josef Koudelka, Invasion of Prague, Thames & Hudson, 2008.)
.

Juventude poupada

 


«O otimismo em relação ao impacto económico da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) era, como alguns desconfiavam, excessivo. Demasiado excessivo. A euforia que tomou conta de membros da Igreja Católica e, sobretudo, da política nacional roçou a propaganda pura e dura. Com a Jornada, o efeito na economia seria extraordinário e, para não haver dúvidas, fizeram-se estudos, encomendados a entidades credíveis - essas entidades confirmavam a euforia.

A realidade, porém, é menos emotiva. Dados agora divulgados pelo Banco de Portugal demonstram exatamente o contrário. Como o JN hoje escreve, houve menos dormidas em hotéis, menos consumo em restaurantes, assim como no comércio. Em suma, a partir de 11 de julho, a atividade económica entrou em território claramente negativo, mantendo a tendência durante a semana do Papa, até dia 5 de agosto.

O estudo encomendado pela organização da JMJ, recorde-se, apontava para um impacto económico de 411 milhões de euros, em valor acrescentado bruto, na economia portuguesa. Para chegar a este valor, a autora do estudo, a PWC, previa a presença aproximada de um milhão de visitantes, entre peregrinos inscritos, não inscritos, outros participantes e voluntários. Um valor inferior ao número inicialmente anunciado que oscilava entre 1 e 1,5 milhões de pessoas.

Os gastos médios previstos, ainda segundo o estudo, andariam entre 30 e 163 euros por pessoa, e a estadia média entre dois e seis dias. Nestas contas, previa-se um gasto mínimo dos peregrinos de 162 milhões de euros, mas poderia atingir os 273 milhões.

Vieram os peregrinos, sem dúvida, e voltaram às suas terras sem o comércio sentir, verdadeiramente, a sua presença. Terá valido o investimento público, a obra que fica para a cidade e pontes para batizar. E a imagem de um grande evento, apresentado como um grande negócio para Portugal, a colidir com a mensagem do Papa Francisco.»

.

20.8.23

Varandas

 


Varanda interior da Casa Saint Cyr. Bruxelas, 1901- 1903.
Arquitecto: Gustave Strauven.

Daqui.
.

Afinal...

 

.

As loucas

 


«No dia 24 de Março de 1976, um golpe de Estado derrubou a Presidente argentina e deu início ao período mais obscuro da história do país. Uma Junta Militar, presidida pelo general Jorge Rafael Videla, chegou à Casa Rosada, centro do poder na Argentina, e começou a escrever uma história de terror e violência que durou até 1983 e que fez cerca de 30 mil desaparecidos.

Mas uma coisa que a história já nos mostrou é que mesmo na mais negra das noites existe uma centelha de luz. E fiquem a saber que nenhuma luz no mundo é mais forte do que aquela que nasce directamente do coração de uma mãe.

Gostava de vos pedir que decorassem o nome de Azucena Villaflor e que, um dia, o ensinassem aos vossos filhos e netos. E se alguma vez vos perguntarem qual o motivo para tal ensinamento, não hesitem em responder que este é o nome de uma verdadeira heroína. Azucena é o nome da resistência.

Após a tomada de poder pela Junta Militar, milhares de argentinos foram perseguidos e torturados de forma particularmente cruel. Falamos de crianças, estudantes e trabalhadores, mas também de mulheres grávidas que apenas eram mantidas vivas até ao nascimento dos filhos, que eram depois entregues a famílias apoiantes do regime.

Todos os dias desapareciam pessoas nesta Argentina de escuridão. Todos os dias existiam mães que deixavam de saber do paradeiro dos filhos. Todos os dias as mulheres perguntavam se os seus meninos estariam vivos num campo de detenção ou mortos a boiar no rio da Prata. E estas mães, desesperadas e a precisar de consolo, encontravam-se numa igreja. Mas um dia, as palavras do padre que as aconselhou a ter “santa paciência” fizeram Azucena Villaflor indignar-se e ter a ideia que mudaria tudo.

Azucena terá dito às outras mães de filhos desaparecidos que o melhor seria reunirem-se na Plaza de Mayo, em frente à Casa Rosada. “Somos muitas e Videla terá de nos receber” — afirmou. E no dia 30 de Abril de 1977, as mães assim o fizeram. Eram catorze nesse primeiro dia e decidiram encontrar-se naquele sítio todas as quintas-feiras a partir daí.

Com o passar das semanas, as catorze passaram a largas dezenas e, com lenços brancos atados na cabeça que simbolizavam as fraldas dos filhos, andavam a pares ao redor do monumento de Belgrano, mesmo no centro da praça, desafiando a polícia que impedia ajuntamentos de mais de três pessoas paradas.

Rapidamente, as mães da Plaza de Mayo começaram a levar consigo as fotos dos filhos para provar a sua existência, uma vez que o Governo de Videla continuava a insistir na ideia de que tudo aquilo era irreal, sendo bastante conhecidas as palavras de um capitão do Exército que numa declaração bradou que “essas mulheres são loucas, umas putas loucas de merda”.

Mas nem Videla, capitães ou soldados fizeram com que as mães desistissem e, para provar que falavam verdade, Azucena conseguiu compilar os nomes dos desaparecidos e fê-los publicar num jornal. E este foi o seu fim. A lista saiu para a rua no dia 10 de Dezembro de 1977 e Azucena desapareceu por estes dias, juntamente com Esther Ballentrino de Careage, grande amiga de Jorge Bergoglio, actual Papa Francisco, e María Ponce de Bianco. Descobriu-se anos depois que estas três mulheres, líderes do grupo que teimava em resistir, foram levadas para o mais tenebroso campo de concentração e tortura argentino onde foram cruelmente assassinadas.

Mas nem assim os militares conseguiram esmagar a coragem das mães que debaixo de uma repressão extremamente violenta continuaram, quinta-feira após quinta-feira, a apresentar-se na Plaza de Mayo. A polícia soltou cães, golpeou as mulheres, prendeu-as e lançou gás lacrimogéneo. Mas elas nunca se renderam. Os militares talvez não conseguissem percebê-lo, mas subestimaram a força das mães. E, pelos filhos, as mães nunca desistem.

Em 1978, por altura da realização do Campeonato do Mundo de Futebol na Argentina, quando o Governo tentava o mais que podia limpar a imagem internacional do país e a imprensa se concentrava em Buenos Aires, as mães insistiram em enfrentar a repressão e saíram à rua com os seus lenços brancos na cabeça e as fotografias dos filhos desaparecidos. E foi assim que, no dia 1 de Julho de 1978, as emissoras mundiais contaram a todos o que se passava na Argentina.

Em 1980, as mães da Plaza de Mayo foram nomeadas para o Prémio Nobel da Paz e, mesmo não tendo vencido, este foi um duro golpe para o governo militar do país, que, ao tentar apelar ao patriotismo dos argentinos e desviar a atenção deste assunto, declarou uma guerra contra a Inglaterra pelas ilhas Malvinas. Como era esperado, o Exército argentino foi esmagado e o descontentamento popular tornou-se impossível de conter. Em 1983, Raúl Alfonsin foi eleito democraticamente Presidente da Argentina.

Em 1992, as mães da Plaza de Mayo venceram o Prémio Sakharov de liberdade de pensamento e o seu trabalho e persistência conseguiram que a maioria dos membros da Junta Militar fosse presa por crimes contra a humanidade. Conseguiram ainda identificar muitos corpos e 256 crianças desaparecidas das quais 137 quiseram e puderam conhecer as suas famílias biológicas.

Estas mães perderam os filhos, mas nunca perderam a coragem. São a cara, o corpo e a voz da resistência no feminino e do poder da maternidade. Azucena representa cada uma delas.

E fazendo uma espécie de regresso ao presente, imagino como se sentiriam muitas delas ao perceber que, em 2023, as eleições primárias do seu país foram ganhas por um homem como Javier Milei, que, entre outras coisas, nega as alterações climáticas, é favorável à legalização da venda de órgãos humanos, quer tornar mais fácil o acesso às armas de fogo e acredita que a educação sexual serve para destruir as famílias.

Os argentinos vivem descontentes, esmagados pela dívida ao Fundo Monetário Internacional e pela inflação acima dos 115%. A pobreza cresce. E este é, obviamente, o caldo perfeito para o crescimento de populistas como o despenteado de patilhas gigantes que mensalmente sorteia o seu salário e que vai gritando que acabará com a casta de poder no país.

Mas eu quero acreditar que a Argentina vai resistir ao canto da serpente e que este admirador de Donald Trump não conseguirá chegar à Casa Rosada. Sei que tudo aponta em sentido contrário e que as probabilidades estão todas a seu favor. Simplesmente não posso nem quero aceitar que o país das mães da Plaza de Mayo permita que isto aconteça. O país que resistiu no feminino. O país onde as mulheres deram uma lição de coragem ao mundo. O país que mostrou a força das mães.

Eduardo Galeano escreveu que, “na Argentina, as loucas da Plaza de Mayo foram um exemplo de saúde mental, porque se negaram a esquecer num tempo em que a amnésia era obrigatória.”

Que os argentinos não esqueçam agora o legado de Azucena e de cada uma destas mulheres.

Que o populismo não vença.

Que a luz continue a rasgar a noite escura.»

.