«Como o Governo já estaria informado há dias, e aliás era óbvio pela insistência do Presidente em várias declarações sobre o assunto, sobretudo pelo anúncio da presunção de não-inconstitucionalidade ao fim de alguns dias de reflexão, teria de haver veto. O que se segue é um jogo de cartas marcadas, uma vereda estreita da qual ninguém quer ou prefere sair: a maioria absoluta reaprovará a legislação, renovando as críticas dos vários lados, e Marcelo ficará satisfeito pela tomada de posição, que lhe permite ainda o tempo útil da verificação – em 2024 não haverá as 26 mil casas prometidas solenemente por Costa em campanha eleitoral tanto em 2019 quanto em 2022, não se comemorarão os cinquenta anos do 25 de Abril com a solução do problema mais urgente da habitação e, no final deste mandato, os preços e as rendas continuarão a destacar as nossas cidades entre as mais caras da Europa. É fatal como o destino.
A vitória do Governo neste braço de ferro será uma das mais caras que poderá pagar nas eleições, pois destruir a saúde pública e criar a espiral imobiliária serão as duas heranças em que o Governo parece ter mais empenho e ambas contarão nos protestos populares desde já e nos votos depois.
Há quem se pergunte a razão para o Governo se meter nesta alhada, ainda por cima com alguns laivos de tragicomédia: lembra-se de que o primeiro-ministro deu um ralhete em público à ministra recém-empossada, marcando três meses para a apresentação do pacote legislativo, e que quando este foi apresentado teve as suas reviravoltas, sobretudo quanto à tributação do sector e ao tratamento dos fundos imobiliários?
Pois terminada essa saga, ficou um pacote pastilha-elástica, que podia ser explicado e esticado em vários sentidos, mas cuja consequência, como seria de esperar, era simplesmente entregar ao mercado algumas facilidades (nas regras do licenciamento, o que não incomodou Belém) e esperar que a sua mão resolva os problemas e baixe os preços, ao mesmo tempo que se tomam todas as medidas para que a espiral especulativa possa continuar.
No meio de tudo isto, a persistência dos Vistos Gold tornou-se um dos mais fascinantes tabus do regime, sobrevivendo aos escândalos, à revelação de redes mafiosas, à exibição dos casos, e ultrapassando promessas ferozes dos governantes. Some-se-lhe a teia meticulosa de vantagens asseguradas aos fundos imobiliários e temos um retrato do que é a política de habitação do Governo.
Em resumo, o Governo defende energicamente as condições que garantem a continuidade dos preços altos e, mesmo que haja redução dos rendimentos reais na população portuguesa, a pressão da suficiente procura por estrangeiros anima o mercado a escolher a construção mais cara, entusiasma os intermediários a lutarem pelas suas comissões e faz do preço de luxo o padrão da nossa economia. Dá vergonha ver os preços das casas em Madrid ou Barcelona, ou Roma ou Berlim e compará-las com Lisboa e Porto, tal é a medida do sucesso do que foi feito até hoje na habitação e do que vai continuar a ser feito. Por esse motivo, o Presidente joga uma carta garantida. Bastará apontar os preços dentro de um ano e de dois anos e não haverá dúvidas sobre este pacote: terá funcionado para conseguir o contrário do que anunciou.»
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