27.8.22

Elevadores

 


Elevador Arte Nova, 1898.
Casa Majolica de Otto Wagner, Viena.


Daqui.
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Cesária Évora

 


Seriam 81.




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Marcelo pressiona Governo a avançar com as medidas anti-crise

 


«Volto hoje à sua caixa de correio, depois de uns dias na cidade onde nasci – Viana do Castelo – a viver a romaria da Senhora d’Agonia, suspensa durante dois anos como quase tudo no país por causa da covid. É uma festa única, sobre a qual até escrevi aqui. Se não conhece, fica a sugestão. Mas programe tudo com antecedência porque, mal a data é anunciada (sempre num fim de semana de Agosto), os hotéis ficam lotados e a preços estratosféricos.

A romaria funciona como uma espécie de interrupção da realidade. Infelizmente, se em nome da sanidade mental temos todos o direito a fugir brevemente da realidade, ela não desaparece connosco: a pavorosa guerra da Ucrânia fez agora seis meses e a Europa depara-se com inflação a disparar, euro abaixo do dólar e uma crise energética grave. É na perspectiva de um Inverno assustador nos países da União Europeia que, ao que parece, Putin aposta todas as fichas.

Esta semana, o Governo anunciou algumas medidas para travar a escalada dos preços da energia, permitindo o regresso ao mercado regulado para quem tinha optado pelo liberalizado em matéria de gás. O Presidente da República não se quis pronunciar sobre a medida concreta – lá disse o velho "não conheço o diploma" –, mas pressionou duramente o Governo a avançar com medidas anti-crise como faz a Espanha, a França e a Itália.

Foi na inauguração da Feira do Livro de Lisboa que disse que estava à espera de ver o "pacote global" de medidas de mitigação da crise e lembrou que, ao contrário do que se está a passar nesses países, "em Portugal isso não está a acontecer". França, Itália e Espanha tomaram "medidas muito diferentes" que o Presidente da República não tem "visto serem tratadas em Portugal", "medidas muito globais, muito abrangentes e bastante ambiciosas, porque não são só de energia".

Recusando-se a comentar o anúncio do ministro Duarte Cordeiro, Marcelo mostrou-se mais interessado em perceber o "todo". "Não me vou pronunciar sem perceber qual o grau de intervenção que vai haver da parte do Governo: em vários países há aumentos, mas o que interessa é ver as medidas de mitigação ou compensação que existem, quais são e qual o alcance".

Hoje, o Presidente voltou à carga: lembrou que houve países a optarem pela descida do IVA – a "solução fiscal" – e que continua à espera de ver o "pacote global" que o Governo prometeu para Setembro, quer ele seja apresentado em conjunto ou "às fatias", palavra de Presidente.

Para um Presidente da República frequentemente acusado de ser o chapéu-de-chuva do Governo – e foi-o várias vezes, o que lhe retirou alguma popularidade na sua família política –, é de registar a mais que óbvia pressão para que o Governo avance com medidas concretas para mitigar a crise, com algum lamento por haver pouca informação disponível até ao momento. Com a inflação, a crise energética e uma guerra em solo europeu, ninguém sairá ileso. Ou saem os mesmos: aqueles que conseguem lucros extraordinários à conta do mal dos outros.»

Ana Sá Lopes
Newsletter do Público
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26.8.22

Publicidade

 


Alphonse Mucha, 1897.

Daqui.
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Hungria: comentários para quê…

 



«A elevada presença das mulheres no ensino superior pode causar problemas demográficos, dificultando a procura de um parceiro».

«Por outro lado, o estudo sustenta que, nas escolas, são consideradas mais importantes as “qualidades femininas”, entre as quais aponta “maturidade emocional e social, empenho, obediência, tolerância da monotonia [e] boa expressão oral e escrita”. Os autores do estudo consideram que no ensino se dá mais valor a essas qualidades que às capacidades “masculinas”, entre as quais se incluem “a competência, as matemáticas, as áreas das ciências exatas”.

“A avaliação dos atributos masculinos como menos importantes pode causar problemas mentais e de comportamento nos homens, que assim não podem desenvolver de forma ótima as suas capacidades especiais”.»
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26.08.1914 – Julio Cortázar

 

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Apanhada em flagrante alegria

 


«O título dizia: “Primeira-ministra finlandesa apanhada a...” e depois era preciso abrir a notícia para ver o resto. Fiquei interessado, evidentemente. Se, estando eu em Portugal, alguém queria informar-me acerca do que a primeira-ministra finlandesa tinha sido apanhada a fazer, o mais provável era que o assunto fosse importante. Não nos chegam assim tantas notícias sobre a actualidade finlandesa, que parece ser, aliás, bastante desinteressante. Só mesmo o mais relevante passa no crivo e é digno de ser noticiado. O que seria, desta vez? Teria ela sido apanhada a desviar fundos? A mentir no currículo? A combinar com um amigo rico a entrega de fotocópias? A espancar um gatinho? Abri a notícia: “Primeira-ministra finlandesa apanhada a dançar.” Portanto, fui ler o texto. Teria sido apanhada a dançar com Vladimir Putin? Num velório? Sobre o cadáver de um adversário político? Não, estava mesmo só a dançar. Nem a música ofendia grupos oprimidos nem a dança constituía apropriação cultural. Nada. Estava a dançar numa festa privada com amigos. Ou seja, o contrário teria sido mais relevante: “Primeira-ministra apanhada a não dançar em festa. Finlandeses devem pensar se querem continuar a ser liderados por macambúzia.” Mas, se ser apanhado a dançar numa festa é problemático, acaba por ser difícil imaginar o que poderá ser escandaloso na Finlândia. Receio que “primeira-ministra apanhada a contemplar linda paisagem”, “primeira-ministra apanhada a ler um romance” ou “primeira-ministra apanhada a comer uma sobremesa” possam ser futuras notícias. Rapidamente surgiu um movimento de repúdio pelo facto de ter havido escândalo por uma primeira-ministra ter sido apanhada a dançar. Como quase sempre acontece com os movimentos de repúdio, este estava a repudiar a coisa errada. O que causou escândalo não foi o facto de a primeira-ministra estar a dançar. Se ela tivesse sido apanhada a dançar uma valsa vienense, muito composta, com amigos igualmente graves, ninguém se teria sobressaltado. Mas ela parecia mesmo estar a divertir-se, o que é sempre difícil de tolerar. A líder da oposição pediu que fizessem um teste de detecção de drogas à primeira-ministra, de tal modo era implausível que uma pessoa pudesse estar tão satisfeita na Finlândia sem o auxílio de estupefacientes. Devo dizer que compreendo a suspeita, até porque já fui à Finlândia. Incrivelmente, no entanto, o teste veio negativo.»

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25.8.22

Apartamentos

 


Edifício Lavirotte, Avenida Rapp 29, Paris (construído entre 1899 e 1901)
Arquitecto Jules Lavirotte.


Daqui.
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Ver para crer

 


Quando um coração é recebido com honras de chefe de Estado…
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25.08.1944 – A libertação de Paris



 

Entre 19 e 25 de Agosto de 1944, a libertação de Paris pôs fim a quatro anos de ocupação. Desde 22 de Junho de 1940, a cidade era administrada pela Alemanha.

Charles de Gaulle, chefe do Governo Provisório, fez um discurso à população, que ficou célebre e imortalizado em algumas frases: «Paris outragé! Paris brisé! Paris martyrisé! Mais Paris libéré!».

Vídeos AQUI.
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25.08.1988 – No Chiado foi assim

 


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A serra da Estrela entre a gaffe e o algoritmo

 


«Uma secretária de Estado com a tutela da Protecção Civil serviu-se dos algoritmos utilizados pelos especialistas no estudo dos fogos florestais para analisar a tragédia deste ano e concluir que, face às condições de severidade reunidas, seria expectável que a área ardida fosse superior em 30%. À partida, o uso da ciência recomenda-se e divulgar as suas conclusões não é nada do outro mundo. Entretanto, uma ministra prometeu um futuro “melhor” para a serra da Estrela fortemente devastada pelos incêndios. Já sabemos que o optimismo neste Governo pode ser “irritante”, mas profetizar um mundo melhor não é nada que se estranhe num político.

Então, qual é o mal desta análise e deste augúrio? Por que razão o “algoritmo” entrou no debate político e o futuro brilhante da Estrela está a ser usado como um exemplo da demagogia do Governo? Para começar, o contexto: os erros de Patrícia Gaspar e de Mariana Vieira da Silva têm origem na aflição do Governo em gerir uma nova crise com os fogos. O algoritmo e o futuro risonho da serra revelam sinais de nervosismo, insensibilidade e desorientação. Na sua tentativa de apaziguar a dimensão do desastre, não deram conta que a relativização e a propaganda não funcionam nestes contextos. A ideia subliminar que sobra é simples: ou o Governo não percebeu o que se passa, ou percebeu e vira a cara à realidade.

Ao dizer que a tragédia podia ser pior, a secretária de Estado queria provavelmente a elogiar o trabalho dos bombeiros. Podia fazê-lo com a rapidez do ataque às chamas ou a redução dos reacendimentos. Usando o algoritmo, entrou no domínio da especulação. O que o modelo matemático produz são estimativas, ou intervalos de previsão. Não reflecte a eficácia do combate aos fogos, nem o desempenho do Governo.

O caso de Mariana Vieira da Silva, uma ministra que se destaca pela sua sensatez, é mais grave. Porque se a motivação política é a mesma (proteger o Governo), o grau de inconsciência é maior. Certamente sem o pretender, a ministra associou os incêndios à ideologia dos amanhãs que cantam. Com este Governo, a devastação das chamas é o primeiro passo para um futuro melhor. Não deu conta que essa promessa é um insulto aos que perderam bens com o fogo ou se comovem com a perda da biodiversidade.

Os dois incidentes valem pelo simbolismo. Não ficam na História. Nem escondem o essencial: as promessas de António Costa em 2017 para a floresta fracassaram. Se a promessa para o futuro da Estrela decorrer como a do pinhal de Leiria, não haverá algoritmo que a salve.»

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24.8.22

Agora as cabeças

 


Travessas para o cabelo
René Lalique.


Daqui.
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24.08.1916 – Léo Ferré


 

Léo Ferré nasceu no Mónaco, o pai trabalhava no Casino, a mãe era costureira e Léo, com 7 anos, já cantava no coro da catedral.

Deixou-nos preciosidades que resistem a todas as décadas, com letras suas ou de Aragon, Rimbaud e mais uns tantos. Três vídeos AQUI.
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24.08 – Dia da Independência

 

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Mulheres de coragem

 


«No dia 13 de Agosto, algumas dezenas de mulheres afegãs, de rostos destapados, manifestaram-se diante do Ministério da Educação, em Cabul, exigindo o direito a "trabalhar, estudar e ser livre". Gritaram por justiça: "Estamos fartas de ignorância". A manifestação foi dispersa pela polícia com a esperada violência, incluindo tiros para o ar. Algumas ficaram retidas por longas horas.

O protesto ocorreu dois dias antes do primeiro aniversário da tomada de Cabul pelos Taliban, a 15 de Agosto de 2021, depois da retirada precipitada das forças americanas. As fotografias da manifestação mostram mulheres de todas as idades. "Dispersaram as raparigas, quebraram as nossas bandeiras e confiscaram os telemóveis", diz à AFP uma das organizadoras, Zholia Parsi. Munisa Mubariz garantiu à mesma agência de notícias que iam continuar a lutar pelos direitos das mulheres. "Mesmo que queiram, os Taliban não vão conseguir calar-nos, vamos continuar a protestar a partir de casa."

As mulheres e as raparigas afegãs não podem sair de casa, a não ser com uma justificação e de burka. Deixaram de poder ir à escola. Foram afastadas de muitas profissões. Voltaram à vida que tinham antes de 2001, quando o regime Taliban governava o país, antes da intervenção americana na sequência do 11 de Setembro. Durante 20 anos, puderam fazer o que quiseram. São médicas, professoras, investigadoras, polícias, militares, jornalistas, vendedoras, cozinheiras. Habituaram-se a viver em liberdade. Hoje, voltam a ser quase nada. A diferença é que se habituaram a uma vida livre. Vão continuar a protestar.

Não sabemos exactamente, caro leitor, cara leitora, como é hoje a vida delas, de novo confinadas e subordinadas aos maridos, aos pais, aos irmãos. Imaginamos que deve ser miserável. Em casos de violação do decreto que as remete ao estatuto de reclusas, o homem responsável por elas pode ser sujeito a uma multa ou mesmo a uma pena de prisão. Foram encerrados todos os abrigos para mulheres maltratadas em casa.

Mesmo assim, a imprensa internacional dá conta de que as mulheres activistas continuam a reunir-se em segredo e a organizar protestos como aquele que aconteceu a 13 de Agosto. Quando tomou o poder, o regime taliban prometeu à comunidade internacional governar o Afeganistão "ombro a ombro" com as mulheres. Como era previsível, o seu comportamento não mudou. A sociedade afegã mudou tremendamente. A resistência será muito maior.

Nos últimos 20 anos, uma nova geração de afegãos cresceu num país que estava em contacto com o resto do mundo, teve acesso a informação relativamente livre e a um estilo de vida liberto de constrangimentos. Quase dois terços da população têm menos de 25 anos. O choque será muito maior. O Ocidente não pode ignorar o que sentem, nem a repressão bárbara a que são sujeitas as mulheres que prometeu defender em múltiplas ocasiões, fechando os olhos ao seu destino, porque foi a presença americana e da NATO que lhes garantiu essa vida.

Algumas mulheres conseguiram fugir aquando da retirada caótica dos EUA e já depois disso. Reconstroem as suas vidas em Dublin, São Paulo, Roma, Nova Jersey, Londres ou Nice, onde foram sendo acolhidas. A revista americana Times localizou algumas delas. Conta as suas vidas, que não são fáceis. Não desistem. Sonham em voltar ao seu país. Choram pelos seus familiares que lá ficaram. Mandam dinheiro. São "histórias de esperança, de medo e de resistência".

O Afeganistão vive a sua maior crise humanitária de sempre.


23.8.22

Uma bela casa

 


Ronda San Antonio 070, Barcelona.
Arquitecto: Dómenech Sugranyes i Gras


Daqui.
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23.08.1927 – Sacco & Vanzetti

 


Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti foram acusados do homicídio de duas pessoas, nos Estados Unidos, e acabaram por ser condenados à pena de morte e electrocutados em 23 de Agosto de 1927, apesar de, cerca de dois anos antes, uma outra pessoa ter confessado ser autora dos crimes.

Nunca pararam as reacções e os protestos contra um caso que, com toda a sua trama, passou a funcionar como um símbolo de desrespeito flagrante pelos princípios da justiça na América. Deu origem a um filme, inspirou escritores, pintores, músicos como Woody Guthrie. Joan Baez viria a consagrar uma das canções mais divulgadas, até Dulce Pontes interpretou «The Ballad of Sacco e Vanzetti», etc., etc.

Excerto das declarações de Vanzetti no tribunal e três vídeos com a «Balada» AQUI.
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Banalização?

 


«Amanhã, faz seis meses de guerra e a Ucrânia comemora a sua independência sob ameaça de um massacre, mais um, e sem que haja sequer esperança de negociar a paz. Será o dia 182 de destruição de um país, da chacina de um povo - mas há muito que deixamos de contar. As imagens do conflito banalizaram-se, as histórias tornaram-se repetitivas na sua tragédia, os discursos diários de Zelensky deixaram de nos interpelar (a produção de Volodymyr e Olena para a capa da "Vogue" e o desfile de líderes mundiais nas cidades bombardeados contribuíram também para a perceção de assistirmos a um "filme") e, até, o facto de 972 crianças terem sido mortas ou feridas parece não causar já inquietação. As ondas de solidariedade deram lugar à preocupação mais egoica, ainda que justificada, com a escalada da inflação.

A guerra que horrorizava deixou de nos impressionar. Normalizamos o inaceitável. Estamos dessensibilizados.»

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Sou um robot

 


«A digitalização, a sociedade da informação, a tecnologia, a velocidade de navegação e os serviços online são, naturalmente um bem inestimável para a sociedade do século XXI. Há toda uma nova forma de comunicarmos, de nos relacionarmos, entre nós e com as mais diversas instituições com que temos de lidar no dia a dia, seja o banco online, seguros, administração pública, compras, pagamentos, encomendar comida e outros bens que nos chegam a casa, tudo através do telemóvel ou do computador.

Uma maravilha tecnológica que, supostamente, nos poupa tempo, deslocações, agiliza o quotidiano, elimina papéis, derruba barreiras e faz de nós uns felizes tecnológicos.

Tamanha facilidade e, sobretudo, acesso, tem, no entanto, um lado bastante negro e sinistro, desesperante e de uma exasperante impotência.

Muitos serviços, hoje, funcionam sem um único número de telefone para onde se possa ligar e tentar falar com alguém que nos possa ouvir e esclarecer. Nos sítios da internet das mais variadas organizações, públicas e privadas, quando temos dúvidas, aparece-nos uma lista de "perguntas frequente". Se essas não deram resposta ao nosso pedido, problema, dúvida ou questão, há sempre um chat para nos esclarecer. Ligue-se o chat.

- Bom dia, sou Anastácio e sou o seu assistente virtual.

É um robot, com nome e tudo, que nos pede palavras simples e ideias claras. Aquela inteligência, artificial, está apenas programada para dar sempre as mesmas respostas a perguntas-tipo. As tais "perguntas frequentes". Como se todos os utilizadores - já não somos pessoas, somos utilizadores - fossem estúpidos e não percebessem o básico. Mas que, em regra, não atende às nossas dúvidas. Como se trata de uma máquina com nome de gente, e que até nos responde, passado algum tempo começamos a enervar-nos com o interlocutor, porque já nos esquecemos que, do outro lado não está, na verdade, ninguém.

Um destes dias, o robot percebeu que já não tinha respostas e escreveu que ia chamar um "colega" para ajudar a resolver. O colega, humano, também não tem nome, nem rosto, embora esteja mesmo lá, vivo, e de carne e osso. A este colega do robot, já podemos escrever uns impropérios, que ele percebe, ou "desabafar". Acontece que o colega do robot, não é um, mas comporta-se como tal. Quando muito, diz que "lamenta" a situação, seja ela qual for. E, de lamento em lamento, esbarramos num muro intransponível. Até desistirmos. Sem resolver.

Esta semana, a encomenda - feita online - e já paga - online - deveria chegar entre "as 09.00 e as 13.00". Não basta que nos obriguem a ficar quatro horas à espera, naquilo a que chamam - online - janela temporal. Uma manhã inteira de nervos, a olhar para o relógio, sempre à espera da encomenda, sem podermos abandonar o local, não vá a encomenda chegar e termos ido só tomar um café ali ao lado. Uma janela temporal que nos obriga a uma ginástica laboral, pedir favores a colegas para trocarem de horário, como se todos tivéssemos uma manhã - ou uma tarde - inteira, para ficar à espera da encomenda. Duas da tarde, a encomenda não chega, três da tarde, ainda não veio, através do telefone podemos "seguir" a encomenda, está parada, não passou da fase de "recolha" para "está a caminho". E não há para onde ligar. Seja, então, o chat. Lá está o Anastácio, o robot, não consegue ajudar porque não está programado para explicar o que não tem explicação, passa ao colega humano, o colega não tem voz, só tecla, no chat, não há número fixo, diz que vai ver, é humano, vai mais além que o colega artificial, mas inteligente, anda à procura, afinal, são quase quatro da tarde, a encomenda não chegou nem vai chegar, "lamento", há atrasos nas entregas, vamos ter de reagendar, só daqui a dez (!!) dias, antes não é possível, "lamento a situação", mais um agendamento, mais uma "janela temporal" de uma manhã inteira, e que aconteceria se não tivesse ido ao chat, seriam cinco da tarde e ainda esperava pela encomenda, nem um telefonema, uma SMS, um aviso, um mail, qualquer coisa a dizer que "lamentamos" e que a encomenda não vai chegar.

Então, e como se reclama online? Onde está o livro de reclamações, aquele livro físico e fora de moda, em papel, com três cópias, em que uma delas vai para a administração pública... onde está no chat o direito a reclamar, o robot não sabe, o colega humano sabe, está no lado inferior esquerdo da página online. E então, para onde vai a reclamação, fica só no site ou chegará ao destino? Isso ele já não sabe, nem por ser humano, será que vale a pena reclamar, se for só para nos responderem de volta que "lamentam" a situação, lamentar não é pedir desculpa, nem assumir a responsabilidade, é apenas uma palavra de circunstância, também eu lamento muita coisa e, depois desta camada de nervos online, sem poder falar com ninguém, lá se foram os planos, a encomenda deveria chegar hoje para poder ter tudo pronto amanhã, e agora, mais dez dias à espera, e se acontece o mesmo, e se daqui a dez dias não chega nada, e se me vão dizer outra vez que lamentam, que há atrasos, que isto e que aquilo.

O anonimato do online não responsabiliza ninguém. Ninguém, literalmente, dá a cara. Parece que estamos a falar com robot. E estamos mesmo, sejam artificiais ou humanos transformados neles.»

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22.8.22

Bengalas

 


Arte Nova, obviamente – e muito útil.

Daqui.
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Morremos muito, mesmo muito

 


Parece ser urgente saber-se exactamente porquê.

A taxa mais elevada em Junho de 2022 foi registada em Portugal (+24%), seguida pela Espanha (+17%) e Estónia (+16%).

Daqui.
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É daqui que vimos

 


280 anos é pouco tempo.

(Eduardo Galeano, Los hijos de los días)
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Precariedade é sobre-exploração

 


«A precariedade no trabalho é uma grave doença social, económica e cultural. Todas as dimensões da vida das pessoas/trabalhadores, e por consequência das famílias, são atingidas negativamente por ela. São imensas as áreas e temas de estudo que o comprovam.

Nos últimos 50 anos ocorreram mudanças profundas na divisão social do trabalho; alterações estruturais e organizacionais nas empresas e serviços e nas estratégias de gestão; fragmentação da produção e das tarefas inerentes a cada atividade; impactos fortes de tecnologias inovadoras; surgimento de comunicação instantânea passível de múltiplas utilizações nos processos de produção de serviços e bens; existência de novos instrumentos de trabalho; financeirização da economia e do trabalho criando a ilusão de acesso fácil ao crédito e secundarização do salário; convergência dramática entre o individualismo e o consumo. Novas formas de organização e de prestação do trabalho tiveram de ser consideradas. Todavia, a precariedade, no fundamental, não decorre de imperativos inerentes às complexidades daquelas mudanças.

Argumenta-se que as empresas agora vivem de projetos de curta duração, que tudo é volátil. Mas, há instrumentos de gestão e possibilidades de readaptação de atividades muito mais eficazes que no passado. Quanto à volatilidade do emprego, repare-se que, quer no setor privado, quer no público, são imensos os postos de trabalho permanentes por onde passam trabalhadores precários uns atrás dos outros, anos a fio.

A precariedade no trabalho é, em grande medida, um conjunto de mecanismos de sobre-exploração. Enfraquecidas as representações coletivas dos trabalhadores e bloqueada a negociação coletiva, o cutelo do arbítrio mercantil pesa sobre toda a regulamentação. A normatividade laboral é instrumentalizada. Em vez de se proibir o que é ilegal, criam-se enquadramentos jurídicos que normalizam as formas de trabalho atípico. O resultado é sempre pior retribuição do trabalho e perda ampla de direitos e formações.

Ao contrário do que se tenta impingir aos jovens, a precariedade é uma velharia que imperou durante séculos, relançada em força com o incremento do neoliberalismo nos anos 70/80 do século passado. Faz parte dos instrumentos mais requintados da "economia que mata".

Modernos são: i) o direito à segurança no emprego como princípio estruturante da universalização do direito ao trabalho e a sua consagração constitucional; ii) "o reconhecimento de que o direito ao trabalho tem uma dimensão humana, de realização pessoal e como tal subtrai-se da arbitrária disponibilidade do empregador" (Filipe Lamelas e Pedro Rita, in Trabalho Digno.colabor.pt); iii) o Direito do Trabalho, que tem por função primeira a proteção do elemento mais frágil na relação de trabalho - o trabalhador - e não a de promover políticas económica e de emprego neoliberais; iv) o objetivo do pleno emprego para, com a riqueza existente, se criarem milhões e milhões de postos de trabalho úteis e com perenidade, nomeadamente nas áreas da educação, da saúde, da recuperação ambiental; v) a Agenda do Trabalho Digno da OIT; vi) o direito dos jovens a terem salários dignos e a organizarem família.

Salvo situações excecionais, os vínculos relativos a novas formas de o organizar e prestar o trabalho, podem ser sempre estáveis ou precários. São escolhas políticas que se fazem em cada contexto. O Governo, se tem verdadeira preocupação com os impactos da precariedade, enfoque o seu esforço na promoção da segurança no emprego.»

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21.8.22

21.08.1968 – O fim da Primavera de Praga

 


Na noite de 20 para 21 de Agosto de 1968, as tropas do Pacto de Varsóvia invadiram a Checoslováquia, pondo fim à chamada Primavera de Praga que durou pouco mais de sete meses.

Um vídeo, um texto e várias fotografias de Josef Koudelka AQUI.
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Alexandre O’Neill

 


Deixou-nos há 36 anos.
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Qatar, o Mundial da Vergonha



 © Vìtor Higgs / DN


«No próximo dia 21 de Novembro, às quatro da tarde em ponto, hora local, um esférico denominado Al Rihla ("A Jornada"), fabricado pela marca Adidas, com uma cobertura de poliuretano texturizado e 20 gomos, será colocado no centro de um grande rectângulo de relva. Em seu redor, um estádio com 60 mil lugares sentados, projectado pela firma alemã AS+P, querendo "AS" dizer Albert Speer, o filho do arquitecto de Hitler. A empresa holandesa que forneceu os relvados dos últimos três Mundiais de Futebol recusou-se a colaborar neste torneio após ter sabido que só na construção dos estádios já pereceram mais de 6750 trabalhadores, todos oriundos da Índia, do Bangladesh, do Nepal e do Sri Lanka. Nenhum cidadão do Qatar, país anfitrião, morreu na edificação das infraestruturas que irão receber o Mundial da Vergonha.

Para os jornalistas e turistas que lá forem, para os que ficarem colados aos écrans a ver as fintas e os passes dos craques, talvez fosse útil saber um pouco mais sobre o que é o Qatar, pelo que se recomenda a leitura de um livro-reportagem acabado de sair, assinado por John McManus, um antropólogo social e escritor, que tem passado a última década no Médio Oriente e na Turquia (vive em Ancara), tendo já publicado, aliás, um outro livro sobre a paixão futeboleira turca e suas fúrias. Este de que agora falo tem o título pouco inspirado de Inside Qatar - Hidden Stories From One of the Richest Nations on Earth (Icon Books, 2022) e, ao contrário do que se possa julgar, não é um relato preconceituoso e impiedoso dos muitos males que afligem o emirado, antes uma digressão pelas fundas incoerências de um país recente, que só viu a independência em 1971 e, desde então, anda em busca de um caminho entre os biliões do petróleo, grandiosas ambições de modernidade e pesados arcaísmos islâmicos.

Um relatório da ONU, já de 2020, descreve o Qatar como "quase uma sociedade de castas baseada na nacionalidade", o que em parte, mas só em parte, se compreende, pois os cataris representam uma ínfima minoria no seu próprio país, sendo cerca de 313 mil cidadãos, numa população total de cerca de três milhões, essencialmente composta por imigrantes vindos da Índia (24% da população), do Nepal (16%), das Filipinas (11%), do Bangladesh (5%), do Paquistão (4%) e do Sri Lanka (2%). Com tantos trabalhadores migrantes, a esmagadora maioria dos quais na construção civil (44% da força laboral do país trabalha nas obras), não admira que 72% da população seja masculina. Mulheres estrangeiras, no Qatar, só as empregadas domésticas vindas das Filipinas e de África, especialmente do Quénia.

Sendo óbvio que os opulentos privilégios de que gozam os cataris não poderiam estender-se à restante população (por ex., os nativos não pagam impostos e dois terços da população não trabalha, nem tem sequer ocupação), o que espanta e confrange é a brutal disparidade entre nacionais e não-nacionais, mesmo os vindos do Ocidente para empregos sofisticados e bem pagos. Atroz ironia: na Europa e na América, onde hoje tanto se combatem as injustiças do racismo, não houve ainda um movimento em larga escala para boicotar um Mundial de Futebol realizado num dos países mais racistas do mundo, onde, segundo as estatísticas oficiais, 43% dos cataris casam com membros da sua própria família, geralmente primos em primeiro grau, o que tem provocado sérios problemas de consanguinidade, que o director do Centro de Genética Médica de Doha reconhece, mas desvaloriza em nome da preservação da "pureza de sangue do país". Goebbels não diria melhor.